A INDISPENSÁVEL OBSERVÂNCIA DO ARTIGO 155 DO CPP NA FASE DE PRONÚNCIA

Por Rodrigo Casimiro Reis -  

O procedimento especial previsto no Código de Processo Penal para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida estatui um rito bifásico, compreendido pelo iudicium accusationis (que tem início com o recebimento da denúncia e perdura até a preclusão da decisão de pronúncia  e pelo iudicium causae (que abrange desde os preparativos necessários para o julgamento pelo Conselho de Sentença até a efetiva conclusão da sessão plenária .

O presente ensaio enfoca essencialmente a primeira fase do julgamento dos processos submetidos ao rito do Tribunal do Júri, mais precisamente a necessidade de rigorosa observância do artigo 155 do CPP quando da prolação da decisão de pronúncia.

É consabido que os processos submetidos ao Tribunal popular têm o seu mérito analisado e julgado por sete juízes leigos  (cidadãos selecionados no meio social que, via de regra, não têm formação jurídica e decidem com base no princípio da íntima convicção).

Foi justamente com o fim de proporcionar maior segurança jurídica aos acusados de crimes dolosos contra a vida que o legislador ordinário inseriu no rito dos processos submetidos ao Tribunal do Júri a fase da pronúncia, que representa uma garantia de que somente aqueles feitos que contenham substrato probatório mínimo de autoria sejam levados ao julgamento do Conselho de Sentença.

A pronúncia constitui, portanto, um "filtro" processual no qual o magistrado fará um juízo de prelibação acerca da viabilidade da denúncia, evitando que todo e qualquer processo em que se apure crime doloso contra a vida seja de pronto submetido ao julgamento dos juízes de fato.

Pois bem.

Finalizada a instrução criminal do iudicium accusationis, o artigo 413, caput, do CPP prevê que o magistrado pronunciará o acusado quando se convencer "da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação".

E é aqui que reside o ponto nodal da controvérsia analisada no presente artigo, pois o Superior Tribunal de Justiça, por meio de ambas as Turmas de Direito Penal, tem entendimento firmado no sentido de admitir que os indícios de autoria imprescindíveis à prolação da pronúncia decorram de elementos colhidos exclusivamente na fase inquisitorial, sem que tal fato configure violação do artigo 155 do CPP. Nesse sentido, confira-se: AgRg no AREsp 1.530.763/GO, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, DJe 25/10/2019; AgRg no HC 504.703/SC, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe 04/09/2019; AgRg no AREsp: 1.269.695/PI, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, DJe 29/04/2019; REsp 1.458.386/PA, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 25/10/2018; AgRg no AREsp 940.967/DF, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 07/04/2017.

Referido posicionamento da Corte Superior vem sendo trilhado por alguns Tribunais de Justiça .

Ocorre, data venia, que tal jurisprudência, no entender deste subscritor, não se coaduna com o modelo de processo penal inaugurado com a promulgação da Constituição da República de 1988, revelando-se descabido o encaminhamento de acusado para julgamento pelo Tribunal popular com arrimo em elementos indiciários de autoria produzidos unicamente em seara administrativa (inquérito policial), na qual não vigora o cross examination conduzido por autoridade judiciária.

Pronunciamento judicial, nos termos da ordem constitucional vigente, deve estar necessariamente amparado pelas convicções formadas pelo magistrado com base em prova coletada nos autos de processo penal conduzido sob as luzes garantistas do contraditório e da ampla defesa.

Ressalte-se que os direitos ao contraditório e à ampla defesa estão intrinsecamente correlacionados (visto que é por meio do contraditório que a defesa se manifesta), representam direitos liberais de primeira dimensão reconhecidos pela Constituição da República como cláusula pétrea e visam, ao fim e ao cabo, conferir legitimidade ao provimento jurisdicional, assegurando que a decisão judicial foi prolatada com observância do devido processo legal.

O eventual insucesso do Ministério Público na coleta de elementos mínimos de autoria (em Juízo) deve, necessariamente, conduzir a uma única conclusão ao final da primeira fase do rito do júri, que é a de impronúncia do acusado .

É preciso ter em mente que o processo penal é instrumento de garantia dos cidadãos contra eventuais excessos praticados pelas instituições incumbidas da persecução penal, cabendo ao Poder Judiciário a nobre missão de tutelar essa salvaguarda decorrente do sistema acusatório, acolhido tanto em sede constitucional  quanto infraconstitucional .

Sobre o tema, colho lição de Nestor Távora et al :

"A pretensão punitiva deve perfazer-se dentro de um procedimento regular, perante autoridade competente, tendo por alicerce provas validamente colhidas, respeitando-se o contraditório e a ampla defesa. (…) O processo deve ser instrumento de garantia contra os excessos do Estado, visto como ferramenta de implementação da Constituição Federal, como garantia suprema do jus libertatis"

A decisão de pronúncia (das mais sérias no âmbito penal, já que remete o denunciado pela suposta prática de um crime grave ao julgamento a ser realizado por juízes leigos) deve estar obrigatoriamente respaldada por elementos de prova colhidos na fase judicial, sob pena de fazer tábula rasa do artigo 155 do CPP e violar o artigo 5º, LIV e LV, da CF/88 .

Pronúncia fundamentada em elementos de autoria colhidos unicamente na fase inquisitorial viola o due process of law, revelando-se inconstitucional e em descompasso com o modelo de processo penal adotado pelo constituinte.

No mesmo sentido, Eugenio Pacelli et al, dissertando especificamente sobre a natureza e a destinação dos elementos de autoria produzidos na fase inquisitorial, assevera que :

"A fase de investigação, como se sabe, é destinada à formação do convencimento do órgão de acusação e não do magistrado. Na aludida fase, não há preocupação com o contraditório, até mesmo porque sequer se exerce a defesa do acusado. Não há, ali, ampla defesa. (…) Apenas o material produzido em Juízo é que, a rigor, constituiria prova, abrindo-se necessariamente ao contraditório e à ampla defesa, com efetiva participação da defesa. Em princípio, portanto, apenas a prova se prestaria ao convencimento judicial, não cumprindo essa missão os chamados elementos informativos da fase investigatória".

De ver-se que os indícios de autoria mencionados no artigo 413, caput, do CPP, justamente por se destinarem ao convencimento do magistrado, constituem uma espécie de prova (ainda que de menor capacidade de persuasão) que deve ser colhida em Juízo, evitando-se que o acusado seja exposto a um temerário (e descabido) julgamento pelo Tribunal do Júri.

Outro dado que reforça a tese de que o artigo 155 do CPP deve ser estritamente observado na fase de pronúncia é o de que o artigo 3º— C, §§ 3º e 4º, do CPP determina que os autos presididos pelo juiz das garantias (com exceção de determinados documentos) não serão apensados aos autos do processo enviado ao juiz da instrução e julgamento, fato que inegavelmente inviabilizará, quando da entrada em vigor do referido dispositivo, a prolação de decisão de pronúncia com esteio em elemento de prova testemunhal produzido na fase pré-processual.

Fixadas essas premissas, tem-se que o entendimento sustentado no presente artigo encontra guarida em recente decisão prolatada pela Min. Carmen Lúcia que, nos autos do HC nº 179.201/PI , concedeu a ordem pleiteada pelo impetrante para restabelecer decisão de impronúncia, sob o fundamento de que os elementos de autoria foram colhidos exclusivamente em sede inquisitorial, sem que houvesse a devida confirmação em Juízo. Confira-se trecho do decisum proferido nos autos do citado writ:

"Este Supremo Tribunal Federal consolidou entendimento segundo o qual “os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo" (RE n. 425.734-AgR/MG, Relatora a Ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, DJe 28.10.2005). (…) Este entendimento há de ser também aplicado ao procedimento do Tribunal do Júri. (...) O Tribunal de Justiça do Piauí e o Superior Tribunal de Justiça concluíram pela existência de indícios mínimos de autoria do paciente, conquanto colhidos tais elementos exclusivamente na fase inquisitorial e não repetidos em juízo. (…) Os depoimentos colhidos na fase inquisitorial não foram confirmados em juízo, não podendo ser usados, sem a necessária reiteração e confirmação, como os únicos indícios para se concluir pela possibilidade jurídico-processual de submeter alguém a julgamento pelo Tribunal do Júri, sob pena de contrariedade aos princípios do contraditório e da ampla defesa".

Corroborando a argumentação alinhavada neste artigo, ressalto que os Ministros da Quinta Turma do STJ, nos autos do AgRg no REsp 1.740.921/GO , excepcionaram a retrocitada jurisprudência firmada no âmbito do referido Tribunal Superior e acompanharam o voto proferido pelo relator ministro Ribeiro Dantas para manter decisão de impronúncia, consignando que elemento de autoria produzido na seara inquisitorial e não confirmado em Juízo é inapto para viabilizar a instauração do iudicium causae.

Colho elucidativo trecho do voto do relator que se amolda com precisão ao raciocínio ora desenvolvido:

"No Estado Democrático de Direito, a força argumentativa das convicções dos magistrados deve ser extraída de provas submetidas ao contraditório e à ampla defesa. Isso porque o mínimo flerte com decisões despóticas não é tolerado e a liberdade do cidadão só pode ser restringida após a superação do princípio da presunção de inocência, medida que se dá por meio de procedimento realizado sob o crivo do devido processo legal. (…) Na hipótese em foco, optar por solução diversa implica inverter a ordem de relevância das fases da persecução penal, conferindo maior juridicidade a um procedimento administrativo realizado sem as garantias do devido processo legal em detrimento do processo penal, o qual é regido por princípios democráticos e por garantias fundamentais. (...) Diante da possibilidade da perda de um dos bens mais caros ao cidadão – a liberdade, o Código de Processo Penal submeteu o início dos trabalhos do Tribunal do Júri a uma cognição judicial antecedente. Perfunctória, é verdade, mas munida de estrutura mínima a proteger o cidadão do arbítrio e do uso do aparelho repressor do Estado para satisfação da sanha popular por vingança cega, desproporcional e injusta".

Importante frisar que não se está aqui a questionar a competência constitucional do Tribunal do Júri para apreciar o conjunto probatório e julgar os crimes dolosos contra a vida, mas, sim, de que é necessário que a decisão de pronúncia (prolatada por magistrado e que contém um juízo positivo de admissibilidade da acusação) encontre amparo em elementos de prova de autoria produzidos sob o crivo judicial. Nesse diapasão, confira-se precedentes de Cortes estaduais .

Resta, pois, demonstrado que a observância do artigo 155 do CPP na fase de pronúncia representa (i) tanto uma garantia em prol do jurisdicionado (de que as provas eventualmente utilizadas em seu desfavor foram colhidas nos autos de um processo que observou os princípios do contraditório e da ampla defesa) (ii) quanto uma limitação do jus puniendi (função de contenção do processo penal), neutralizando o risco de eventual abuso de poder por parte de agentes estatais.

 

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