A NOVA LIBERDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO PENAL

Por Gustavo Henrique Diamente Paniza e Flávio Henrique Costa Pereira -  

A Medida Provisória 881, de 30 de abril, formulada pelo Ministério da Economia e assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, busca reduzir as burocracias atreladas ao livre mercado, bem como descomplicar o impacto regulatório das atividades econômicas inovadoras, a fim de incentivar o crescimento da economia e a geração de empregos no país. 

Ocorre que, apesar de tal medida demonstrar um caráter liberal do atual governo, tão aclamado por seus eleitores, acaba por pecar na regulação de alguns institutos, como o afrouxamento dos instrumentos regulatórios do Estado, perante os chamados “empreendimentos de baixo risco”. 

O ponto em questão é tratado no inciso I, bem como nos parágrafos 2º e 3º do artigo 3º da referida medida provisória, nos seguintes termos: 

“Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição: 

I - desenvolver, para sustento próprio ou de sua família, atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de atos públicos de liberação da atividade econômica; 

(...) 

  • 2º Para fins do disposto no inciso I do caput:

I - ato do Poder Executivo federal disporá sobre a classificação de atividades de baixo risco a ser observada na ausência de legislação estadual, distrital ou municipal específica; 

II - na hipótese de ausência de ato do Poder Executivo federal de que trata o inciso I do § 2º, será aplicada resolução do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios - CGSIM, independentemente da aderência do ente federativo à Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios - Redesim; e 

III - na hipótese de existência de legislação estadual, distrital ou municipal sobre a classificação de atividades de baixo risco, o ente federativo que editar ou tiver editado norma específica, encaminhará notificação ao Ministério da Economia sobre a edição de sua norma. 

  • 3º A fiscalização do exercício do direito de que trata o inciso I do caput será realizada posteriormente, de ofício ou como consequência de denúncia encaminhada à autoridade competente. 

Por meio de entrevista à revista Época, o então secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, Paulo Uebel, ressaltou que “a medida vai facilitar a abertura de negócios de baixo risco e permitir que o poder público possa se concentrar no controle e fiscalização do que realmente pode virar um problema sério, como barragens ou a boate Kiss, onde 242 jovens morreram num incêndio em 2013”. 

Nesse sentido, o referido secretário ainda complementa: “A nossa MP tenta obrigar União, estados e municípios a fazerem essa reflexão e a deixarem aquelas atividades de baixo risco sem ter que passar pelo Estado, sem ter que pedir alvará, licença. O Estado tem que botar seu foco no que tem risco à sociedade”. 

Por outro lado, não ficou suficientemente claro o modo de avaliação desses empreendimentos de “baixo risco”, sendo que Paulo Uebel os define pela mera probabilidade de um acidente ocorrer, conforme destacado abaixo: 

“Existem dois critérios principais para se definir uma atividade. O primeiro é o da probabilidade de que vai acontecer um acidente. O segundo é o tamanho do impacto de um eventual acidente. Com esses critérios, é definido o que é uma atividade de baixo risco. É aquela que não tem probabilidade de acontecer um acidente e, se acontecer, o dano é baixo. Por exemplo, uma loja de corte e costura, sapateiro, uma pequena loja de roupas”. 

Desta forma, a tal “liberdade econômica” pretendida pelo governo federal envolve, diretamente, a regulação de atividades empresariais que podem comprometer a segurança da população, seja por falta de um alvará de funcionamento ou de uma fiscalização rigorosa que leve em conta todos os riscos envolvidos na atividade. 

Assim, a supressão da “fiscalização dos riscos”, em qualquer atividade econômica, pode gerar riscos cruciais e até mesmo causar ilícitos penais consideráveis, já presenciados em diversas tragédias contemporâneas, como o ocorrido na boate Kiss, onde uma atividade, que não era considerada “de alto risco”, foi capaz de ocasionar centenas de mortes, que poderiam ter sido evitadas caso houvesse a estrita fiscalização e regularização da referida casa de eventos. 

Nesse contexto, o instituto no âmbito do Direito Penal, que mais se relaciona com os casos mencionados, é a “posição de garante”, visualizada exclusivamente nos crimes comissivos por omissão, ou seja, quando o agente deveria ter agido para evitar o resultado ilícito, porém não o fez. 

Desta forma, não basta que o autor esteja na posição de garantia, mas que tenha capacidade de ação para evitar o resultado. 

O Código Penal exprime, por meio do parágrafo 2º de seu artigo 13, os casos em que a “posição de garante” surge com o dever de evitar o resultado. In verbis: 

“§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: 

  1. a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;  
  1. b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; 
  1. c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. 

Assim, a alínea “b” do artigo epigrafado se refere a uma aceitação voluntária, contratual ou negocial de um dever de atuar, decorrente do exercício profissional, ou seja, se adéqua perfeitamente ao tema em discussão, pois consiste na responsabilidade assumida pelo empreendedor de concretizar a atividade econômica profissional pretendida, evitando de todas as formas possíveis a ocorrência de um resultado danoso e, consequentemente, ilícito. 

Vale ressaltar que, embora o empreendedor se atente aos cuidados inerentes à atividade econômica, ainda será necessário que o mesmo se adeque às normas pertinentes, as quais são editadas pelo Estado, por meio de agências reguladoras e demais órgãos administrativos competentes para editar tais atos. 

Isto posto, junto com o “afrouxamento” da chamada “burocracia econômica” implementado pelo governo federal com a Medida Provisória 881, tal prática traz consigo certa obscuridade quanto à responsabilização penal da “posição de garante” do empreendedor, na prática de suas atividades. 

Conforme já destacado, antes da referida medida provisória, as atividades empresariais deveriam se adequar às regulações impostas por órgãos administrativos, por meio de cuidados e atos fiscalizatórios próprios, sejam elas consideradas de “alto risco” ou não. 

Com a constatação, pelo poder público, que o empreendedor atendeu as exigências necessárias ao desenvolvimento de suas atividades e mantendo-as, pode-se comprovar que o empresário agiu com a devida prudência para evitar as consequências inerentes aos riscos de sua atuação, ou seja, a partir da observação das regras que lhe foi imposta, é possível demonstrar a ausência de dolo ou culpa. 

Contudo, mesmo com essa chamada “regularização”, o empreendedor ainda deveria atentar, constantemente, pela segurança de sua atividade, porém, sua responsabilização penal se encontrava mitigada, pois ele atendia todos os requisitos administrativos para o funcionamento de sua empresa, ou seja, supostamente, estava fazendo o que era possível para evitar a ocorrência de atos ilícitos dentro de seu estabelecimento. 

Nesse passo, voltamos novamente ao exemplo da tragédia ocorrida na boate Kiss, em Santa Maria (RS). Na época, muito se questionou acerca da responsabilização penal dos donos da referida casa noturna, pelas mortes ocorridas, tendo em vista que se omitiram nos seus deveres legais e contratuais, na posição de “garantes”, de modo que não agiram a tempo de evitar boa parte das 242 mortes. 

Insta salientar que, no exemplo em questão, os extintores da boate não funcionaram, havia superlotação no evento e o alvará conferido pelos bombeiros estava vencido, ou seja, diversas falhas em exigências administrativas inerentes à atividade realizada. 

Ou seja, o elemento subjetivo, que conecta os agentes aos fatos, foi provado pela omissão, de modo que, se tivessem agido com diligência, esses elementos militariam em favor da não culpabilidade, ou seja, da ausência de dolo e até mesmo de culpa. 

Por fim, a edição da medida provisória traz obscuridade à análise de risco em questão, tendo em vista que ficará muito mais complexo identificar se os empresários praticaram, realmente, todos os atos exigidos por suas posições de “garantes”, a fim de evitarem a ocorrência de atos ilícitos oriundos de suas respectivas atividades, bem como ficaria mais difícil a prova da não culpabilidade em decorrência de fato próprio do risco inerente à atividade, ainda que de baixo risco. 

Doravante, as empresas deverão agir com maior cautela, quando dispensadas as regularizações pertinentes, agindo com a esperada diligência decorrente de sua atividade, presumida pela própria lei, de forma a registrar todas as ações que possam mitigar os riscos, inclusive com o rotineiro acréscimo de melhorias, sempre que a realidade assim exigir.

 

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