A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O TRÂNSITO EM JULGADO

Por Fernando Tourinho Filho -  

Esse princípio nada mais representa do que o coroamento do due processs of law. É um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre, como bem o disse A. Castanheira Neves ("Sumários de Processo Penal", Coimbra, s.n. 1967, p. 26). Assenta no reconhecimento dos princípios do direito natural como fundamento da sociedade, princípios que, aliados à soberania do povo e ao culto da liberdade, constituem os elementos essenciais da democracia (GOMES Antônio Ferreira, "A sociedade e o trabalho: democracia, sindicalismo, justiça e paz", in Direito e Justiça, Coimbra, v. 1, n. I, p.7).

Até o final do século 17 e início do 18, tanto o poder temporal quanto o secular usaram e abusaram do suplício, da tortura e das prisões subterrâneas. Horríveis. Quando o papa Inocêncio III, no IV Concílio de Latrão, aboliu os ordálios ou juízos de Deus (judicium Dei) — sentença divina –– (ordálias na Espanha, ordalie, na França, ordeal, na Inglaterra e ordal da Alemanha), por volta do século 18, proibindo os padres de participar daquele engodo, meio de prova, segundo o qual a Igreja Católica encarregava um padre (enganando a população crédula) de procurar saber se o suspeito era culpado ou inocente (havia vários tipos de ordálios), os mais famosos, pelo menos na Inglaterra, foram o do ferro em brasa, o do pão seco com queijo e o da água fria: o suspeito tinha de segurar um ferro em brasa e se nada lhe acontecesse era considerado inocente; obrigar o suspeito a engolir um pedaço de pão seco misturado com queijo abençoado pelo padre: se engolisse seria inocente; amarrá-lo e jogá-lo na água, se viesse à tona era culpado... Entendia-se que Deus intervinha a favor de quem fosse inocente e nada acontecia ao suspeito. Em face da sua extinção, a Grã Bretanha preferiu adotar o júri, um velho costume normando em que os homens bons do condado se reuniam e quando o juiz da coroa por ali passava indicavam as pessoas suspeitas de cometerem crimes graves. Depois de ouvidos, se houvesse dúvida, eram levados ao pequeno júri constituído de "twelve free and lawful men" ("12 homens livres e conhecedores das leis"), os quais eram "(...) confined, without meat, drink, fire or candle, or conversation with others, until they were agreed (...)" ("eram confinados, sem comida, bebida, aquecimento ou conversa com outras pessoas até quem eles chegassem a um acordo") (J.H. Baker "An introduction to English Legal History", Butterworths, London, 1990, 3ª Ed., PP. 86/87).

Na Europa continental, o próprio Inocêncio III adotou o processo inquisitivo, em que as funções de acusar, defender e julgar ficavam nas mãos de uma mesma pessoa — bispo ou arcebispo. Era o Tribunal do Santo Ofício, ou Santa Inquisição, encarregado de condenar as heresias. O suspeito era sempre culpado. As penas, bastante cruéis.

O processo era secreto. Como não havia acusador, o bispo ou arcebispo louvava-se nas denúncias anônimas lançadas nas denominadas "boccas de la verità", que até hoje são vistas em Roma. São monumentos de concreto, com mais ou menos dois metros de altura, em forma de círculo, com uma abertura na parte central. Era ali que as pessoas lançavam suas denúncias anônimas e, ao amanhecer, os nuntiatores, os digiti duri, os stationarii, as apanhavam e as levavam ao bispo ou arcebispo. Com base nelas procedia-se a uma investigação secreta. O próprio bispo ou arcebispo investigava e julgava e, na investigação, havia toda sorte de tortura em busca da confissão, a "rainha das provas". E as penas impostas aos hereges, blasfemadores, feiticeiras e bruxas eram terrivelmente impiedosas. Horríveis os atos praticados pelo Tribunal do Santo Ofício, ou Santa Inquisição, no julgamento dos crimes que atentavam contra a fé católica: diversos tipos de mutilação, o ferrete em brasa, a fogueira, a morte na roda. Suplício e mais suplício para gáudio dos "torquemadas" da vida... E as monarquias adotaram o mesmo sistema inquisitório. "Na ordem da justiça criminal, o saber era privilégio absoluto da acusação. O mais diligente e o mais secretamente que se pudesse fazer, a respeito da instrução dizia o édito de 1498. De acordo com a Ordenação de 1670, que resumia e em alguns pontos reforçava a severidade da época precedente, era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo, impossível conhecer a identidade dos denunciadores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusá-los, impossível fazer valer, até os últimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossível ter um advogado, seja para verificar a regularidade do processo, seja para participar da defesa. Por seu lado, o magistrado tinha o direito de receber denúncias anônimas, de esconder do acusado a natureza da causa, de interrogá-lo de maneira capciosa, de usar insinuações... A forma secreta e escrita do processo confere com o princípio de que, em matéria criminal, o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juízes um poder absoluto e um poder exclusivo" (Michel Foucault, "Vigiar e Punir", 9ª edição, tradução de Lígia M. Pondé Vassallo, Petrópolis, Ed. Vozes, 1991, p.35/36).

A ordenação de 1670 regeu, até a Revolução Francesa, as formas gerais da prática penal. "Eis a hierarquia dos castigos por ela praticados: a morte, a questão com reserva de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento. A pena de morte natural compreende todos os tipos de morte: uns podem ser condenados à forca, outros a ter a mão ou a língua cortada ou furada e ser enforcados em seguida; outros, por crimes mais graves, a ser arrebentados vivos e expirar na roda depois de ter os membros arrebentados; outros a ser arrebentados até a morte natural, outros a ser estrangulados e em seguida arrebentados, outros a ser queimados vivos, outros a ser queimados depois de estrangulados, outros a ter a língua cortada ou furada , e em seguida queimados vivos, outros a ser puxados por quatro cavalos, outros a ter a cabeça cortada" (Michel Foucault, ob.cit., p. 33).

Já no final do século 17, começaram os protestos contra os suplícios, mas, em compensação, as prisões eram profundamente desumanas, as masmorras, prisões subterrâneas, eram um verdadeiro horror. Até hoje, em Londres, no museu Madame Tussauds, os visitantes podem ver em cera reprodução das masmorras.

No começo do século 18, denominado século das luzes, ou iluminismo, começaram a florescer ideias humanitárias lançadas por jurisconsultos como Voltaire, Montesquieu, D’Alembert, Locke, Diderot e J.J. Rousseau, com o seu famoso "Contrato Social". A liberdade é uma condição necessária para a vida na comunidade, dizia ele.

Foi precisamente nessa época e nesse deslumbramento lançado pelos enciclopedistas que um moço de 20 anos, natural de Milão e educado na França — Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria —, lançou em 1764 o seu pequeno grande livro "Dei delitti e dele pene", que revolucionou o mundo. Tamanha foi sua importância que, em meados do século 18, o rei da Suécia e, em seguida, Catarina II da Rússia aboliram as torturas. Após, Maria Thereza, do Império Austríaco, seguiu os mesmos passos e assim, aos poucos, as torturas em todos os lugares foram sendo abolidas. Traduzido o livro para o francês e levado a Voltaire, esse teria dito: "Eis o código da humanidade".

Inspirados nas ideias libertárias do iluminismo e nos ideais da Constituição norte-americana de 1776, aos 26 de agosto de 1789, "os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, resolveram expor, em declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem... Consequentemente, a Assembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão" (Michele Vovelle, "A Revolução Francesa,1789-1799", São Paulo, Editora Unesp, p. 70). E enumera os 17 artigos que a compunham, sendo que o nono dizia:

"Tout homme étant présumé innocent, jusqu’à ce qu’il ait été declaré coupable, s’il est jugé indispensable de l’arrêter, toute rigueur, qui ne serait pas nécessaire pour s’assurer de sa personne, doit être sévèrement réprimé par la loi" ("Todo homem é considerado inocente até que seja declarado culpado e, se for julgado indispensável prendê-lo, todo rigor desnecessário à garantia de sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei").

Esse é o prólogo da Constituição Francesa de 1791.

E, antes mesmo, o Marquês de Beccaria, quanto à prisão preventiva, dizia "que o acusado não deve ser encarcerado senão na medida em que for necessário para impedi-lo de fugir ou de ocultar as provas do crime". Respeitante à pena, observava: "Se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele seja julgado culpado, como esse meio é aflitivo e cruel, deve-se, tanto quanto possível, suavizar-lhe o rigor e a duração" ("Dos Delitos e das Penas" BECCARIA Cesare- tradução de Paulo M. de Oliveira, Edipro, São Paulo, 1ª ed. p.58).

Em dezembro de 1948, a ONU, em Paris, proclamou a Declaração dos Direitos do Homem, com os mesmos dizeres, e, em novembro de 1950, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Cidadão, no seu artigo 6°, §2º, anunciava:

"Everyone charged with a criminal offense shall be presumed innocent until proved guilty according law" ("Toda pessoa acusada de um crime será presumida inocente até que seja declarada culpada de acordo com a lei").

Em novembro de 1969, realizou-se o Pacto de San José da Costa Rica, ao qual o Brasil aderiu pelo Decreto Legislativo nº 27, de setembro de 1992. E, nesse pacto, o artigo 8º, nº II, dispõe:

"Artigo 8º — Garantias Judiciais.
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
(...)
h. Direito de recorrer da sentença para o Juiz ou Tribunal Superior".

No mundo ocidental, as Constituições, quando não fazem menção expressa ao princípio da não culpabilidade, como a nossa, a italiana, a espanhola, a portuguesa, a colombiana e a paraguaia, entre outras, dizem que o réu tem o direito ao silêncio e que a prova da acusação compete exclusivamente ao acusador, tal como se dá com as Emendas nºs V e XIV da Constituição norte-americana.

A atual Constituição italiana repete, ipsis litteris, o artigo 27, §3º, da Constituição de dezembro de 1947:

"A responsabilidade penal é pessoal. O imputado não é considerado réu até condenação definitiva".

O artigo 32, nº 2, do Código de Processo Penal português dispõe:

"Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa".

A Constituição espanhola de 1978, no §2º do artigo 24, dispõe que "toda pessoa tem o direito de não fazer declaração contra si própria, de não se reconhecer culpado e de ser presumida inocente".

O artigo 29 da Constituição colombiana dispõe: "Toda la persona se presume inocente mientras no se haya declarado culpado".

E a culpa fica comprovada quando o órgão de segundo grau da Justiça mantém a condenação proferida em primeira instância. Não se deve deslembrar que há pouco tempo a procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, requereu a extinção da punibilidade de um crime cujo processo estava num dos escaninhos da nossa Suprema Corte. E o prazo prescricional era de 16 anos...

Cumpre observar que a sentença penal condenatória transita em julgado e possibilita sua imediata execução em duas hipóteses: a) se o condenado não interpuser recurso; e b) interposto recurso e mantida a condenação, se esgotarem todos os recursos na segunda instância (embargos infringentes e aclaratórios), posto existir apenas o duplo grau de jurisdição em todos os ordenamentos.

É precisamente nesse momento que a sentença penal condenatória transita em julgado. E, na lição de Canotilho, "trata-se de explicitar que, em matéria penal, o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição, na medida em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas" (CANOTILHO J.J. Gomes e Vidal Moreira, "Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 1.", 1ª ed. brasileira, 2007, Ed, RT. São Paulo, p. 516).

Quando o artigo 5º, inciso LVII, do Pacto Constitucional dispõe que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória", está se referindo àquele momento em que o órgão de segundo grau mantém a condenação, sem possibilidade de eventuais embargos de declaração ou embargos infringentes. Havendo, o trânsito em julgado se dá após o julgamento desses recursos, mesmo porque, embora ainda se possa interpor recurso especial para o STJ e recurso extraordinário para o STF, não haverá mais possibilidade de se proceder ao exame de matéria fática. A propósito, a Súmula 07 do STJ: "A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial". No mesmo sentido o preceito sumular nº 279 da Suprema Corte: "Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário".

Ainda que não houvesse esses preceitos sumulares, a presunção de inocência cessa com o reconhecimento da culpa no segundo grau de jurisdição, mesmo porque a competência funcional vertical em razão dos recursos fica restrita, no STJ, às hipóteses previstas no artigo 105, III, alíneas "a", "b" e "c", da CF e na Suprema Corte, quando se tratar de ofensa à Magna Carta, a teor do artigo 102, III, alíneas "a", "b", "c" ou "d", do Pacto Fundamental. E em nenhuma delas há previsão de se analisar matéria probatória.

Cumpre observar que ministro Roberto Barroso, no pedido de vista do Habeas Corpus 126.292/SP, asseverou que "nenhum país exige mais do que dois graus de jurisdição para que se dê efetividade a uma decisão criminal". A mesma informação foi dada pela ministra Ellen Gracie, quando do julgamento do HC 85.886 (DJ 28/10/2005). Mais tarde, o ministro Roberto Barroso, ao votar com o Relator no HC 126.292, assim se pronunciou (verbis):

"A necessidade de aguardar o trânsito em julgado do REsp e do RE para iniciar a execução da pena tem conduzido massivamente à prescrição da pretensão punitiva ou ao enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição definitiva.
Em ambos os casos, produz-se deletéria sensação de impunidade, o que compromete, ainda, os objetivos da pena, de prevenção especial e geral.
Um sistema de Justiça desmoralizado não serve ao Judiciário, à sociedade, aos réus e tampouco aos advogados.

A partir desses três fatores, tornou-se evidente que não se justifica no cenário atual a leitura mais conservadora e extremada do princípio da presunção de inocência, que impede a execução (ainda que provisória) da pena quando já existe pronunciamento jurisdicional de segundo grau".

O STF somente pode apreciar matéria probatória, única e exclusivamente, em duas hipóteses: a) quando se tratar de Habeas Corpus, se denegada a ordem por tribunal superior; e b) nos crimes políticos (artigo 102, II, "a" e "b" da CF). Quanto ao STJ, apenas na hipótese prevista no artigo 30 da Lei nº 8.038/90.

Nem se poderá dizer que a presunção de não culpabilidade ou inocência cessaria após recursos interpostos ao STJ e STF... Se tal fosse possível afrontaria o próprio princípio da presunção, pois, na irrepreensível lição de Canotilho, "uma dimensão importante do princípio da inocência do arguido, mas que assume valor autônomo, é a obrigatoriedade de julgamento no mais curto prazo, compatível com as garantias de defesa. A demora do processo penal, além de prolongar o estado de suspeição e as medidas de coação sobre o arguido (nomeadamente a prisão preventiva) acabará por esvaziar de sentido e retirar conteúdo ao princípio da presunção de inocência. O direito ao processo célere é, pois, um corolário daquela" (Ob.cit. p. 519, grifo do autor), como também o é a incumbência da prova acusatória exclusivamente ao Ministério Público nas ações penais públicas e ao querelante na ação privada subsidiária da pública e ação privada propriamente dita.

E quando a Constituição não se expressa tão claramente assim, outras usam de determinados núcleos, como direito ao silêncio, a acusação fica afeta, exclusivamente afeta, ao acusador etc.

Alie-se, ainda, o direito ao silêncio, tal como previsto no artigo 186 e parágrafo único do nosso CPP, o direito de não ser compelido "in any criminal case to be a witness against himself" como bem diz a Emenda nº V da Constituição norte-americana.

Sabemos todos que quando se interpõe um REsp, uma vez distribuído, há uma excessiva demora para ser julgado. Em seguida, podem ser opostos agravo interno, embargos declaratórios, embargos de divergência e recurso extraordinário. Se inadmitido, cabe agravo nos autos, com remessa ao STF. Não admitido, ARE, agravo interno, embargos declaratórios... Para que haja o verdadeiro trânsito em julgado, no sentido que alguns lhe emprestam. Vale dizer, oito a 15 anos após a interposição do REsp... Já não se trata mais de presunção de inocência, e sim de culpabilidade... Famosos e tristes os casos em que os recursos nesses tribunais superiores, per faz et nefas — permanecem anos e anos aguardando julgamento na Suprema Corte. Certo, absolutamente certo, o entendimento de que a sentença penal condenatória transita em julgado quando o órgão de segunda instância após prover o recurso da acusação para condenar ou após manter a condenação imposta na primeira instância e eventuais recursos na própria segunda instância como embargos infringentes (parágrafo único do artigo 609, do CPP) ou declaratórios (artigos 619/620 do mesmo estatuto).

Nem se diga que, assim falando, estamos fazendo tábula rasa do artigo 5º, LVII, do Pacto Constitucional, pois, no dizer insuspeito do ministro do STF Celso de Mello — uma das figuras mais proeminentes que perolou naquele egrégio sodalício —, "não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto... O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que essas estão sujeitas — e considerado o substrato ético que as informa — permite que sobre elas incidam limitações de ordem pública, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros" (MS nº 23.452/RJ- Tribunal Pleno, DJ 12/5/2000).

Ademais, o artigo 5º, LVII, da CF dispõe que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". E, obviamente, ela transita em julgado quando o órgão de segundo grau mantém a condenação ou a profere. Mesmo preso, nada impede a interposição de REsp ou RE. Mas há os famosos Habeas Corpus...

Logo, a presunção de inocência cessa no momento em que for declarada a sua culpa. Assim, condenado o réu em primeira instância, como ele tem o direito de recorrer a um tribunal, tal como dispõe a alínea "h" do item 2 desse mesmo artigo 8º do pacto, se o tribunal mantiver a condenação, ou se foi absolvido e o tribunal, ante recurso da acusação, o condenar, cessou a presunção de inocência

Lembre-se que o artigo 11, nº 1, da Declaração Universal da ONU dispõe:

"Everyone charged with a penal offence has the right to be presumed innocent until proved guilty according to law in a public trial at which he has had all the guarantees necessary for his defense Trial" ("Toda pessoa acusada de uma infração penal tem o direito de ser presumida inocente, até que, num julgamento público, com todas as garantias da sua defesa, seja declarado culpado). E esse julgamento dá-se, precisamente, na segunda instância, posto não haver uma terceira instância em nenhum país do mundo — pelo menos no mundo ocidental.

"No Direito norte-americano, a presunção de inocência é axiomática e elementar, e esse princípio constitui uma base da administração do nosso sistema de Justiça penal. Esta presunção é fundada sobre os princípios das cláusulas de salvaguarda da liberdade individual consignadas nas Emendas 5 e 14 da Constituição dos Estados-Unidos" (Geoffrey Brigham, "La présomption d’innocence en droit comparé", Paris, 1998, "Colloque organisé par le Centre français de droit comparé à la Cour de cassation", p.71 es.)

Enfim: no mundo ocidental, toda pessoa a quem se atribua a prática de uma infração penal tem o direito de que se presuma sua inocência até que seja reconhecida sua culpabilidade, cabendo explicitar, como observou Canotilho, que "o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição na medida em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa constitucionalmente asseguradas" (ob. cit. p. 516, grifo do autor). Outros núcleos essenciais consistem no direito de o acusado não testemunhar contra si próprio e que não lhe compete provar sua inocência. Esse ônus é exclusivo da parte acusadora.

Nosso CPP, no artigo 186, proclama:

"Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder às perguntas que lhe forem formuladas".

E por analogia, por força do artigo 3º do CPP, pode-se acrescentar o disposto no artigo 388, I, do CPC: "A parte não é obrigada a depor sobre fatos criminosos ou torpes que lhe forem imputados".

E o Tribunal Internacional de Roma, no seu artigo 66, dispõe: "Toda pessoa se presume inocente até que se prove a sua culpa".

Evidente que em todos os países a culpa fica comprovada no órgão de segundo grau, como bem o disse Canotilho. A função dos tribunais superiores é outra...

Bem poderá o Congresso Nacional, mercê de uma PEC, denominar ação revisional extraordinária e ação revisional especial os artigos 102, III, "a", "b", "c" e "d", e 105, III, "a", "b" e "c" da Magna Carta. Assim, transitada em julgada a sentença condenatória, se a decisão de segunda instância infringir uma daquelas alíneas, conferir-se-á ao sucumbente o prazo de 15 dias para promover a ação revisional especial ou extraordinária, abolindo, dessa maneira, os inúmeros recursos protelatórios até culminar com a prescrição. Hoje, por exemplo, há tribunais que praticamente aboliram os embargos infringentes ou de nulidade com o denominado "julgamento virtual"... O relator profere o seu voto, encaminha ao revisor e este ao terceiro desembargador, e assim, todos de acordo, impedem os possíveis embargos infringentes.

Convém também conferir o prazo máximo de seis meses para o julgamento da ação extraordinária ou especial, tamanho o número de assessores que militam junto a cada um dos ministros.

E é de causar espécie um ex-presidente da República com duas sentenças condenatórias confirmadas em segundo grau por um dos mais respeitáveis TRFs estar gozando do privilégio de passar sua lua de mel em Cuba. Coisas do nosso STF.

 

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