AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA PARA TODOS OS PRESOS É DIREITO CONSTITUCIONAL

Por Lenio Luiz Streck -  

Resumo: Porque a Recl. 29.303-RJ deve ser julgada procedente no STF. 

O Brasil, como Estado Democrático de Direito, tem deveres e responsabilidades fundamentais para com os indivíduos. Entre esses, está o dever do Estado de tratar os seus cidadãos como verdadeiro fim da sociedade política em que vivemos. Trata-se de obrigação do Estado e direito do cidadão. Como base e critério orientador da nossa República Federativa, temos a dignidade da pessoa humana. Como finalidade do Estado, temos o indivíduo e a sua felicidade.

Dworkin, em seu Is democracy possible here? principles for a new political debate, diz que esse critério norteador concretiza uma cadeia de princípios que origina dois fundamentos estruturantes das democracias constitucionais, quais sejam: o princípio da igual consideração e respeito e o princípio do autogoverno. Para a finalidade da presente coluna, explana-se o primeiro.  

Segundo o princípio da consideração igualitária, a comunidade política deve considerar de maneira equivalente a vida e os direitos de todos que estão sob a sua esfera de ação. A democracia, então, é um sistema sujeito a condições, por intermédio das quais se preserva a igualdade de status dos cidadãos. 

A positivação de direitos fundamentais e de direitos humanos segue a lógica de tentar garantir a observância das citadas condições. Exemplos desses esforços são a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Constituição Federal pátria.

Dworkin, nesse sentido, assinala que nenhum governo é legítimo a menos que demonstre igual preocupação pelo destino de todos os cidadãos sobre os quais afirme seu domínio e aos quais reivindique fidelidade. A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política.

A importância desse fundamento legitimador já era observada por filósofos como Aristóteles e Tomas de Aquino. Este, inclusive, quando discorre sobre o dever dos magistrados de manterem a integridade do direito, afirma que a comunidade política estabelece juízes e a ordem justa do julgamento. Assim, os magistrados, diz Aquino, devem julgar o que for justo, sem que haja nenhuma distinção de pessoas. A premissa moral de base é a igualdade de tratamento — princípio elementar para qualquer democracia constitucional. Não se pode pensar em democracia e em cidadãos “mais iguais” que outros, sob pena de cair na incoerência.

O que foi dito acima e sua relação com a audiência de custódia Por tudo isso, espera-se que o mesmo fundamento equânime (fairness) seja a base da decisão do Supremo Tribunal Federal, guardião da nossa carta política, no julgamento, que se espera que seja em breve, pelo plenário da Reclamação Constitucional 29.303. Explico.

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (mérito também para o defensor Eduardo Newton, que escreveu belo texto aqui sobre isso) ajuizou reclamação constitucional com o objetivo de que seja determinada, pelo Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a realização da Audiência de Custódia para todas as hipóteses de prisão. Na forma como consta no artigo 2º da Resolução 29/2015 do Tribunal fluminense, a audiência de custódia apenas é realizada com os presos em flagrante. 

Contudo, a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a MC na ADPF 347 e o Conselho Nacional de Justiça previram a realização da audiência de custódia tanto para as pessoas presas em decorrência de prisão em flagrante como nas hipóteses de prisão temporária, prisão preventiva e prisão definitiva.

Na mesma senda, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o Tribunal Federal da 1ª Região e o Tribunal de Justiça da Bahia também garantiram o direito do preso tanto em flagrante como nas demais hipóteses à realização da audiência de custódia. Portanto, a Defensoria fluminense e Eduardo Newton não estão reinventando a roda. Não partem de grau zero. 

Dessarte, o preso em decorrência de prisão temporária, prisão preventiva ou prisão definitiva no âmbito da jurisdição estadual do Rio de Janeiro não terá direito à audiência de custódia. Em contrapartida, o preso, nas mesmas circunstâncias fáticas, sujeito à jurisdição estadual da Bahia ou federal em São Paulo, por exemplo, terá.

Assim, garante-se direito, entendido como essencial e universal, previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos para uns e não para outros. O princípio da igualdade, consistente em tratar os iguais de maneira igual na medida de sua igualdade e os desiguais de maneira desigual na medida de sua desigualdade, cai por terra, se a Reclamação for julgada improcedente.

Aliás, julgando improcedente a Reclamação fluminense, o STF estará dizendo que os tribunais regionais, o TJ da Bahia e o CNJ estão praticando inconstitucionalidades. Tertius non datur. 

Tenho insistido na tese de que estamos condenados a interpretar. E que há — e devem existir — respostas corretas (adequadas à Constituição), que são confirmadas na própria carta política, aquela que garante os direitos fundamentais e humanos para todos os cidadãos.

Não se trata de um embate político, de defesa de posições ideológicas ou de opiniões jurídicas conflitantes; trata-se de viver em uma democracia e tratar todos os indivíduos com igual consideração e respeito. Mesmo que sejam réus. Ou apenas indiciados. Ou presos indevidamente.

E, não esqueçamos: uma prisão indevida pode tanto advir tanto de prisão em flagrante como de temporária ou de preventiva. Ou não é assim?

Por isso, tratemos esse assunto com a necessária equanimidade.

 

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