AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA, COVID-19 E TORTURA

Por Manuela Abath Valença -  

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acaba de publicar dois importantes relatórios sobre prisões em flagrante, audiências de custódia e a pandemia da Covid-19 [1], fruto dos trabalhos do programa Fazendo Justiça [2]. Os dados se referem aos meses de março a dezembro de 2020, quando as audiências estiveram suspensas na maior parte do território brasileiro. O caderno um do relatório apresenta dados preciosos sobre o perfil dos(as) presos(as) em flagrante, os crimes mais frequentes, as decisões mais comuns tomadas pelos(as) magistrados(as), as ações institucionais para fortalecer a proteção social e evitar o encarceramento etc.

As informações apresentadas precisam ser lidas e refletidas por todos e todas nós que atuamos no campo das ciências criminais. Precisamos pensar por que, em 50% de casos, houve decretação de prisões preventivas, mesmo quando a Recomendação nº 62 do CNJ orientava para a máxima excepcionalidade da medida prisional diante do iminente risco de contaminação em nossas superlotadas unidades prisionais. É necessário refletir sobre o fato de 7% dos presos serem pessoas em situação de rua ou ainda sobre 10,2% dos flagrantes serem por crime de furto. Temos de, mais uma vez, procurar entender por que 60,9% dos custodiados são pessoas negras.

Neste artigo, entretanto, a nossa reflexão será sobre tortura e maus-tratos. Segundo as informações constantes no relatório, apenas 1,5% dos presos em flagrante entre março e dezembro de 2020 alegaram ter sofrido algum tipo de violência quando detidos por agentes policiais. Em termos numéricos, de 150.965 custodiados, apenas 2.234 pessoas alegaram terem sido vítimas do uso abusivo da força física por aqueles agentes públicos. Esses números refletem a realidade do Brasil?

Em pesquisas realizadas no âmbito das audiências de custódia em tempos de normalidade, o percentual de pessoas que reportam violência policial chega a superar 20% [3]. Segundo os dados oficiais do CNJ, esse percentual é, em média, de 5% dos casos. A divergência tem uma explicação: nem sempre que o preso relata a violência na audiência essa informação é registrada e, assim, o dado deixa de constar no Sistema de Audiência de Custódia (Sistac), o sistema de informação oficial do CNJ.

De todo modo, o percentual de 1,5% de casos — que, aliás, em alguns estados não chegou nem mesmo a 1% — é alarmante. Ao mesmo tempo, permite-nos concluir que as audiências de custódia presenciais facilitam o registro de casos de violência policial e são um momento imprescindível no fortalecimento dos mecanismos de controle da atividade dos agentes de segurança, apesar dos diversos gargalos e dificuldades enfrentadas e também verificadas em pesquisas anteriores [4].

Para refletir um pouco sobre isso, trago aqui o relato de um caso que acompanhei, como pesquisadora, no ano de 2018, em uma capital de um estado do Nordeste. Iniciada a audiência, Márcio [5], mesmo sem ser indagado pelo magistrado sobre violências ou exações policiais, falou espontaneamente que estava comendo espetinho no centro da cidade quando foi abordado por policiais militares que faziam ronda de rotina. No momento, ele teria dito aos policiais que não havia razão para ser abordado, após o que os policiais teriam começado a xingá-lo, colocando-o no porta-malas de uma viatura e circulado durante duas horas pela cidade, até conduzi-lo finalmente à delegacia. A primeira pergunta que lhe foi feita, após o relato, por um magistrado, foi: "Você sabe o nome do policial?"Márcio prontamente respondeu: "Não sei, mas foram os policiais que me prenderam". O membro do Ministério Público presente nada comentou sobre o ocorrido e o defensor público externou indignação, mas não solicitou formalmente nenhuma providência.

No caso em questão, o custodiado se sentiu violentado e à vontade para falar espontaneamente sobre isso. Mas nem sempre é o que ocorre. "O policial só me deu um tapa" é uma frase que, mudando as palavras, ouvimos de vez em quando ser emitida pelos(as) custodiados(as) quando a questão é se houve violência no momento da prisão. Essa frase pode expressar naturalização em torno da forma truculenta das abordagens policiais no Brasil ou pode sugerir que o custodiado prefere não comentar sobre o assunto por não se sentir seguro e/ou acolhido na audiência.

No "Manual de Prevenção e Combate à Tortura e Maus-tratos para Audiência de Custódia", também uma publicação do programa Fazendo Justiça, há um capítulo dedicado apenas à forma como as perguntas sobre tortura e maus-tratos devem ser formuladas, concluindo que a linguagem acessível, acolhedora e sem uso de tecnicismos pode ser determinante para que alguém fale sobre isso [6].

No caso narrado, a primeira barreira foi ultrapassada e o relato chegou à audiência. Porém, todas as autoridades lá presentes foram relativamente indiferentes à narrativa do custodiado e isso se explica for fatores diversos.

Primeiramente, o custodiado ocupa, na audiência, a posição de preso/criminoso. Esse papel é o oposto do de vítima. Portanto, os agentes que atuam no sistema de Justiça, acostumados à dicotomia "réu versus vítima", têm dificuldade de deslocar aquele preso para o lugar de vítima de algum crime.

Nesse ponto, interessante pensar no arcabouço conceitual utilizado por Poliana Ferreira para pensar a impunidade de policiais militares que matam civis. A pesquisadora usa a ideia de "lógica imunitária" para refletir sobre os diversos processos, estruturas, escolhas, normas e práticas que, em conjunto, acabam por frustrar a investigação ou punição dos policiais, sendo uma delas a de perceber a violência letal promovida pelos policiais como uma reação, pondo, assim, os policiais no lugar de vítimas e o morto no de criminoso [7].

Aquela postura nas audiências de custódia é também alimentada por uma construção social da vítima perfeita, que alija negros e negras — maior parte dos custodiados [8] — desse local. Nesse ponto, fundamental a reflexão que Ana Luiza Flauzina e Felipe Freitas fazem sobre o privilégio de ser vítima em discursos e práticas jurídicas. Eles analisam como a construção da Comissão da Verdade esteve orientada, ainda que por boas intenções, por uma percepção da vítima ideal da ditadura como sendo uma pessoa branca e de classe média. Desse modo, pouca visibilidade foi dada naquele momento às formas de violência cotidiana que antes e durante a ditadura recaiam de modo preferencial sobre homens e mulheres negras. Essa indiferença em relação ao sofrimento negro estaria presente hoje na forma como esses corpos são geridos pelas instancias do sistema penal. Eles concluem:

"A posição da vítima fica interditada dentro de uma narrativa binária na qual os atores envolvidos em práticas criminais são tidos como 'bons' e 'maus' em localizações fixas nas quais para os negros resta apenas o andar de baixo da representação social estigmatizada" [9]

Portanto, para um relato sobre tortura ou maus-tratos chegar a ser registrado, precisará ser ouvido por um profissional que considere grave essa problemática e que acolha o relato do custodiado, independentemente de ele estar cabalmente comprovado ou não, afinal, na audiência de custódia não será processado e julgado o policial eventualmente envolvido no caso, mas apenas registrado e encaminhado o relato para apuração.

No caso de Márcio, a violência sequer foi citada na ata da audiência e na decisão judicial. Às vezes, o juiz chega a mencionar o relato, mas afirma que não tomará providências porque isso ficaria a cargo do juiz natural da causa, sugerindo, assim, que o caso de tortura seria de competência do juiz que apreciará o crime praticado pelo custodiado, em uma suposta reunião de processos que não é nem necessária e tampouco obrigatória, afinal, não é hipótese de conexão.

Antes de concluir, queremos inserir mais um ator no cenário da audiência de Márcio: o Instituto Médico Legal. Como sabemos, os presos em flagrante passam por exames traumatológicos antes de irem às audiências. Porém, o laudo desse exame, que poderia constituir uma prova importante das violências sofridas, nem sempre são encaminhados a tempo para essas audiências. No caso de Marcio, esse laudo não estava à disposição do juiz, do promotor ou de seu defensor.

Reunidas, as ações de policiais, peritos, juízes, promotores e defensores, naquele ato, produziu um resultado imunizante em relação à tortura. Como explicar?

Talvez um dos deslocamentos mais interessantes da analítica do poder de Michel Foucault seja a de pensar o poder para além da noção de soberania. Em aula de 14 de março de 1976, ministrada no Collège de France e publicada no "Em defesa da sociedade", o autor faz cinco advertências para pensar poder. A primeira é a de que ele quer pensar o poder a partir de suas extremidades, superando exatamente essa visão de poder central exercida pelo Estado em direção aos governados. A segunda é a de que ele não quer pensar a finalidade de quem exerce o poder, mas sim quem tem o poder e como ele se expressa em práticas e em regimes de verdade. A terceira advertência é a de que o poder não se constitui como um corpo maciço de um contra outro. Por fim, Foucault afirma desejar realizar uma "análise ascendente do poder", isto é, pensar em como as microrrelações de poder irradiam para práticas de governo mais amplas e gerais, orientando artes de governar [10].

Ao falar em artes de governar [11], Foucault remete a projetos que podem estar em curso com significados apreensíveis, embora não necessariamente pensados antes de serem postos em curso. Como afirma Thomas Lemke, "o Estado deve ser compreendido como uma resultante emergente e complexa de práticas governamentais conflitantes e contraditórias" [12], de modo que, sim, é possível pensar em formas de governar que controlam, disciplinam e gerem a circulação e a sobrevivência de corpos de modo desigual, mas talvez compreender esses processos demande um esforço de chegar mais perto das práticas cotidianas de Estado, como essas, por exemplo, de fazer ou não um laudo ou encaminhá-lo ou não a uma audiência, de ouvir o relato de tortura e ignorar etc.

No Brasil, há práticas espraiadas nas mais diversas dimensões da sociedade mediante as quais a violência se neutraliza ou se naturaliza. Somos uma sociedade amplamente desigual e fundada em hierarquias raciais que conferem humanidade em níveis diversos a sujeitos diversos.

Sendo assim, são várias as expressões de poder nas quais essas desigualdades e hierarquias se expressam, reforçam-se e modelam regimes de verdade [13]. O funcionário do IML, o juiz, o servidor do poder judiciário, o policial... Não existe uma ordem vinda "de cima" orientando cada uma dessas pessoas a não punirem a tortura, mas essas técnicas de poder, essas relações dissimétricas existem e se reproduzem não punido a tortura. De um modo geral, aqueles servidores, embora não se conhecendo ou se articulando entre si, afirmam de modo uníssono: nem toda tortura é grave, nem todas as pessoas poderão ser protegidas pela lei de tortura, a despeito de a lei (os textos legais) dizerem o oposto. Portanto, elas conferem efeitos de Estado que implicam impunidade de agentes públicos.

As audiências de custódia permitem um encontro face a face dos diversos profissionais e de um preso. Um encontro que pode ter um desfecho muito distinto do narrado no caso de Márcio se um juiz, um promotor ou um defensor decidir tomar providências, o que ocorre em muitas audiências no Brasil. Um espaço que pode permitir uma ruptura na lógica segundo a qual a tortura nem sempre será punida, apesar de todas essas dificuldades e ainda desafios a serem enfrentados. O que, entretanto, os 1,5% acima referido sobre casos de violência nas prisões em flagrante durante a pandemia nos diz é: precisamos de audiência de custódia. Mais: precisamos de audiências de custódia com presença física dos réus. É uma condição sem a qual daremos muitos passos atrás nos mecanismos de prevenção e de combate às diversas formas de violência institucional no Brasil.

 

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