COMOÇÃO COM REPORTAGEM DO “FANTÁSTICO” E VIOLAÇÃO À CORRESPONDÊNCIA DOS PRESOS

Por José Flávio Ferrari Roehrig e Luís Carlos Valois -  

A matéria jornalística veiculada no "Fantástico" no último dia 1º de março de 2020 sobre a situação das mulheres trans presas comoveu parte da sociedade e, em decorrência, motivou pessoas sensibilizadas com o que viram e ouviram a escreverem cartas ao grupo de vulneráveis representado na matéria, sobretudo à Suzy Oliveira, mulher presa há 8 anos sem receber visitas de amigos e familiares. Após a reportagem, a secretaria de segurança pública de São Paulo disponibilizou endereço para o envio das cartas.  

Para além das críticas envolvendo a forma de exposição da situação dos vulneráveis, romantizando e mitigando os verdadeiros problemas estruturais do cárcere, a reportagem aumentou a visibilidade ao grupo de vulneráveis antes esquecidos, ignorados e mantidos escondidos das cifras negativas do sistema carcerário. 

O objetivo deste texto é tanto atualizar o quadro legal a partir do veto 45/2019, tema tratado no apagar das luzes do ano passado, reforçando o posicionamento construído na ocasião, quanto alertar aos interessados em encaminhar suas cartas sobre a probabilidade de violação de suas correspondências e intimidade. 

No dia 26/11/2019 publicou-se no Diário Oficial da União a Lei 13.913/2019, sancionada pelo presidente da república, posteriormente corrigida em edição extra, na qual se veiculou a Mensagem 616, de 25/11/2019 (veto 45/2019), vetando integralmente a lei aprovada em ambas as casas do Congresso Nacional. 

A votação sobre a manutenção do veto foi submetida à sessão conjunta do Congresso Nacional no dia 12/02/2020 e mantido a partir de votação exclusiva no Senado Federal. Dos 57 votos contabilizados, 48 deles mantiveram o veto, enquanto apenas 8 tendiam para a derrubada do veto presidencial. Um senador se absteve de votar. 

Os parlamentares pouco discutiram sobre o tema em questão, isto é, ao voltarem o foco em outra importante matéria, não discutiram a causa com profundidade, tampouco com o zelo que ela necessitava.  

Algumas falas retrataram um pouco o cenário das votações. O senador Major Olimpo (PSL-SP) em defesa do veto disse: "Não podemos dar salvo conduto à criminosos"; acompanhado pelo Deputado Capitão Augusto (PL-SP): "A lei não favorece o cidadão de bem. Só favorece as facções criminosas". 

Por outro lado, em oposição ao veto se manifestaram os deputados Glauber Braga (PSOL-RJ) e Hildo Roda (MDB-MA), este último tecendo a seguinte assertiva: "Para a violação às correspondências é preciso ter critério". 

Comungamos com este último posicionamento, tal como retratado no artigo anterior (25/12/2019). Em síntese, o retrato atual permite aos funcionários penitenciários, de qualquer escalão, violar as correspondências dos presos ao seu bel prazer, sem necessariamente comunicar suas ações ao superior hierárquico ou ao Poder Judiciário.A quase lei, embora ainda autorizasse a violação pelo Diretor da Unidade Prisional que custodia a pessoa presa – medida inconstitucional, por se tratar de competência exclusiva do Poder Judiciário – exigia requisitos para tanto, bem como, uma vez feito, impunha comunicação imediata ao Poder Judiciário para controle do ato. 

Persistiu o veto, de tal modo que as correspondências dirigidas a ou emitidas por pessoas presas podem ser violadas e lidas por qualquer funcionário da administração penitenciária, sem que haja o mínimo de indício de perigo. Isto é, a regra continua ser a violação das correspondências. 

Apesar da superficialidade e celeridade do debate, os efeitos não demoraram a surgir. 

Na casuística retratada, vale ressaltar, de pessoas sensibilizadas com a situação das mulheres trans presas no sistema carcerário que queiram encaminhar cartas e mensagens para elas, mostra-se provável que outras pessoas além da destinatária também saibam o conteúdo da correspondência. 

A hipótese somente reforça a fragilidade dos motivos determinantes para o veto, de que a exigência de requisitos para a violação das correspondências “agravará a crise no sistema penitenciário do país, impactando negativamente o sistema de segurança e a gestão dos presídios”, e também da falácia sustentada durante o breve debate no Congresso Nacional sobre o veto, de que a lei conferiria “salvo conduto à criminosos" e de que "a lei não favorece o cidadão de bem. Só favorece as facções criminosas". 

Violar correspondências cujo teor é propriamente de amor, solidariedade, empoderamento, conforto etc., não agrava a crise do sistema penitenciário. A crise do sistema penitenciário quem o faz é próprio Estado a partir de sua necropolítica, seletividade penal e pela necessidade de controle dos corpos. 

Sob o prisma defendido no veto, de que a crise no sistema penitenciário é impulsionada por motins, violências internas e pela existência de facções criminosas no sistema penitenciário, a criação imaginária igualmente não subsiste, pois as correspondências afetivas minimizam sentimentos decorrentes dos constantes abusos estatais e da precariedade percebidas no sistema penitenciário, já classificado com um: 

“quadro de superlotação [...] estrutural e sistêmica. Estrutural porque a superlotação se tornou, ao menos nas últimas décadas, a tônica de nosso sistema, evidenciando seu mau funcionamento crônico. [...] Sistêmica porque a superlotação no Brasil jamais foi pontual ou local, mas sim espraiada por todos os Estados da Federação”.  

Ademais, ainda a partir da hipótese recortada, violar a correspondências afetivas encaminhadas por pessoas sensíveis à situação das mulheres presas, seja a partir de sua leitura indiscriminada, seja por sua retenção, impedindo-a de chegar à sua destinatária, em nada favorece as facções criminosas ou confere salvo conduto a criminosos, mas tão somente conforta a pessoas presas e dá um mínimo da atenção e assistência que incumbiria ao negligente Estado. 

Nota-se, mais uma vez, que a medida tomada como regra, de que todas as correspondências dirigidas às pessoas presas possuem conteúdo criminoso, voltado às pessoas faccionadas e visando a manutenção das organizações criminosas, é uma verdadeira exceção. Logo, mais uma vez afirma-se que somente a partir de critérios e requisitos poder-se-iam violar as correspondências das pessoas presas. 

A partir do método hipotético-dedutivo, portanto, percebe-se que o desate à hipótese levantada não poderia ser pior. Pessoas sensibilizadas com a vida de mulheres trans presas que enviarem suas cartas, antes de chegarem à destinatária, terão suas cartas afetivas lidas por funcionários públicos do departamento penitenciário, isso se não forem retidas e destruídas. 

A depender do teor da carta, aliás, será possível instaurar investigação criminal para apurar eventual ocorrência de crime. 

Finalmente, necessário esclarecer que não se pretende impedir, frear ou coibir a disseminação de afeto às pessoas presas, muito pelo contrário, mas também alertar sobre a probabilidade de o conteúdo da correspondência ser lido e registrado, em visível ofensa desmedida e desregrada à intimidade.

 

 

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