Disseminar a tese da pena mínima para réu inocente é retrocesso doloroso

José Roberto Batochio -

A cortina de ferro que cerca o polvo tentacular das chamadas “forças-tarefa” continua a surpreender o mundo jurídico com suas asperezas. As últimas e inquietantes notícias procedem da 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que condenou o ex-governador Sérgio Cabral a 45 anos de reclusão por corrupção, e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que, ao examinar a apelação do ex-ministro José Dirceu, colheu o voto do desembargador-relator julgando pela duplicação da pena de 20 anos a que foi ele condenado em um dos controvertidos processos conduzidos pela brigada de Curitiba. Em vez de 20, num só processo, querem apená-lo com 41 anos. Chegamos ao indicador sancionatório de quatro décadas!

Sentença de 40 anos a réus de 60 ou 70 é prisão perpétua — pena que só se cumpre com a vida e se paga com a morte. No Direito Penal do Brasil, quanto maiores a idade e a pena, menores são as possibilidades de o condenado ter efetivo acesso à progressão, isto é, a benefícios como o regime aberto. Um idoso condenado a quatro décadas dificilmente sairá do cárcere, a não ser para o cemitério.

Sem qualquer quebra de respeito, oportuno se faz mencionar que, em um tribunal imparcial e sereno, onde imperem somente a lei e as provas, Dirceu, por exemplo, não seria condenado nem a pena alternativa — mas foi o que ocorreu no caso “mensalão”, com base em uma incabível e deformada “teoria do domínio do fato”. Ora, a conduta delituosa abstrata desenhada na norma incriminadora (tipo penal) é a luva do crime onde a mão do agente deve caber; se a ela não se ajusta, ele é inocente. Nos recentes processos da “operação lava jato”, não se elencaram provas capazes de sustentar duas exageradas condenações — uma a dez, outra a 20 anos e dez meses de prisão, pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa — e aqui parece que não foi possível se condenar pela coqueluche delitiva do momento, “embaraço de investigação”, alcunhada “obstrução de justiça”, a mãe de todos os crimes, punida com até oito anos de reclusão. O rol de imputações figura no kit sentença de que acusadores implacáveis — depois juízes “combatentes” —, lançam mão antes mesmo de ligar o gravador para registrar elementos indiciários de suas investigações ou preencher sentenças de gabinete.

A pena máxima no Brasil é de 30 anos, para crimes de gravidade extrema, homicídio qualificado, por exemplo, o topo da tutela que o Direito Penal confere a bens jurídicos fundamentais, no caso, a vida humana. Com esse teto, ninguém também pode ficar preso por mais de 30 anos, daí o artifício de a acusação imputar um obeso conjunto (combo) de crimes num só processo, para que a soma das penas resulte elevada, o condenado seja privado dos benefícios da progressão e mofe eternamente na cadeia.

No Direito Comparado, soa disparate condenar alguém a quatro décadas de cadeia por suposta corrupção (exceção feita, talvez, aos Estados Unidos de Donald Trump). No caso de um tribunal de segundo grau, produz-se o exemplo acabado de emenda pior que o soneto. Assoalha a dialética de Hegel que “a pena é a negação da negação do Direito”. Tem a função de reafirmar a ordem jurídica ancorada na vontade geral da nação e não de satisfazer a inclinação expiatória de julgadores — os de togas e os das ruas. Desde Platão, passando pela Carta Magna da Inglaterra de 1215, se estabelece que a punição deve ser justa e proporcional ao delito. A pena exagerada atenta contra a sábia e sedimentada trajetória da Civilização, que há muito superou o talião, o despique da vingança, o castigo-bumerangue aplicado como ferrete do forte sobre o fraco.

Ao gosto pelo polo mais pesado da lei, a pena máxima, acrescentam-se como agravantes in pectore a “convicção” de acusadores e juízes, forjada em suposições, conjecturas e inferências cevadas à revelia das provas. Atropelos de jurisdição, como juizados universais que centralizam ações acerca de delitos ocorridos em qualquer ponto do território nacional, desrespeitando o princípio do juiz natural e impondo a figura do Juiz-Sol, são tolerados em nome da justiça, mas na verdade esta fica comprometida quando a lei é atropelada. Passa da hora de os tribunais superiores reporem a ordem legal, mas é fato que as violações ao Direito tanto se entranharam que desafiam até a coragem dos que têm o poder de restaurar a justiça. Ignora-se a lição do Padre Vieira: “A omissão é um pecado que se faz não fazendo...”.

Contra o ex-ministro, ímpeto condenatório é até compreensível. Convencido de ser um réu de opinião, não abjurou suas crenças nem desfez sua bagagem ideológica na alfândega dos inquisidores. A História mostra que o réu (e antes dele, o preso) mais altivo é o mais visado e tratado a ferro e fogo, por exemplaridade.

Quando se examinam certas decisões judiciais do Brasil contemporâneo, forçoso é concluir que até o Tribunal de Nuremberg parece mais compassivo, a despeito das candentes críticas que lhe endereçou Hannah Arendt quanto aos desvios jurídicos nos critérios de fixação da responsabilidade. Instaurado em 1945 para julgar próceres do nazismo, por crimes de guerra e contra a Humanidade (haveria outros mais graves?), a corte de, digamos, exceção, claramente constituída para chancelar punições, de fato condenou 12 réus à forca e três à prisão perpétua, mas outros receberam condenações de apenas dez anos e, surpresa ainda maior, três foram absolvidos, entre estes Hans Fritzsche, o segundo de Joseph Goebbels no Ministério da Propaganda do III Reich. Fazendo uma boutade histórica, poder-se-ia dizer que isso só foi possível porque determinados juízes do Novo Mundo não estavam a compor aquele histórico conselho de sentença...

Seria doloroso retrocesso disseminar-se entre nós o estranho e iníquo bordão do julgador implacavelmente punitivo: “Comigo é assim, réu inocente recebe a pena mínima...”.

 

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