JULGAMENTO DO RÉU NO JÚRI COM ROUPA DE PRESIDIÁRIO É INCONSTITUCIONAL

Por Alan Paiva -  

No mês de março, protocolei pedido de providências no Conselho Nacional de Justiça – CNJ (PP 0001837-56.2019.2.00.0000) informando que, em São Luís/MA, os presos geralmente são julgados pelo Tribunal do Júri usando a vestimenta do presídio (chinelos, bermuda e camisa de cor laranja com a inscrição “interno” em letras garrafais), em flagrante violação dos direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição Federal de 1988 e em tratados internacionais assinados pelo Brasil. 

Cumpre observar que a apresentação do acusado perante o conselho de sentença nessas condições pode ser determinante para o resultado do julgamento com graves consequências para sua vida e sua liberdade. Por isso, deve ele sempre comparecer ao julgamento utilizando roupas comuns, à sua própria escolha, que podem ser cedidas pela família, jamais devendo se apresentar diante dos jurados trajando uniforme da penitenciária. 

As Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela), que segundo o Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, podem e devem ser utilizadas como instrumento a serviço da jurisdição, expressamente estabelecem, no item 19.3, que: 

“Em circunstâncias excepcionais, sempre que um preso se afastar do estabelecimento prisional, por motivo autorizado, deverá ter permissão de usar suas próprias roupas ou outra que seja discreta.” 

A Constituição Federal estabelece, em seu art. 5º, inc. III, que “ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante”. Tal princípio encontra-se inscrito na Convenção Americana de Direitos Humanos (“Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano – art. 5º”) e nas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Presos (“todos os presos devem ser tratados com o respeito devido a seu valor e dignidade inerentes ao ser humano – Regra 1”). 

A nossa Carta Magna estabelece ainda o princípio da presunção de inocência, segundo o qual “ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Art. 5º, inc. LVII). Como parece óbvio, é difícil considerar inocente quem já se apresenta para julgamento pelo Tribunal do Júri como criminoso. Nesse caso, presume-se não só a culpa do acusado, mas também o risco que ele oferece à sociedade, sendo quase certa sua condenação pelo conselho de sentença. 

Vale observar que os presos chegam algemados ao plenário do Júri, o que contribui para que sejam vistos como culpados e perigosos antes mesmo de sentarem no famigerado banco dos réus.

O referido procedimento, adotado nas varas do Júri da capital maranhense, viola igualmente a garantia da plenitude de defesa prevista constitucionalmente (art. 5º, inc. XXXVIII, a, da CF). Com efeito, a Constituição Federal assegura a todo acusado a ampla defesa e os recursos a ela inerentes e, no caso específico do Tribunal do Júri, vai além, assegurando-lhe a plenitude de defesa, privilegiando-o em relação à acusação, pois é a parte mais fraca da relação processual penal. 

Além de constituir obstáculo ao exercício da defesa plena, o fato de o réu ser julgado com as roupas de presidiário o coloca numa indisfarçável posição de inferioridade e submissão em relação à acusação que saberá tirar vantagem da situação junto ao conselho de sentença. Desse modo, não é difícil concluir que o comparecimento do réu diante dos jurados vestindo as vistosas e constrangedoras roupas do presídio – com a cor laranja e a inscrição INTERNO nas costas – dificulta sobremaneira o exercício do papel do defensor que se vê diante dessa evidente e inaceitável disparidade de armas. 

Sob outro aspecto, não se pode olvidar que, muitas vezes, como sabem os profissionais que atuam no Tribunal do Júri, o réu já chega condenado ao local de julgamento, seja pela mídia, seja pela gravidade da imputação. Em situações como essa, incumbe ao advogado afastar as primeiras impressões e as naturais prevenções dos juízes leigos. Isso se torna quase impossível quando o réu surge diante dos jurados algemado e usando as roupas do cárcere, dando-lhes a impressão de ser um criminoso perigoso que não pode, em hipótese alguma, deixar a prisão onde se encontra. Nesse caso, o hábito faz o monge e ele acaba sendo julgado pelas suas aparências em plenário. 

O julgamento do réu com as roupas de presidiário também afronta a dignidade da pessoa humana, que foi elevada à categoria de valor fundamentador do nosso sistema de direitos fundamentais (Art. 1º, III, CF) e constitui a viga mestra de todo o arcabouço jurídico, estando na base do Estado Democrático de Direito. 

Como adverte o ilustre penalista espanhol José Cerezo Mir, “Se o Direito não quiser ser mera força, mero terror, se quiser obrigar a todos os cidadãos em sua consciência, há de respeitar a condição do homem como pessoa, como ser responsável”, pois “no caso de infração grave ao princípio material de justiça, de validade a priori, ao respeito à dignidade da pessoa humana, carecerá de força obrigatória e, dada sua injustiça, será preciso negar-lhe o caráter de Direito” (Curso de Derecho Penal Español, P. G. , Vol. I, Madrid: Tecnos, 1985, p. 18). 

Esse procedimento infringe ainda a necessária isonomia porquanto os acusados que respondem ao processo em liberdade comparecem ao Tribunal do Júri com roupas comuns, enquanto os encarcerados se apresentam para julgamento em condição humilhante e vexatória, situação essa que certamente influi no ânimo dos jurados que, como juízes leigos, julgam de consciência, sem apego legal ou doutrinário. 

Rômulo Luis Veloso de Carvalho, Defensor Público no Estado de Minas Gerais, ao escrever sobre o tema, observou com razão que: 

“É preciso sempre lembrar que os jurados julgam por íntima convicção e não possuem capacitação técnica para manter distanciamento da tentação de condenar o acusado que se apresenta com uniforme do presídio. No imaginário popular, quem está preso é porque merece. Os defensores públicos que já realizaram julgamentos com pluralidade de réus, em que parte dos acusados se encontra presa preventivamente e outra parcela respondendo em liberdade, sabem perfeitamente a diferença de tratamento dispensado, como regra, pelo tribunal popular.” (O Tribunal do Júri e a Defensoria Pública. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 43) 

O Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em decisão de 12/8/2019, no julgamento da Apelação Criminal nº 0001188-72.2012.8.10.0060, relator o desembargador Josemar Lopes Santos, anulou julgamento do Tribunal do Júri no qual o réu permaneceu com as roupas de presidiário, concluindo que: 

“A submissão do acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri popular utilizando vestes de interno do sistema penitenciário, em contraposição á irresignação da defesa técnica quanto a referido fato, leva à anulação da sentença e do respectivo ato processual, diante da clara violação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia, da vedação ao tratamento desumano ou degradante e da vedação a direitos fundamentais, posto que tal ocorrência gerou desnecessária estigmatização prévia do apelante perante o Conselho de Sentença, a denotar clara infração à garantia da paridade de armas no processo penal. 

Em 13/8/2019, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RMS nº 60.575/MG, do qual foi relator o ministro Ribeiro Dantas, anulou julgamento no qual o juiz indeferiu genericamente pedido da defesa para que o réu se apresentasse no plenário do Tribunal do Júri com roupas civis, entendendo que houve cerceamento da plenitude de defesa do réu. 

A súmula vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe sobre o uso de algemas, resultou também da permanência de acusados algemados, sem necessidade, durante todo o julgamento pelo Júri, em flagrante desrespeito à dignidade da pessoa humana, bem como à plenitude de defesa. O mesmo se aplica ao julgamento do réu com a vestimenta do presídio que, assim como as algemas, constitui manifesto e inaceitável símbolo de culpa a influir no ânimo e, consequentemente, na decisão dos jurados. 

O Supremo Tribunal Federal, através do voto do Ministro Marco Aurélio Mello, cujas considerações sobre o uso de algemas no Tribunal do Júri se aplicam perfeitamente ao uso das vestes do presídio, assim decidiu:  

“Em primeiro lugar, levem em conta o princípio da não culpabilidade. É certo que foi submetida ao veredicto dos jurados pessoa acusada da prática de crime doloso contra a vida, mas que merecia tratamento devido aos humanos, aos que vivem em um Estado Democrático de Direito. (...) Ora, estes preceitos – a configurarem garantias dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no País – repousam no inafastável tratamento humanitário do cidadão, na necessidade de lhe ser preservada a dignidade. Manter o acusado em audiência, com algema, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante. O julgamento no Júri é procedido por pessoas leigas, que tiram as mais variadas ilações do quadro verificado. A permanência do réu algemado indica, à primeira visão, cuidar-se de criminoso da mais alta periculosidade, desequilibrando o julgamento a ocorrer, ficando os jurados sugestionados.” (HC 91.952, rel. Min. Marco Aurélio, j. 7.8.2008, DJE 241 de 19.12.2008). 

De igual modo, constranger o réu a usar, no momento do julgamento que definirá o seu destino, a vestimenta própria do cárcere, constitui medida que viola o tratamento humanitário devido a todo cidadão, mormente aquele submetido a um processo criminal, ferindo sua dignidade como pessoa humana e colocando a defesa em situação inferior no plenário do Júri. Ademais, exerce sobre os jurados pressão indevida e afeta, sem sombra de dúvida, sua imparcialidade, sem a qual não é lícito falar em julgamento justo. 

Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa, em brilhante artigo sobre o assunto publicado na Conjur em 16/8/2019, ressaltaram que “a luta por tal situação é antiga, como os pleitos dos advogados Alan Paiva e Sandra Fonseca, porque se a algema antecipa a compreensão de culpa, nos termos da Súmula vinculante 11, qual a diferença da roupa de preso?”. 

No início deste terceiro milênio, não é mais possível compactuar-se com práticas inquisitivas que ainda tratam o réu como mero objeto do processo e não como sujeito de direitos consagrados na Constituição e nas leis do país. A situação humilhante e degradante em que os réus presos são submetidos a julgamento no Tribunal do Júri de São Luís constitui grave ofensa ao Estado Democrático de Direito. 

Ressalte-se que nenhuma razão de segurança justifica esse procedimento, sobretudo considerando que os presos chegam ao Forum algemados, sob forte aparato policial, e assim permanecem até ordem judicial em contrário. Inexiste, portanto, qualquer motivo para serem submetidos a julgamento com os trajes da prisão, medida que acarreta prejuízo para a defesa e atinge, em sua grande maioria, os réus pobres que constituem a verdadeira clientela do nosso sistema prisional. 

Diante disso, devem ser tomadas as providências cabíveis para fazer cessar essa prática que viola os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), nas Regras de Mandela da ONU e em outros tratados internacionais assinados pelo Brasil, assim como tem produzido graves e irreparáveis injustiças nos julgamentos realizados pelo Tribunal Popular.

 

 

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