No processo penal, Ministério Público não é fiscal, é acusador

Flavio Meirelles Medeiros -

Discute-se de longa data, na doutrina, se o Ministério Público, no processo penal, é parte ou fiscal da lei. A afirmação de que o MP é fiscal da lei é insustentável.

Quem é parte em processo judicial? É parte quem dele participa interessadamente, ou seja, com interesse, pouco importando se o interesse é próprio ou de terceiro. Sim, quem representa terceiro também é parte, pois age no processo interessadamente e, logo, com parcialidade. O interesse provoca a parcialidade, e essa é inerente ao conceito de parte. Incumbe, no processo penal, à acusação velar pelo interesse social de punição dos culpados, e à defesa, o encargo de proteger o interesse social de absolvição dos inocentes. Assim, o MP não é fiscal da lei nem age no processo como custos legis, já que, representando interesse, não é imparcial. Se fosse imparcial, não seria parte. Se fosse imparcial, não precisaria juiz. Imparcial é o juiz. A função de ser imparcial pertence ao juiz, não ao Ministério Público, e não pode esse órgão tentar usurpar a função jurisdicional.

O MP não é, nem pode nem deve, ser imparcial, do contrário não haveria o indispensável contraditório no processo penal. A ação penal, o processo penal, funda-se na dúvida quanto à relação jurídica que vincula o Estado ao acusado, se é aquela relação jurídica em que o Estado detém o direito de punir (se o acusado é culpado — sujeito passivo da relação), ou se é aquela outra em que o acusado detém o direito de liberdade (se o acusado é inocente — sujeito ativo da relação). Havendo essa dúvida, é pacífico, e é da sistemática da ordem processual, o MP deve acusar. Diante da prova duvidosa, deve denunciar. Na dúvida, deve fazer a persecução do delito.

O MP só seria imparcial se, diante da dúvida, estivesse obrigado a pedir a absolvição, ou a recorrer em favor do condenado, o que não ocorre. Excepcionalmente, quando as provas, com um bom grau de certeza, indicam a inocência do acusado, o MP pode pedir a absolvição. Pode até mesmo, nessa hipótese, recorrer em favor do acusado, buscando o reconhecimento de sua inocência. Mas essas faculdades não constituem razões suficientes para considerar o MP como fiscal da lei, já que não são propriamente consequência da lei processual, mas derivam do fato de que ninguém pode ser obrigado a fazer algo que viole a sua própria consciência.

A tudo isso poderia ser acrescentado o aspecto psíquico. O MP acusa com muita frequência (no seu dia a dia), e para acusar é preciso raciocinar de maneira investigativa (é preciso partir de hipóteses de comportamento criminoso), e, sabe-se, essa forma de pensar acaba condicionando o juízo, o que torna muito difícil ao acusador, mesmo que queira, formar convicções isentas de parcialidade (condicionamento semelhante vale para o defensor). É justamente por essas razões de ordem psíquica que o sistema acusatório demonstrou-se no curso da história muito superior ao sistema inquisitivo para chegar mais próximo da verdade do que o inquisitivo (no inquisitivo, para julgar, antes o inquisidor precisa elaborar hipóteses acusatórias e investigar as respectivas provas).

Por todos esses motivos é que não nos convence a ideia de que o MP, mesmo atuando perante o tribunal, figure como custos legis. Essa é uma ficção criada pela doutrina e pela jurisprudência. A prática confirma nosso entendimento, já que a imensa maioria dos pareceres do MP em 2ª instância são no sentido de confirmar e/ou reforçar a tese acusatória apresentada nas razões ou contrarrazões da acusação lançadas em 1ª instância.

Além do mais, o procurador de Justiça ou procurador regional da República que atua perante o tribunal continua sendo membro do Ministério Público, mesma instituição a que pertencem os colegas que firmam as razões recursais. Essa posição, a de pertencer ao MP, instituição encarregada da persecução de delitos, acrescida do fato de que quem oferece razões ou contrarrazões ao recurso ser um colega, retiram do procurador a possibilidade de ser isento.

São compreensíveis as razões de o MP defender a tese de que é fiscal da lei: concede mais credibilidade às suas manifestações. Mas, se formos considerar o MP fiscal da lei, ele o é tanto quanto o defensor. Um fiscaliza a lei que manda punir os culpados, e outro que manda absolver os inocentes. Ambos são xerifes da lei penal. Ambos possuem direito à estrela no peito. O MP é fiscal das tipicidades da lei penal, a defesa dos vácuos existentes entre as tipicidades, e também da efetividade das normas excludentes de tipicidade, de antijuridicidade, de culpabilidade e extintivas de punibilidade. Das tipicidades nasce o direito de punir. Nos buracos negros situados entre os tipos penais brota o direito de liberdade. A propósito, se for para estabelecer comparações, dá para sustentar que a defesa é mais fiscal da lei que o MP. Merece, portanto, uma estrela maior em seu peito.

O que é mais grave? O que viola com maior intensidade a ordem jurídica? Um culpado inocentado ou um inocente condenado e cumprindo pena por algo que não fez? Da resposta dá para extrair a conclusão que o bem jurídico fiscalizado pela defesa (a liberdade do inocente) constitui bem maior do que o fiscalizado pela acusação (a punição do culpado). É conclusão que pode provocar estranheza em alguns, o que é explicável tendo em consideração que se vive ultimamente um período de excepcionalidade, repressivo e punitivo, em que as leis não mais governam os homens, mas alguns poucos homens governam as leis.

 

Comments are closed.