O ABSURDO TEVE VEZ EM 2020 NA JUSTIÇA CRIMINAL

Por José Roberto Coêlho Akutsu e Renato Stanziola Vieira -  

"Não há nada de tão absurdo que o hábito não torne aceitável". A frase, escrita por Cícero há mais de 2 mil anos, por vezes parece ter sido concebida a partir de observações empíricas dos acontecimentos do Brasil. Em 2020, a área Criminal, mas não só ela, foi uma das mais movimentadas da Justiça, e desde o início do ano.

No período em que uma grave pandemia assolou o planeta com notícias diárias sobre infectados e mortos pela doença viral, por aqui vivenciamos verdadeira revolução digital ensaiada pelo Poder Judiciário brasileiro há tempos e implementada parcialmente em 2020. Há sempre uma perspectiva positiva mesmo em momentos tão difíceis como os que vivemos. Outras, nem tanto.

Quando a tal pandemia ainda era coisa dos noticiários e parecia estar longe de nos atingir, o jornalista americano Glenn Greenwald (junto com outras seis pessoas) foi denunciado por suposta participação no caso dos hackers que invadiram dispositivos de celulares de autoridades — notadamente aquelas relacionadas à operação "lava jato" — e divulgaram ao The Intercept Brasil o conteúdo das mensagens privadas.

À parte as nuances das mensagens trocadas por aquelas autoridades, com ampla demonstração de verdadeira parceria entre acusação e juiz, fato é que a tentativa de ver deflagrada ação penal em desfavor do jornalista que divulgou o material já parecia ser um indicativo de que o ano não seria fácil.

Aquela acusação, é preciso dizer, foi rejeitada no tocante ao jornalista já no início de fevereiro. De todo modo, a própria apresentação de peça acusatória em desfavor do profissional da imprensa, ainda que existentes sinais de "instigação" da parte dele à invasão, aparentava ser uma decisão menos Jurídica e mais política.

Ainda em janeiro, foi proferida decisão monocrática pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli — posteriormente chancelada também de forma monocrática pelo hoje presidente da Corte, ministro Luiz Fux — que simplesmente suspendeu a entrada em vigor das regras do juiz de garantias, uma das auspiciosas novidades trazidas pelo "pacote anticrime".

A decisão é digna de crítica sob diversos aspectos, destacadamente pelo monocratismo e, ainda mais grave, pelo flagrante desrespeito à decisão do Congresso Nacional que inseriu tal instituto no ordenamento Jurídico brasileiro, sem falar no ritmo vagaroso para que a decisão liminar seja apreciada por órgão colegiado do STF, o que passados 11 meses ainda não ocorreu.

O mês de fevereiro foi marcado pela participação do mandatário da República em manifestações que propalavam ideias antidemocráticas, como o próprio fechamento do Congresso Nacional e da Suprema Corte. A inusitada situação de ver um cidadão eleito pelo povo defendendo ideias divorciadas da democracia certamente ficará registrada na história da República e é alvo de investigação perante o STF.

Com o aumento da contaminação da Covid-19 no Brasil, novo episódio político-jurídico foi analisado pelo STF. Diante das conflitantes manifestações de representantes do governo federal e de governos estaduais, o STF decidiu que Estados e municípios poderiam regulamentar medidas de isolamento social, fechamento de comércio e outras restrições, em contraponto ao que defendia a presidência da República, que argumentava que lhe caberia quais serviços deveriam ser mantidos ou não durante o período de quarentena.

A decisão — que claramente apontava como concorrente as competências dos diferentes entes — foi politicamente desvirtuada e por vezes divulgada como se a Suprema Corte tivesse concluído que a competência para tais providências seria exclusiva dos governos estaduais e municipais, o que efetivamente nunca foi dito.

Já durante o mês de abril foi que se deu a barulhenta saída do ex-juiz Sergio Moro do cargo de ministro da Justiça. Em entrevista dada à imprensa e divulgada ao vivo por diversos meios de comunicação, o ex-juiz, ex-ministro e agora 'consultor' afirmou que teria ocorrido tentativa de ingerência do presidente da República nas escolhas que caberiam ao ocupante da pasta, especificamente a escolha do superintendente da Polícia Federal. O interesse, veio a saber-se depois, tinha como ponto crucial a expectativa do mandatário em ser municiado de informações e relatórios elaborados por aquele órgão por meios não oficiais.

Após os primeiros desdobramentos do caso, foi instaurado inquérito policial (com trâmite perante o Supremo Tribunal Federal) para investigar as afirmações do ex-ministro. No mês de maio, ainda no bojo daquela investigação, o então decano do STF, ministro Celso de Mello, determinou o levantamento do sigilo da reunião ministerial em que teria se dado a noticiada 'pressão' para escolha do comando da Polícia Federal. À época, houve quem se disse estarrecido com o conteúdo do encontro e houve, ainda, quem dissesse que não havia qualquer anormalidade na conversa havida entre os presentes.

Ainda naquele mês de maio foi deflagrada a Operação Placebo, que investigou possíveis irregularidades na aquisição de insumos para o combate à pandemia. O governador do Rio de Janeiro foi alvo de medidas cautelares, que culminou com o seu afastamento do cargo — monocraticamente, de novo — em agosto. Embora a decisão tenha sido tomada por ministro do Superior Tribunal de Justiça de forma individual, é imprescindível relembrar que ela foi chancelada por aquele colegiado poucos dias depois.

No mês de junho deu-se a prisão de Fabrício Queiroz, apontado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro como um dos responsáveis pelo caso das rachadinhas (leia-se: pelo menos o crime de peculato) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O caso envolve o filho do presidente da República, o senador Flávio Bolsonaro.

A prisão ganhou especial atenção da imprensa — e dos opositores do presidente — porque cumprida em imóvel pertencente ao até então advogado de Flávio Bolsonaro. Embora não houvesse qualquer irregularidade adicional pela prisão ter se dado no referido local, muito sobre isso se discutiu, notadamente a soltura do investigado, ocorrida três semanas depois em decisão — monocrática — proferida pelo então presidente do Superior Tribunal de Justiça.

Registro importante é que o mesmo pedido de soltura foi manejado por diferentes pessoas, que não tiveram a mesma benevolência do assecla presidencial, embora as situações de fato (coronavírus) e de Direito fossem semelhantes.

Ainda naquele mês de junho, o inquérito das Fake News, instaurado de ofício pelo STF em 2019, foi julgado constitucional pela maioria dos ministros da Corte. Concluíram, inclusive, ser legal a escolha de um dos membros do Supremo para presidência da investigação. Em outros dizeres, permitiu-se a desobediência à regra de distribuição livre que se espera de todo e qualquer caso.

Já no início do segundo semestre, os noticiários cobriram verdadeiro embate entre o procurador-geral da República Augusto Aras e membros da força-tarefa da "lava jato" em Curitiba/PR, com desavenças sobre o acesso e a guarda do material apreendido ao longo das inúmeras fases da operação no Paraná. Chegou-se a discutir qual representante do Ministério Público Federal seria "dono" do calhamaço de documentos probatórios em posse daquele órgão.

Foi notícia, ainda, a humilhação protagonizada por desembargador paulista em desfavor de guarda civil que repreendeu o cidadão por não utilizar máscara, conforme exigia decreto municipal. O magistrado foi afastado de suas funções pelo CNJ, mas segue recebendo sua remuneração mensal.

Em setembro, o então ministro Celso de Mello, ainda como decano da Suprema Corte, determinou que o depoimento do presidente da República no inquérito policial que investiga sua suposta interferência na Polícia Federal, se desse de forma presencial, não sendo possível sua manifestação escrita, tal como pretendia a Advocacia-Geral da União, em mais um episódio de evidente rusga entre os dois poderes.

Já em outubro, o noticiário foi tomado pela celeuma causada pela soltura de cidadão apontado como um dos líderes do PCC, a mais relevante facção criminosa do país. Em decisão monocrática, o ministro Marco Aurélio, do STF, determinou a soltura do traficante. Após o cumprimento da soltura, o presidente da Corte, Luiz Fux, revogou a decisão de seu par e determinou o imediato recolhimento do cidadão, que àquela altura já estava em outro país.

É imperioso citar que a decisão do ministro Fux se socorreu de previsões incabíveis em matéria penal e processual penal, malgrado tenha posteriormente sido levada ao plenário da Corte e confirmada por 9 votos a 1 ainda naquela mesma semana. À parte o acerto ou desacerto de uma ou outra decisão, é fundamental observar que, quando se quer, a decisão monocrática é rapidamente (re)avaliada por órgãos colegiados, a depender quase que exclusivamente da vontade da presidência da Corte.

Em novembro, o país parou para discutir o caso de uma blogueira, que teria sido vítima de crime sexual, e que ainda assim se viu ofendida diversas vezes em audiência judicial em que foi colhido o seu depoimento. Inúmeras foram as críticas, com razão, aos operadores do Direito presentes ao ato, que silenciaram quando o advogado do acusado fazia reprováveis afirmações sobre o seu passado e a sua postura.

Além das já referidas aqui, houve outras tantas decisões, de tribunais superiores ou não, que fizeram de 2020 um ano especialmente difícil. Mês a mês houve sempre pelo menos uma polêmica e, por vezes, verdadeiros absurdos jurídicos, a indicar que o ensinamento de Cícero ainda é assustadoramente atual. Oxalá nunca nos acostumemos com esses absurdos, para que não criemos o hábito de aceitá-los como coisa normal.

 

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