O acordo de não persecução penal e a figura do ‘tráfico privilegiado’

Por Moacir Rogério Tortado e João Filho de Almeida Portela - 

O acordo de não persecução penal (ANPP) foi inserido em nosso ordenamento através da inserção do artigo 28-A ao Código de Processo Penal, com redação determinada pela Lei 13.964/2019, constituindo "(...) um instrumento de ampliação do espaço negocial, pela via do acordo entre MP e defesa, que pressupõe a confissão do acusado pela prática de crime sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima seja inferior a 4 anos (limite adequado à possibilidade de aplicação de pena não privativa de liberdade), que será reduzida de 1/3 a 2/3 em negociação direta entre acusador e defesa" (Lopes Junior, 2020).

Trata-se de negócio jurídico de natureza extrajudicial, necessariamente homologado pelo juízo competente, celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato delituoso, assistido por seu defensor e que confessa formal e circunstanciadamente a prática do delito, sujeitando-se ao cumprimento de certas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Parquet de não perseguir judicialmente o caso penal extraído da investigação penal, declarando-se a extinção da punibilidade caso a avença seja integralmente cumprida (Lima, 2020).

Com efeito, referida medida de autêntica política criminal em prestígio ao ser humano que não é contumaz no mundo criminoso e não tiver sido contemplado com a mesma medida ou com as coirmãs da transação penal e suspensão condicional do processo. É exatamente por isso que se veda o direito ao reincidente e, mesmo sem a recidiva criminal, também está objetada quando elementos probatórios indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas (CPP, 28-A, §2º, II).

Em referido negócio processual e em busca de solução dialogada (NCPC, 6º, 10, 190), também se destaca a participação da vítima, a qual é intimada da homologação, bem assim do eventual descumprimento (CPP, 28-A, §9º)

Sabido que o acordo de não persecução penal pressupõe que: 1) não sendo caso de arquivamento; 2) a confissão formal e circunstancialmente da prática delituosa; 3) infração penal sem violência ou grave ameaça; e 4) pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas.

O importante instituto, destaca-se, oferece ao acordando a manutenção do seu estado de inocência — artigo 8º, 2, PSJCR e CRFB/88, 5º, LVII — e de primariedade, eis que, com o cumprimento, operar-se-á a extinção da punibilidade e não constará dos registros criminais (CPP, 28-A, §§12 e 13).

Contudo, tem-se entendido pela impossibilidade da medida quando já houver admitida a acusação com o recebimento da inicial acusatória, exigência que pode ser extraída apenas de forma implícita pelas diretrizes do artigo 28-A e §7º do CPP.

Trata-se de entendimento que deve ser relativizado no procedimento especial do tráfico ilícito de entorpecente.

Sabido que para aferição da pena mínima cominada ao delito de quatro anos, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto (CPP, 28-A, §1º). Nesse viés, em se tratando de tráfico ilícito de entorpecente, apenas assiste ao ser humano que ocupa o polo passivo da demanda penal, quando se aplica a minorante do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, a qual se vulgarizou chamar de trafico mula ou privilegiado.

Obviamente que, para o juízo e o próprio titular da ação penal chegar a tal conclusão, qual seja, do cabimento da causa de diminuição, faz-se necessária ampla e completa dilação probatória que, por regra, só se mostra acertada à fase da sentença.

Contudo, a exceção da fase processual, presentes os requisitos, além de aplicar a causa de diminuição do §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, deve ser assegurada a medida despenalizadora e desencarcerizadora do ANPP.

Ainda que, numa análise legalista, formal e descompromissada com a vigas da justiça, com facilidade, chegar-se-ia à conclusão que ao acusado não assiste a possibilidade do acordo de não persecução à vista do estágio processual eis que a denúncia foi recebida, não parece ser a conclusão acertada.

Sem ignorar a fase processual, reitera-se, fato é que não se denuncia pela chamada figura privilegiadora — do artigo 33, §4º, da Lei de Drogas —, até pela necessidade, frisa-se, de dilação probatória.

Ocorre que, em casos tais, o direito subjetivo da pessoa acusada surge em uma quadra processual diferida ou postergada que, em tese, não seria mais assegurada.

Contudo, nem por isso o Judiciário, guardião por excelência de direitos fundamentais, deve se apegar exageradamente ao formalismo, a ponto de ficar impedido de fomentar a política criminal e também de resguardar ao acusado o direito que titulariza. Aliás, desde o início da demanda penal já era titular, mas por exagero da imputação apenas se certificou tardiamente.

Cumpre destacar que, afora o comportamento desviado, o acusado não concorreu para tal discrepância.

Por isso, ainda que em outro contexto, é do Livro Sagrado que extrai o dever de dar a cada um o que lhe pertence: "E ele diz-lhes: De quem é esta efígie e esta inscrição? Dizem-lhe eles: De César. Então ele lhes disse: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" (Mateus 22:20,21).

Esse é também o conceito de justiça Eneu Domício Ulpiano, para quem "juris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere", ou seja, justiça é viver honestamente, não lesar outrem e dar a cada um o que é seu.

Não se desconhece, frisa-se, que o STJ tem assentado que "a norma do artigo 28-A do CPP, que trata do acordo de não persecução penal, somente é aplicável aos processos em curso até o recebimento da denúncia" (STJ - EDcl no AgRg no AREsp 1375327/RS, relator ministro João Otávio de Noronha, 5ª Turma, julgado em 2/3/2021, DJe 5/3/2021), hipótese que deve ser relativizada do artigo 33, §4º, da Lei de Drogas.

Aliás, foi exatamente nessa senda de política criminal e de resguardar direitos mínimos do chamado marinheiro de primeira viagem que o Supremo Tribunal Federal deixou de etiquetar como hedionda referida conduta típica porque o tráfico de entorpecentes privilegiado (artigo 33, §4º, da Lei nº 11.313/2006) não se harmoniza com a hediondez do tráfico de entorpecentes definido no caput e §1º do artigo 33 da Lei de Tóxicos eis que o tratamento penal dirigido ao delito cometido sob o manto do privilégio apresenta contornos mais benignos, menos gravosos, notadamente porque são relevados o envolvimento ocasional do agente com o delito, a não reincidência, a ausência de maus antecedentes e a inexistência de vínculo com organização criminosa (STF - HC 118533).

E a medida aqui defendida não se trata de invencionismo e nem mesmo de uma defesa de ativismo judicial exacerbado.

Não custa rememorar, entre tantos avanços propostos pela Lei 9.099/95, destacam-se, no campo penal, os institutos da transação penal (artigo 76) e da suspensão condicional do processo (artigo 89). Aliás, ambos possuem roupagem muito parecida com o chamado ANPP.

Foi exatamente na linha aqui delineada que o STJ aprovou o enunciado de sumula 337, segundo o qual "é cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva".

Para ilustrar, uma desclassificação da imputação de porte de arma de fogo para posse de arma de fogo, de rigor assegurar ao acusado a suspensão condicional do processo, quando preenchidos os demais requisitos. O mesmo se passa numa desclassificação de furto qualificado para furto simples.

Aliás, pela análise dos julgados que levou a edificação do enunciado 337 do STJ, colhe-se que, "ainda que a desclassificação da infração penal se verifique na superior instância, há de haver oportunidade para que se invoque, por exemplo, o instituto da suspensão do processo (Lei nº 9.099/95, artigo 89)" (REsp 679.526/CE, relator ministro Nilson Naves, 6ª Turma, julgado em 19/04/2005, DJ 27/06/2005, p. 465).

No mesmo sentido são os seguintes julgados: STJ - REsp 686.251/MG, relator ministro Felix Fischer, 5ª Turma, julgado em 8/3/2005, DJ 4/4/2005, p. 345; HC 24677 RS, relator ministro Paulo Medina, 6ª TURMA, julgado em 26/8/2003, DJ 5/4/2004; HC 32596 RJ, relatora ministra Laurita Vaz, 5ª Turma, julgado em 6/5/2004, DJ 7/6/2004; HC 24.677/RS, relator ministro Paulo Medina, 6ª Turma, julgado em 26/8/2003, DJ 5/4/2004, p. 329.

Por aqui se ver que a ratio decidendi ou holding [1] que levou a cristalização do enunciado 337/STJ é a mesma que se busca aplicar e preservar ao chamado ANPP.

Ainda que se tenha apontamentos de o STJ bloquear a referida medida aos feitos com exordial recebida, acaba por negar um precedente idealizado (STJ/337) há mais de uma década e que não sofreu efeitos da superação ou dinamização.

Trata-se de um olvide ao dever de coerência.

"O dever que tenho de tratar casos semelhantes de modo semelhante implica que devo decidir o caso de hoje com fundamentos que eu esteja disposto a adotar para a decisão de casos semelhantes no futuro, exatamente quanto implica que hoje eu devo levar em consideração minhas decisões anteriores em casos semelhantes no passado. As duas implicações são implicações de adesão ao princípio da justiça formal; e quem quer que concorde quanto ao dever dos juízes de acatar o principio da justiça formal está comprometido com essas duas implicações" (Maccormick, Neil 2009, p. 96).

Aliás, mesmo reconhecendo o caráter eminentemente processual da norma trazida no artigo 28-A do Código de Processo Penal (acordo de não persecução penal), vem decidindo pela sua aplicação somente aos processos em curso até o recebimento da denúncia. (STJ — AgRg no HC 621.721/SC, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 2/2/2021, DJe 8/2/2021), o que se mostra, data vênia, a toda construção da novatio legis in mellius (CRFB/88, 5º, XL, e artigo 2º do CPB) e também da ampla retroatividade da regra processual penal, notadamente quando favorece a pessoa acusada.

Exatamente nesse contexto que se advoga a ideia de diversificação do judiciário já que mais sólidas serão as decisões que exigem um forte apoio em seu interior. Apesar de se acreditar que um Judiciário diversificado é ruim, pois torna o direito incerto e imprevisível, do ponto de vista não da ordem, mas do conhecimento, existe um grave erro. Um Judiciário diversificado expõe — ainda que ao mesmo tempo reduza — a pobreza intelectual do direito visto como método não apenas de conciliar disputas com autoridade, mas também de oferecer respostas cogentes às questões sociais (Posner, Richard. 2007, p. 613).

Sem fomentar decisionismos ou mesmo liberdade decisória, o óbice precisa ser revisto e distinguido em casos nos quais a certificação do direito ocorre em fase diferida.

Comments are closed.