O direito de chamar o presidente de genocida (e de outras coisas mais)

Por Gustavo Ferreira Santos - 

O país tem assistido ao crescimento do número de casos de atuação da polícia na repressão a manifestações de opiniões críticas ao presidente da República. O youtuber Felipe Neto foi intimado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro por ter chamado o presidente de genocida [1]. Em Uberlândia (MG), depois da prisão de um jovem por ter feito uma postagem que foi interpretada pela polícia como ameaça ao presidente [2], várias pessoas receberam intimações da Polícia Federal por postagens nas redes sociais [3]. Em Palmas, um sociólogo está sendo investigado por ter organizado a publicação de um outdoor onde é dito que o presidente "não vale um pequi roído" [4].

Sabemos que essa investida contra os críticos não é o único ataque à democracia constitucional que testemunhamos recentemente no país. No entanto, é um dos ataques mais perigosos, que merece uma resposta contundente, pois objetiva intimidar os críticos, fazendo com que eles meçam as suas palavras e amenizem os seus discursos. É um ataque que fragiliza um direito fundamental cuja proteção é pré-requisito para a existência da democracia: a liberdade de expressão.

A liberdade de expressão, como direito fundamental, traz a proteção da crítica ao poder em seu núcleo. Ela está em seu DNA. A sua consagração nas declarações de direito é tributária de uma história de resistência às práticas de censura, comuns na idade média. Evidentemente, a proteção à hora e à imagem apresenta-se como um limite à liberdade de expressão, o que justifica que, na legislação penal, existam os crimes de injúria, calúnia e difamação e que, na esfera cível, pessoas sejam condenadas a pagar por danos que suas falas causem a alguém. No entanto, diversos freios devem ser dados à essa "relativização" da liberdade de expressão, para evitarmos o uso de um discurso pretensamente protetivo de direitos como álibi para arrefecer o debate democrático e reduzir a expressão do pluralismo.

No caso brasileiro, há um agravante, que é o uso da Lei de Segurança Nacional para tipificar os supostos crimes de opinião. A incompatibilidade da doutrina de segurança nacional com a democracia é evidente. Ela trabalha com a ideia de um "inimigo interno", figura na qual são encaixados os "dissidentes", os que incomodam o poder. Seus dispositivos que dão ao presidente da República uma proteção especial são claramente incompatíveis com a Constituição da República e com os compromissos internacionais que o Brasil assumiu em matéria de liberdade de expressão.

A crítica à autoridade pública precisa ter uma proteção reforçada em uma democracia. No caso da Lei de Segurança Nacional, ocorre o contrário, são as autoridades públicas que têm a honra e a imagem protegidas de forma especial, em detrimento da crítica.

É compreensível que a crítica ácida cause reação negativa nos que apoiam o governante. Apoiadores de Sarney devem ter se incomodado com a capa do livro "Honoráveis Bandidos", de Palmério Dória. Apoiadores de Fernando Henrique Cardoso não devem ter gostado quando o mesmo Palmério Dória lançou o livro "O Príncipe da Privataria". Apoiadores de Lula, provavelmente, não gostaram quando Diogo Mainardi lançou o "Lula minha anta" ou quando Reinaldo Azevedo escreveu "O país dos petralhas". De 1988 para cá, são inúmeros os impropérios usados por críticos contra os presidentes e outros titulares de cargos nos governos. Com as redes sociais, o cidadão comum passou a ter um meio para, também, ampliar a sua crítica, o que sempre causou incômodos nos atingidos pelas ofensas e nos seus correligionários. No entanto, não deveria ser esse incômodo o melhor conselheiro na hora de reagir aos críticos. Ao contrário, tolerar as críticas, mesmo que recheadas de ofensas, cria um clima positivo de liberdade no debate, que fortalece a democracia e protege todas as posições políticas em disputa, impedindo a persecução penal politicamente seletiva.

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem claro posicionamento — tanto na sua comissão, quanto na sua corte — favorável à retirada de todas as formas de proteção especial à honra de quem exerce uma função pública. Mirando as chamadas "leis de desacato", a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, aprovada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em seu 108º período ordinário de sessões, celebrado de 16 a 27 de outubro de 2000, é peremptória, em seu artigo 11: "Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como 'leis de desacato', atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação" [5].

A Corte Interamericana de Direitos Humanos enfatiza que a assunção de funções públicas não é imposta, mas, sim, é um ato voluntário de quem as aceita. Em uma democracia, quem decide aceitar uma posição de destaque precisa aceitar que será objeto de crítica, inclusive da crítica radical: "Aqueles que têm influência em questões de interesse público expuseram-se voluntariamente a um maior escrutínio público e, consequentemente, correm maior risco de crítica, à medida que as suas atividades saem do domínio da esfera privada e entram na esfera do debate público" [6].

Esse posicionamento é, também, adotado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que afirma que "os limites da crítica aceitável são mais amplos no que diz respeito a um político que exerce a sua função pública do que em relação a um indivíduo privado, uma vez que o primeiro se coloca necessariamente e conscientemente aberto a um escrutínio minucioso de todas as suas palavras e atos, tanto por parte dos jornalistas como da opinião pública em geral, e deve demonstrar um maior grau de tolerância. Um político tem certamente direito a ter a sua reputação protegida, mesmo quando não está a agir na sua capacidade privada, mas as exigências dessa proteção deverão ser ponderadas face aos interesses da discussão aberta de questões políticas" [7].

No Supremo Tribunal Federal, também encontramos julgados que destacam essa menor necessidade de proteger o titular de funções políticas, quando se trata de um debate público, com as pessoas discutindo as suas ações. Isso está claro quando afirma que "a democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático. A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva. (...) O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias" [8]. Podemos destacar, ainda, a afirmação de que "a crítica que os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas, por mais dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos de personalidade. Não induz responsabilidade civil a publicação de matéria jornalística cujo conteúdo divulgue observações em caráter mordaz ou irônico ou, então, veicule opiniões em tom de crítica severa, dura ou, até, impiedosa, ainda mais se a pessoa a quem tais observações forem dirigidas ostentar a condição de figura pública, investida, ou não, de autoridade governamental, pois, em tal contexto, a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender".

A sabedoria popular é capaz de captar essa peculiaridade da função pública, que justifica submetê-la a um escrutínio mais rigoroso, como mostra uma história que me contou minha amiga Tatiana Maia da Silva Mariz, procuradora do município do Recife e neta do ex-governador da Paraíba João Agripino Maia. Um popular que frequentava o palácio do governo foi visto no meio de críticos do governo fazendo um discurso radical de oposição. Confrontado sobre estar ou não satisfeito com o tratamento que lhe era dado pelo governador, ele respondeu: "Ah, doutor, governo é pra sofrer".

Quem chama o presidente de "genocida" não está falando da pessoa privada que exerce a função. Também não está fazendo uma acusação técnica, discutindo a tipificação do crime de genocídio tal qual definido no Estatuto de Roma. Está, certamente, criticando a condução pelo presidente da República das ações de combate à pandemia. Está, de uma forma contundente, acusando-o de omissão, porque entende que era possível a adoção, por ele, de postura. Ao dizer que o presidente "não vale um pequi roído", o crítico está usando uma expressão popular regional para indicar a desaprovação de seu governo. Esses discursos caracterizam, como outras expressões de desapreço, o exercício regular da crítica política, ou seja, o exercício da liberdade de expressão.

Assim, não estamos diante de "casos difíceis", que precisem envolver, na sua superação, complexas argumentações, fazendo o uso de sofisticadas teorias sobre ponderação de direitos. Estamos diante da necessidade de afirmação de um direito fundamental que é central para um Estado democrático: a liberdade de expressão. É urgente que o Supremo Tribunal Federal dê um basta a essa escalada de perseguições aos críticos e afirme, na linha já presente em sua jurisprudência, escorada na jurisprudência internacional, que tolerar a crítica ácida, radical e incômoda é um ônus da função pública em uma democracia constitucional.

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