O PROBLEMA DO BALCÃO ÚNICO ANTICORRUPÇÃO NO BRASIL

Por Alberto Monteiro - 

A adoção de um sistema de balcão único para o enforcement contra a corrupção de empresas é tema frequente de discussão no Brasil. Algumas propostas envolvem a criação de uma agência unificada para a negociação de acordos de leniência, enquanto outras chegam a contemplar a criação de uma autoridade única para lidar com todos os assuntos relacionados a anticorrupção no país.

O apelo do balcão único é compreensível, especialmente do ponto de vista das empresas investigadas. Concentrar as interações com uma única autoridade facilitaria a estratégia de defesa e economizaria custos. Também evitaria posições conflitantes entre diferentes autoridades.

Passada a empolgação inicial da ideia, surgem as dificuldades práticas de implementação surgem. O ordenamento jurídico brasileiro é complexo e a Constituição Federal dividiu o bem público em diversos direitos, regulados por diferentes leis, tutelados por diferentes órgãos nos três níveis da federação (federal, estadual, municipal).

Há muitos desafios em tentar aplicar a solução de balcão único dentro dessa estrutura. Quem seria a autoridade única? Uma autoridade nova?

Por outro lado, a existência de várias autoridades com interesses legítimos em investigar um caso (de forma descoordenada) pode levar a uma multiplicação ineficaz de litígios, tornando inócua a proteção dos interesses públicos. São muitos os exemplos de empresas que firmaram acordos com autoridades nos estágios iniciais da operação "lava jato" e ainda hoje enfrentam disputas judiciais originadas de suas admissões de culpa [1]. Algum meio-termo precisa ser encontrado, em benefício da segurança jurídica e da eficácia do nosso sistema anticorrupção.

Principais atores no combate à corrupção no Brasil — necessidade de mudanças legislativas na Lei Anticorrupção

Indivíduos e empresas envolvidos em casos de corrupção corporativa podem cometer várias violações, incluindo corrupção, lavagem de dinheiro, fraude etc. Isso pode desencadear a aplicação de várias leis por diferentes autoridades.

Hoje, as principais autoridades anticorrupção no âmbito federal são:

1) Controladoria-Geral da União (CGU): principal aplicador da Lei Anticorrupção (LAC) na esfera administrativa federal (artigo 8º);

2) Advocacia-Geral da União (AGU): representa o governo federal em juízo. Possui legitimidade para ajuizar ações judiciais em nome da União para reparação de danos no bojo da LAC (artigo 19);

3) Ministério Público: tem competência exclusiva para promover ações criminais contra pessoas físicas. Possui também legitimidade para: a) ajuizar ações judiciais para reparação de danos no bojo da LAC (legitimidade concorrente com a AGU); e b) ajuizar ações judiciais no bojo de outras leis, como a Lei de Improbidade Administrativa;

4) Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade): autoridade administrativa federal de defesa da concorrência;

5) Tribunal de Contas da União (TCU): órgão de controle externo do governo federal que auxilia o Congresso no monitoramento do orçamento e das finanças do país (artigo 71 da CF), e apura danos ao Erário federal (Lei do TCU);

6) Outros: conforme o caso, podem atuar reguladores setoriais, como o Banco Central e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Autoridades estaduais e municipais também poderão se envolver, dependendo da situação.

Há áreas, entretanto, que merecem um novo olhar. Como o leitor pode ver acima, a CGU é o "principal" aplicador da LAC no âmbito administrativo, mas não o único. Existem outros? Sim, dezenas de outros. E há ainda os "aplicadores judiciais" da LAC...

O fato de a LAC conceder legitimidade a inúmeras entidades governamentais no âmbito administrativo é um problema. Virtualmente todos os órgãos públicos no Brasil (federais, estaduais, municipais) poderiam impor multas de 0,1% a 20% do faturamento anual da empresa, bem como firmar acordo de leniência. Isso contribui para uma grave falta de consistência na aplicação da lei e promove insegurança jurídica.

Com base em um levantamento informal realizado a partir de informações públicas disponibilizadas pelo governo federal [2], mais de 45 órgãos públicos diferentes aplicaram penalidades da LAC no âmbito administrativo desde sua entrada em vigor até hoje. Esses órgãos vão desde a Secretaria da Receita Federal até a Universidade Federal da Bahia.

Mesmo empresas controladas pelo poder público podem aplicar a LAC e impor penalidades a outras empresas. Um exemplo disso é a Petrobras, entidade controlada pelo governo federal com ações negociadas em bolsa. Segundo informações divulgadas pela Petrobras [3], a empresa instaurou 11 processos administrativos de responsabilização nos termos da LAC em 2019, tendo imposto multas no valor total de R$ 6,4 milhões.

A aplicação da LAC por empresas controladas pelo poder público parece questionável. O uso de seus recursos para financiar o funcionamento da empresa como parte do aparato de persecução estatal levanta questões de concorrência justa e de conflito de interesse.

Para remediar a situação, uma mudança na lei é necessária. O Brasil já possui uma abundância de potenciais "autoridades anticorrupção" com legítimo interesse apurar casos de acordo com suas prerrogativas constitucionais. Nosso sistema não parece ter muito a ganhar com a existência de múltiplos aplicadores alternativos de uma lei que foi aprovada em 2013 para ser "a" lei anticorrupção no Brasil.

Seria altamente benéfico ter menos autoridades com poderes para aplicar a LAC no âmbito administrativo. A CGU parece ser o órgão federal mais adequado para o trabalho. Uma vez estabelecida a estrutura federal, o modelo poderia ser replicado nos âmbitos estaduais.

Encontrando o equilíbrio na coordenação entre autoridades — o exemplo da leniência

Apesar dos problemas do balcão único, a cooperação entre autoridades — por meio do compartilhamento de evidências e do alinhamento de procedimentos — é sempre bem-vinda e difere de ter um único órgão investigando o caso.

A celebração de acordos de leniência parece ser a área que tem apresentado os melhores resultados em termos de cooperação entre autoridades.

Um exemplo bem-sucedido de leniência conjunta é a parceria AGU/CGU [4], que resultou em 13 acordos de leniência desde 2014 [5]. A AGU e a CGU têm seus poderes derivados de legislações semelhantes e ambas protegem interesses análogos de estatura federal, fazendo sentido haver iniciativas conjuntas de leniência. Enquanto a CGU possui legitimidade para investigar e punir administrativamente violações da LAC no âmbito da União (artigo 8º), a AGU possui legitimidade para ajuizamento de ações cíveis no âmbito da LAC, também em nome da União (artigo 19). Um acordo de leniência conjunto envolvendo a AGU e a CGU poderia abordar as responsabilidades administrativa e judicial da LAC.

No entanto, se estendermos esse raciocínio para abarcar autoridades com propósitos diversos, as dificuldades práticas e filosóficas de ações conjuntas se acumulam.

As autoridades podem atuar em diferentes esferas (administrativa x judicial); podem ter diferentes requisitos para leniência; podem discordar sobre os benefícios a serem oferecidos (imunidade total x parcial) e em termos de procedimentos a serem seguidos. Algumas autoridades podem não ver interesse sequer em investigar um determinado caso. Se a conduta investigada não violar a concorrência, por exemplo, não faz sentido em o Cade se envolver.

O Brasil teve exemplos bem-sucedidos de negociação conjunta de leniência envolvendo várias autoridades, como no caso da MullenLowe Brasil e FCB Brasil, que chegaram a um acordo de leniência conjunto com o MPF, AGU e CGU, em 2018 [6].

O caso da SBM Offshore seguiu um caminho mais tortuoso. Após meses de negociação com o MPF, AGU e CGU, o acordo de leniência não foi aprovado pela Câmara de Revisão do MPF em 2016 [7]. A SBM, então, negociou novo acordo com a CGU/AGU, mas foi alvo de ação de improbidade do MPF. Em seguida, a empresa iniciou novas negociações com o MPF, chegando a um acordo final em agosto de 2018, dois anos após a rejeição da primeira tentativa de leniência [8].

Nesse sentido, existem três cenários possíveis para leniência corporativa envolvendo várias autoridades:

1) Autoridade única selecionada para negociar acordos de leniência. Dependeria de lei.

2) Várias autoridades negociando em conjunto. Já acontece nos acordos de leniência da CGU/AGU, por exemplo.

3) Várias autoridades negociando separadamente, mas de forma coordenada. Já acontece em várias situações. Esse formato permite que os reguladores não apenas compartilhem evidências e coordenem processos, mas também considerem aspectos dos acordos de outros reguladores em seus próprios acordos, como dedução de valores de multa.

A melhor solução no Brasil parece ser uma combinação dos cenários 2 e 3. Nos casos em que os direitos protegidos e as leis aplicáveis sejam suficientemente semelhantes, um esforço conjunto de resolução pode ser bem-vindo (caso CGU/AGU). O MPF e o TCU mostraram inconsistência na junção de esforços a CGU/AGU, com alguns resultados positivos (MullenLowe) e outros nem tanto (SBM). O sistema anticorrupção brasileiro tem muito a ganhar se MPF, CGU e AGU adotarem uma abordagem mais uniforme em seus processos coordenados de leniência de empresas. Um acordo de leniência conjunto envolvendo AGU, CGU e MPF poderia abordar não só as responsabilidades administrativa e judicial da LAC, mas outros tipos de responsabilidade de legitimidade do MPF, como a improbidade administrativa.

Já o TCU ainda parece uma peça de difícil posicionamento, uma vez que não é propriamente um ente de enforcement, mas já indicou no passado (IN 74/2015) que protege danos ao erário federal diferentes dos danos tratados pela LAC [9].

Nas situações em que a diversidade de interesses em jogo não permite uma negociação conjunta, as autoridades devem fazer o possível para coordenar processos e cooperar. Esse tipo de iniciativa já acontece, como no caso do Cade, que tem acordos de cooperação com quase todos os MPs estaduais [10].

Em 6/8/2020, foi publicada medida que prometeu incorporar grande parte da coordenação discutida acima. CGU, AGU, TCU e Ministério da Justiça anunciaram a assinatura de um acordo de cooperação técnica focado na negociação de acordos de leniência com empresas segundo a LAC, sem adesão do MPF [11]. O acordo de cooperação traz vários princípios destinados a regular esforços coletivos das autoridades e prevê que a CGU e a AGU serão os principais responsáveis pela celebração dos acordos de leniência no âmbito da LAC. Mas o acordo de cooperação se revelou uma solução ainda não ideal. Quatro dias após a divulgação do acordo de cooperação, o MPF emitiu nota técnica justificando a não adesão ao acordo [12]. Segundo a nota técnica, o acordo não refletiria de forma adequada os poderes do MPF, seria inconsistente com o objetivo de promover a cooperação intersetorial, além de não promover segurança jurídica. Ainda não se sabe se e como o acordo de cooperação impactará nosso sistema anticorrupção.

O problema do acordo de cooperação e outros esforços semelhantes nos últimos anos é que eles focam em celebração de acordos de leniência, mas não na investigação de casos de forma mais ampla. Nem todos as investigações comportam acordo de leniência e, às vezes, o que melhor protege os interesses públicos em jogo é o carregamento da investigação até seu desfecho final, com condenação ou absolvição. Todos os esforços para um processo de leniência mais eficiente podem e devem ser ampliados para abranger a investigação tradicional de casos até seu desfecho final.

Conclusão

Existem muitas autoridades no Brasil com competência para investigar casos de corrupção contra empresas, o que decorre de nossa CF. Nesse sistema, um balcão único não parece viável.

Apesar disso, a experiência dos últimos seis anos demonstrou que a empreitada da LAC de criar inúmeros aplicadores da lei foi malsucedida. Seria muito bem-vinda mudança legislativa que concentre os poderes de aplicação da LAC.

A experiência brasileira com acordos leniência corporativa mostra que esforços coordenados entre autoridades fazem sentido. A melhor abordagem parece ser uma combinação de (a) negociação conjunta quando as autoridades tutelam direitos equiparáveis; e (b) coordenação entre as autoridades quando nos demais casos. Além disso, os esforços para um processo de leniência mais eficiente podem e devem abranger também a investigação tradicional de casos até seu desfecho final.

O sistema anticorrupção brasileiro mudou drasticamente nos últimos 6 anos. Ferramentas estranhas ao nosso sistema foram incorporadas com bom sucesso. É normal que ocorram alguns solavancos. É importante que os avanços observados pavimentem o caminho para uma aplicação mais estruturada das normas anticorrupção no futuro

 

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