O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL AINDA NO OLHO DO FURACÃO

Por Luís Roberto Barroso -  

  1. O Supremo, o Congresso e a imprescindível Reforma Política Há quase duas décadas faço essa retrospectiva do ano no Supremo Tribunal Federal para a ConJur. Desde de muito antes de vir para o Tribunal. Renovado o convite, aqui vou de novo. Tenho assistido, de fora e de dentro, à centralidade que o STF assumiu na vida brasileira. Isso se deve a circunstâncias específicas da evolução da democracia brasileira. Mas essa situação já dura há muito tempo. Seria bom para o país e para as instituições um novo reequilíbrio. 

É bem de ver que, mais recentemente, o Congresso Nacional vem reocupando um maior espaço no debate público brasileiro. E é assim que deve ser. Para que o processo se consolide e se aprofunde, no entanto, será necessária uma reforma política capaz de superar o descolamento hoje existente entre a classe política e a sociedade civil. O Tribunal Superior Eleitoral encaminhou à Câmara, há poucos meses, uma proposta pelo voto distrital misto, aproveitando amplamente projetos que já haviam sido aprovados no Senado Federal. É preciso que essa agenda avance na Câmara dos Deputados, para que se possam concretizar três objetivos patrióticos importantes: baratear o custo das eleições, aumentar a representatividade dos parlamentares e facilitar a governabilidade. Enquanto isso não for feito, o Supremo continuará com um protagonismo indesejado, que o expõe ao fogo das paixões políticas que vêm de todos os lados. 

  1. A agenda do STFPaulatinamente, o STF vai deixando de ser um Tribunal que julga, predominantemente, causas tributárias e de servidores públicos para deslocar sua atuação para alguns dos temas centrais do Estado constitucional democrático: resguardar direitos fundamentais, proteger a democracia e arbitrar conflitos entre Poderes e diferentes níveis da Federação. A seleção de decisões que se segue vai dividida em três blocos: I. Questões criminais; II. Questões sobre costumes; e III. Questões administrativas e econômicas. 

Como nos anos anteriores, os temas que mais dividiram o Tribunal foram de natureza penal. Pela quarta vez, em dez anos, alterou-se o entendimento relativamente à execução das condenações criminais após o 2º grau. Fiquei vencido nessa votação, assim como nos julgados referentes a indulto de crimes de corrupção e semelhantes, à ordem de apresentação das alegações finais (não acho problemático o réu não colaborador falar por último, mas divergi de se anularem retroativamente os julgados já proferidos, uma vez que tal previsão não constava de nenhuma legislação) e à transferência de competências penais da Justiça Federal para a Justiça Eleitoral. Votei com a maioria no caso COAF e minha posição como relator prevaleceu no caso do ICMS. Apesar de muito choro e ranger de dentes, somados a uma enorme confusão de conceitos, o que o STF decidiu foi criminalizar a apropriação indébita tributária de devedores contumazes, que fazem da inadimplência uma estratégia de negócios, lesando a sociedade e a livre concorrência. Difícil entender que alguém ache isso bom e normal. 

Em termos de costumes, o Tribunal formou unanimidade ou maioria expressiva na questão do sacrifício de animais em ritos religiosos e na criminalização da homofobia. Esta última decisão foi, provavelmente, uma das mais ativistas da história do Supremo, fundada em um voto magistral do Ministro Celso de Mello. Tratou-se, na verdade, de uma resposta necessária à violência de gênero, aos discursos de ódio e ao crescimento da intolerância. A Corte se dividiu, todavia, em um caso inusitado: o de um cidadão que faleceu após ter mantido, por muitos anos, duas uniões estáveis simultâneas: uma com uma mulher e outra homoafetiva. Estava em disputa a possibilidade de se partilhar ou não a pensão previdenciária, não havendo elementos para determinar qual das uniões era a precedente. O julgado foi suspenso por um pedido de vista. 

Por fim, houve decisões de repercussões administrativas e econômicas de grande relevância. O Tribunal reconheceu como legítima a inovação trazida pelos aplicativos de transporte de pessoas, em nome da livre iniciativa e da livre concorrência. Em outro julgado, exonerou o Estado do dever de fornecer medicamentos não registrados na ANVISA, salvo exceções bem específicas e limitadas. E, também, permitiu a alienação de subsidiárias de empresas estatais, independentemente de autorização legislativa. Ainda ficaram de fora da lista de casos selecionados decisões importantes, como, por exemplo, a suspensão da medida provisória que transferia da FUNAI para o Ministério da Agricultura a demarcação de terras indígenas. 

No último dia do recesso, decisão monocrática suspendeu decreto presidencial que esvaziava o Conselho Nacional da Criança e do Adolescente – CONANDA. A liminar concedida advertia para os riscos do “constitucionalismo abusivo”, prática que promove a interpretação ou a alteração do ordenamento jurídico de forma a concentrar poderes no Chefe do Executivo e a desabilitar agentes que exercem controle sobre a sua atuação. Conforme constou da decisão na ADPF 622:  

“A lógica de tal modo de atuar está em excluir do espaço público todo e qualquer ator que possa criticar, limitar ou dividir poder com o líder autocrático, em momento presente ou futuro, de forma a assegurar seu progressivo empoderamento e permanência no cargo. Experiências de tal gênero estão ou estiveram presentes na Hungria, na Polônia, na Romênia e na Venezuela. O resultado final de tal processo tende a ser a migração de um regime democrático para um regime autoritário, ainda que se preserve a realização formal de eleições.  

Embora não me pareça ser o caso de falar em risco democrático no que respeita ao Brasil, cujas instituições amadureceram ao longo das décadas e se encontram em pleno funcionamento, é sempre válido atuar com cautela e aprender com a experiência de outras nações. Nessa linha, as cortes constitucionais e supremas cortes devem estar atentas a alterações normativas que, a pretexto de dar cumprimento à Constituição, em verdade se inserem em uma estratégia mais ampla de concentração de poderes, violação a direitos e retrocesso democrático”. 

Confiram-se, a seguir, alguns dos casos mais significativos do ano. 

III. Doze casos emblemáticos julgados em 2019 

III.1. Questões criminais

  1. Competência da Justiça Eleitoral para o julgamento de crimes eleitorais e dos comuns que lhe forem conexos. Inq 4.435 AgR-quarto, Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento concluído em 14.03.2019. 

O Pleno do Tribunal considerou competir à Justiça Eleitoral, em razão de seu caráter especializado, julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos. A corrente minoritária defendia a prevalência da competência da Justiça Federal, mais vocacionada para o julgamento de casos complexos da criminalidade econômica. 

  1. Decreto de indulto natalino expedido pelo ex-presidente Michel Temer (Decreto nº 9.246/2017). ADI 5.874, Red. para acórdão Min. Alexandre de Moraes. Julgamento concluído em 09.05.2019. 

O Plenário do Tribunal reconheceu a constitucionalidade do decreto de indulto natalino de 2017 (Decreto nº 9.246/2017), assinado pelo então Presidente da República Michel Temer. Prevaleceu o entendimento de que a competência discricionária do presidente foi exercida dentro dos limites impostos pela Constituição, de maneira que não caberia ao Poder Judiciário adentrar o mérito do ato administrativo. A corrente minoritária defendia a exclusão, do âmbito de incidência do indulto natalino, dos delitos relacionados à criminalidade do colarinho branco e a declaração de inconstitucionalidade do indulto da pena de multa. 

3; Direito dos delatados de apresentar as alegações finais depois dos réus que celebraram acordo de colaboração. HC 166.373, Red. para acórdão Min. Alexandre de Moraes. Julgamento concluído em 02.10.2019, mas ainda pendente a definição da tese. 

O Pleno do Tribunal decidiu que, em ações penais com réus colaboradores e não colaboradores, é direito dos delatados apresentarem as alegações finais depois dos réus que firmaram acordo de colaboração. Prevaleceu o entendimento de que, como os interesses são conflitantes, a concessão de prazos sucessivos, a fim de possibilitar que o delatado se manifeste por último, assegura o direito fundamental da ampla defesa e do contraditório. A corrente minoritária defendia, essencialmente, que a lei não prevê a diferenciação entre réus colaboradores e não colaboradores para fins de apresentação das alegações finais. Resta examinar se haverá necessidade de demonstração de prejuízo para a anulação de atos processuais e se a nova compreensão jurisprudencial poderá retroagir para afetar atos processuais praticados de acordo com a lei vigente. 

  1. Execução imediata da pena após condenação em segundo grau de jurisdição. ADCs 43, 44 e 54, Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento concluído em 07.11.2019. 

Revertendo entendimento que havia se consolidado em 2016, o Pleno do Tribunal decidiu que é constitucional a regra do Código de Processo Penal que exige o exaurimento de todas as possibilidades de recurso (trânsito em julgado da condenação) para o início do cumprimento da pena. Para a corrente minoritária, muito embora uma das leituras possíveis do art. 283 do Código de Processo Penal limite a prisão às hipóteses de trânsito em julgado, prisão temporária ou prisão preventiva, deve-se conferir à norma interpretação que a torne compatível com a exigência constitucional de efetividade e credibilidade do sistema de justiça criminal. Deveria ser admitida, assim, a execução da pena após condenação em segunda instância.  

  1. Compartilhamento de dados entre Receita Federal/Coaf e Ministério Público. RE 1.055.941, Rel. Min. Dias Toffoli. Julgamento concluído em 04.12.2019. 

O Pleno do Tribunal considerou ser constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da Unidade de Inteligência Financeira e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal que define o lançamento do tributo com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. A decisão foi importantíssima para que o Brasil continue a respeitar compromissos internacionais assumidos em relação ao combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. 

  1. Reconhecimento da conduta de inadimplemento contumaz do ICMS como criminosa. RHC 163.334, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. Julgamento concluído em 18.12.2019. 

O Pleno do Tribunal reconheceu como criminosa a conduta do contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz, o valor do ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço. A decisão foi importantíssima para as finanças dos Estados e para a livre concorrência, já que os devedores contumazes se valem de forma sistemática da inadimplência como forma de financiar suas atividades, vender seus produtos abaixo do preço de custo e enriquecer ilicitamente. Não está abrangido pela criminalização o contribuinte que apenas deixou de recolher o tributo ocasionalmente.  

III.2. Questões sobre costumes 

  1. Sacrifício de animais em religiões de matriz africana. RE 494.601, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para acórdão Min. Edson Fachin. Julgamento concluído em 28.03.2019. 

O Plenário do Tribunal reputou constitucional dispositivo do Código Estadual de Proteção aos Animais do Estado do Rio Grande do Sul que não considera maus-tratos aos animais o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. Um aspecto relevante, ressaltado durante o julgamento, foi o de que não se estava admitindo o sacrifício de animais para fins de entretenimento, mas, sim, para o exercício de um direito fundamental, a liberdade religiosa. 

  1. Criminalização da homofobia. ADO 26, Rel. Min. Celso de Mello; MI 4.733, Rel. Min. Edson Fachin. Julgamento concluído em 13.06.2019. 

O Plenário do Tribunal entendeu que há omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e transfobia. Determinou, assim, a aplicação da Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989) para a reprimenda de condutas discriminatórias relacionadas à orientação sexual e/ou à identidade de gênero, enquanto não promulgada norma incriminadora. Além disso, decidiu que a motivação homofóbica na prática de homicídio doloso é circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, in fine).  

  1. Uniões estáveis simultâneas e efeitos previdenciários. RE 1.045.273, Rel. Min. Alexandre de Moraes. Julgamento suspenso em 25.09.2019. 

O Plenário do Tribunal iniciou o julgamento de recurso em que se discute se é constitucional a divisão da pensão por morte entre duas pessoas que mantiveram paralela e concomitantemente relações equiparáveis à união estável com o mesmo indivíduo já falecido. Na ocasião, três ministros votaram pela impossibilidade de reconhecimento das uniões estáveis simultâneas e cinco ministros votaram pela possibilidade, quando o Min. Dias Toffoli pediu vista.  

III.3. Questões administrativas e econômicas 

  1. Caso Uber: proibição de transporte privado individual por aplicativo. RE 1.054.110-RG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. ADPF 449, Rel. Min. Luiz Fux. Julgamento concluído em 09.05.2019. 

O Tribunal decidiu que é inconstitucional a proibição ou restrição desproporcional da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo (e.g. Uber, Cabify, 99 Taxi). As restrições à atividade violam os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. A Corte também afirmou que os Municípios e o Distrito Federal, no exercício de sua competência de regulamentação e fiscalização do transporte privado por aplicativos, não podem contrariar os parâmetros fixados pela legislação federal na matéria, nos termos do art. 22, XI, da Constituição.  

  1. Dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela Anvisa. RE 657.718, Rel. Min. Marco Aurélio, red. para acórdão Min. Luís Roberto Barroso. Julgamento concluído em 22.05.2019. 

O Plenário do Tribunal decidiu o seguinte: (i) o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamento experimentais; (ii) a ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial; (iii) é possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (a) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos-órfãos para doenças raras e ultrarraras); (b) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (c) a inexistência de substituto terapêutico com registro no país. Ficou estabelecido, também, que as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União. 

  1. Alienação do controle acionário de subsidiárias de estatais independentemente de autorização legislativa. ADI 5.624-MC, ADI 5.846-MC, ADI 5.924-MC, ADI 6.029-MC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento concluído em 06.06.2019. 

O Tribunal decidiu que a alienação do controle acionário de empresas subsidiárias e controladas por empresas públicas e sociedades de economia mista não exige autorização legislativa específica. Essas operações podem ser realizadas com dispensa de realização de licitação em suas modalidades tradicionais, desde que sigam procedimento que propicie a escolha da proposta mais vantajosa e assegure a competitividade entre potenciais interessados.

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