SERGIO MORO, SUA NOVA CRISE DE INSTÂNCIA E A EMENDA AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Rômulo de Andrade Moreira -  

José Frederico Marques identificava no processo a chamada “crise de instância” ou, como preferia Carnelutti, “crise do procedimento”, consistente, nas palavras do mestre italiano, em “um modo de ser anormal do procedimento, pelo qual lhe é paralisado o curso, temporária ou definitivamente”. Também alguns referiam o fenômeno como “crise processual”, como era o caso de José Alberto dos Reis, citado por Frederico Marques. Haveria três espécies de crises, a saber: a suspensão da instância, a absolutio ab instantia e a cessação da instância. 

Para este trabalho, basta-nos a primeira, quando a crise dá-se de maneira temporária, cessando “o movimento procedimental, sem que a instância se desfaça”. Nesse caso, “a instância permanece íntegra e existente”, obstando-se, tão-somente, o andamento do procedimento.

Marques apontava três hipóteses no processo penal brasileiro em que se identificava a suspensão do procedimento. O primeiro caso está previsto nos artigos 149 e 152 do Código de Processo Penal, consistente no fato de haver “dúvida sobre a integridade mental do acusado”, caso em que “o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal”, “ficando suspenso o processo, se já iniciada a ação penal, salvo quanto às diligências que possam ser prejudicadas pelo adiamento” (grifei). 

Nesse caso, “se se verificar que a doença mental sobreveio à infração o processo continuará suspenso até que o acusado se restabeleça”, retomando-se o curso do procedimento “desde que se restabeleça o acusado, ficando-lhe assegurada a faculdade de reinquirir as testemunhas que houverem prestado depoimento sem a sua presença” (idem). 

Evidentemente que não haverá, nesta primeira hipótese, a suspensão do curso do prazo prescricional por absoluta falta de previsão legal. Dar-se-á, se for o caso de conexão e continência, a separação do processo, com fulcro no artigo 79, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal.

Também há uma crise temporária na instância nas hipóteses dos artigos 92 e 93 do Código de Processo Penal, ou seja, “se a decisão sobre a existência da infração depender da solução de controvérsia, que o juiz repute séria e fundada, sobre o estado civil das pessoas, o curso da ação penal ficará suspenso até que no juízo cível seja a controvérsia dirimida por sentença passada em julgado, sem prejuízo, entretanto, da inquirição das testemunhas e de outras provas de natureza urgente” (grifado). 

Da mesma maneira, “se o reconhecimento da existência da infração penal depender de decisão sobre questão diversa da prevista no artigo anterior, da competência do juízo cível, e se neste houver sido proposta ação para resolvê-la, o juiz criminal poderá, desde que essa questão seja de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite, suspender o curso do processo, após a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente” (grifado). 

A propósito, neste caso, entendemos que o prazo prescricional não corre enquanto durar a suspensão do procedimento, em virtude do artigo 116, I do Código Penal.

Por fim, lembrava Frederico Marques o disposto no artigo 798, parágrafo 4º, também do Código de Processo Penal, quando se determina a suspensão dos prazos “se houver impedimento do juiz, força maior, ou obstáculo judicial oposto pela parte contrária”, restando incólume o transcurso do prazo prescricional.

Notava o Mestre das Arcadas, a partir das lições de Pontes de Miranda, que circunstâncias de força maior também podem suspender “o movimento processual”, quando “se verificarem fatos sociais extraordinários (guerra, revoluções, greve geral), ou cataclismas (epidemias, inundações, terremotos), que impeçam a administração da justiça e não permitam o funcionamento dos tribunais”, sem prejuízo, evidentemente, da prática de atos processuais considerados urgentes, como a produção das provas de natureza técnica (exame de corpo de delito e as perícias em geral) e aquelas produzidas antecipadamente (exemplo: artigo 225, do Código de Processo Penal). 

Por fim, importante observar que José Frederico Marques não assim considerava alguns incidentes processuais, tais como os previstos nos artigos 99, 102 e 116 do Código de Processo Penal. Aqui, para ele, “a instância passará a fluir através dos atos do procedimento incidental, não se verificando, portanto, qualquer paralisação do processo”. 

Além desses três casos, acrescento mais dois, cuja previsão legal deu-se posteriormente à morte de Frederico Marques: o artigo 89 da Lei 9.099/95, a chamada a suspensão condicional do processo, e o artigo 366 do Código de Processo Penal, que determina a suspensão do processo e do prazo prescricional no caso de réu citado por edital que não apresenta a resposta preliminar nem constitui advogado. 

Pois bem.

Nada obstante as hipóteses legais taxativamente previstas na legislação processual penal brasileira, o juiz Sergio Moro, inovando mais uma vez — e ele sempre se supera! —, após ter recebido uma denúncia, determinou a suspensão do respectivo procedimento por um ano, afirmando que o Ministério Público Federal “dificulta a focalização dos trabalhos judiciais” ao propor novas ações penais contra réus já “multicondenados”. Escreveu textualmente: 

“Observo, porém, que todos os acusados já foram condenados, alguns mais de uma vez, em primeira e segunda instância a penas elevadas. Não vislumbro com facilidade interesse do MPF no prosseguimento de mais uma ação penal contra as mesmas pessoas, a fim de obter mais uma condenação. O que é necessário é a efetivação das condenações já exaradas e não novas condenações. Por outro lado, a propositura de ações penais contra multicondenados dificulta a focalização dos trabalhos judiciais nas ações penais ainda em trâmite relativamente a pessoas ainda não julgadas. Assim, apesar do recebimento da denúncia, suspendo sucessivamente o processo por um ano, após o que analisarei o prosseguimento”.

Obviamente, a decisão, inteiramente descabida e ilegal, foi criticada por vários processualistas penais. Gustavo Badaró, por exemplo, afirmou “que se tratava de um raciocínio utilitarista e juridicamente equivocado, mesmo quando aplicado para beneficiar o réu”. 

Já Alberto Toron “considerou surpreendente a decisão, pois não havia previsão legal para esse tipo de suspensão do processo. Isso mostrava unicamente o voluntarismo, para usar um eufemismo, desse juiz. Ele faz o que quer. É o despotismo a céu aberto, pesa dizê-lo!”.

Também Lenio Streck disse “que a iniciativa tentava criar um aparelho chamado 'condenômetro': quando a luz amarela acende, já não se aceita mais ações. O juiz Moro sempre criando Direito. Seu sonho é ser legislador. No ponto, deve estar entendiado de tanto condenar e criou uma nova hipótese de suspensão ou interrupção de ações penais. Por que o MPF não teria interesse em ingressar com ações penais? Esse é um juízo subjetivo”.

Segundo Alexandre Morais da Rosa, “uma ação penal só pode ser paralisada por questões vinculadas ao processo ou quando se espera processos autônomos, cujo deslinde seja pressuposto lógico da decisão a ser proferida”.

Não seria sequer preciso gastar boa e qualificada doutrina, como o fizemos, ou fazermos uma compilação de julgados, para afirmarmos, com absoluta tranquilidade, que essa decisão não encontra amparo em nenhum dispositivo legal no Brasil, razão pela qual deve ser impugnada pelo Ministério Público, a partir da utilização do recurso de apelação, previsto no artigo 593, II do Código de Processo Penal, visto que não será cabível a utilização do recurso em sentido estrito, por evidente inadequação (pressuposto processual objetivo).

Destarte, é inconcebível que sejam ignoradas as regras processuais, consubstanciadas nos dispositivos legais, pois, como se sabe, o processo penal funciona em um Estado Democrático de Direito como um meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado. Não é um mero instrumento de efetivação do Direito Penal, mas, verdadeiramente, um instrumento de satisfação de direitos humanos fundamentais e, sobretudo, uma garantia contra o arbítrio do Estado.

Aliás, sobre processo, já afirmou o mestre Calmon de Passos que o “devido processo constitucional jurisdicional (como ele prefere designar), para evitar sofismas e distorções maliciosas, não é sinônimo de formalismo, nem culto da forma pela forma, do rito pelo rito, sim um complexo de garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir”. 

Já sobre o procedimento em matéria processual penal, e bem a propósito, ensina Antonio Scarance Fernandes que “a incorporação, nos ordenamentos, de modelos alternativos aos procedimentos comuns ou ordinários gera para as partes o direito a que, presentes os requisitos legais, sejam obrigatoriamente seguidos. (...) Em relação à extensão do procedimento, têm as partes direito aos atos e fases que formam o conjunto procedimental. Em síntese, têm direito à integralidade do procedimento”. 

Ademais, como afirma Gilberto Thums, no Estado Democrático de Direito. “o rito processual desempenha um papel importante, tanto para o réu quanto para o jurisdicionado”. 

Portanto, emendou-se, mais uma vez, o Código de Processo Penal, acrescentando-se lhe mais uma hipótese de suspensão do processo, não condicional!, e não sujeita à suspensão do curso do prazo prescricional. Em definitivo, o poço não tem fundo...

 

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