TESTE DE SUSTENTABILIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS E OPÇÕES AO PROJETO “ANTICRIME”

Por Marcelo Carlin -  

As medidas de aumento de encarceramento anunciadas pelo governo federal não resistem ao teste Kobayashi Maru, criativamente apresentado por Alexandre Morais da Rosa e Philipe Benoni Melo, retirado da ficção científica da série Star Trek, mas também não passam por um teste da vida real.  

Ocorre que o pacote "anticrime" também não suporta um simples escrutino de sustentabilidade multidimensional de políticas públicas, ensinado por Juarez Freitas, que consiste em avaliar as consequências intertemporais das ações anunciadas, observando todas as questões sociais, econômicas, ambientais e tecnológicas envolvidas no problema. Realizado a contento, segundo o autor, o teste de sustentabilidade “induz à internalização das externalidades negativas; realça o peso consorciado de justificativas econômicas e não-econômicas; destaca e preserva valores intrínsecos; desvela o ônus da passividade omissivista; torna nítida a importância de padronizações sensatas, positivas; permite o julgamento dos projetos com o horizonte dilatado; facilita a rejeição das soluções reducionistas; favorece uma laboriosa gestão de riscos; expande as alternativas inovadoras e contém o impulsivismo direcionado a recompensas efêmeras que sacrificam o amanhã”. 

Logo, o proposto do atual governo é carente de futuro duradouro, viável ou sustentável. A aposta na ideia primitiva de retribuição penal, com o simplório endurecimento das penas privativas de liberdade para reduzir as taxas de criminalidade. Isso porque ignora todas as evidências e pesquisas criminológicas realizadas em diversos países, que indicam a falência da pena de prisão, ante os elevados custos econômico e não econômicos de manutenção do sistema carcerário massificado e os resultados ineficazes dele, em razão dos altíssimos índices de reincidência, normalmente próximos de 70%. 

A falta de investimentos adequados para cumprir as diretrizes da Lei de Execução Penal, no caso brasileiro, facilitou o surgimento e o desenvolvimento do crime organizado no interior de nossas masmorras medievais, trazendo ainda mais insegurança à população.  

O crime organizado brasileiro é subproduto da crônica falta de investimentos em políticas públicas para prevenir a criminalidade, especialmente para os jovens, na omissão sistemática em reformar o sistema penitenciário e também da ausência de políticas de Estado para o desenvolvimento de alternativas penais. 

Até mesmo o estado de Santa Catarina, avaliado como um bom exemplo de cuidado com as contas públicas, passará por dificuldades financeiras nos próximos anos. O atual governo estadual já anunciou o corte do cafezinho (e também dos postos de trabalho de quem o prepara!) no Executivo e adverte que terá dificuldades para pagar as próximas folhas de vencimentos dos servidores públicos.

O estado, há muito tempo, alcançou o seu limite prudencial de ampliação de vagas no sistema prisional, sem resolver o problema da falta de espaço adequado e sem assegurar a redução significativa nos índices de criminalidade. Insistir nesse modelo levará ao sacrifício das futuras gerações, que não terão os frutos dos investimentos em outras políticas públicas e infraestruturas que assegurem o desenvolvimento sustentável.  

Em Santa Catarina, em 31 de dezembro de 2014, faltavam 4.350 vagas e estavam presos 15.633 apenados. O esforço do governo anterior elevou em 6.405 o número de vagas, porém o número de segregados cresceu em 6.600 e a população carcerária chegou ao patamar de 21.615 pessoas, em 25 de fevereiro de 2019. A projeção é o aumento de 990 presos até o final do ano de 2019, sem perspectiva de abertura de vagas. 

Ante a incapacidade de investimentos por parte dos estados, fica a seguinte pergunta: a União, que custodia perto de mil presos, com o custo mensal de R$ 15 mil cada um, estaria disposta a construir um estabelecimento de segurança máxima em cada estado ou federalizar parte dos estabelecimentos prisionais estaduais já construídos para aumentar os níveis de segurança deles e neutralizar a ação do crime organizado?  

Acreditamos que a prisão massificada perseguida como panaceia para “combater” o crime não é solução para o problema, é parte dele.  

Mas apenas criticar não é suficiente. É preciso avançar e avaliar criticamente as projeções sociais do exercício do Direito punitivo, com o referente de sugerir hipóteses, experiências, tendências e princípios para um novo modelo de aplicação de penas criminais, com ênfase nas alternativas extrapenais e penais, na assistência ao egresso e na atenção às vítimas, reservando-se a pena de prisão para hipóteses em que realmente for necessária. 

Para trazer os indicadores de criminalidade para patamares razoáveis são necessárias políticas públicas diversificadas, amplas e complexas, que interfiram nas causas da reincidência e do crescimento da criminalidade organizada, que domina os estabelecimentos prisionais brasileiros, impulsionada nas ruas pelo lucrativo comércio de drogas ilícitas. 

Em alguns países mais avançados, com políticas criminais democráticas, as ações do governo e da sociedade estão estruturadas na adoção de políticas públicas que previnam a criminalidade, especialmente para o público jovem. Esses países também se empenham na redução do número presídios e no desenvolvimento de penas e medidas alternativas. 

Um exemplo é a Espanha, uma nação com os menores índices de criminalidade da Europa, e que nos últimos 30 anos realizou elevados investimentos para reforma de seu sistema carcerário e, ao mesmo tempo, procurou adaptar a sua legislação para reduzir os índices de encarceramento. 

A Espanha, observando não ser possível reduzir a reincidência penal sem enfrentar o impacto do consumo abusivo de drogas, optou por inserir uma hipótese de suspensão da execução da pena privativa de liberdade em casos de infratores que agiram influenciados fortemente pela drogadição. 

Dois grandes grupos, o da probation (anglo-americano) e o do sursis (europeu continental) socorrem-se da ideia de que a ameaça de uma pena pode influenciar psicologicamente o apenado e produzir um efeito de prevenção e coação moral muito mais eficaz que a própria pena privativa de liberdade.  

O instituto em questão tem origem na Ley de Condena Condicional de 1908 e na Ley de La Libertad Condicional de 1914, ambas exemplos de manifestações de expressão humanizadoras. As reformas penais recentes (Ley Orgánica 15/2003, Ley Orgnánica 5/2010; e Ley Orgánica 1/2015) ampliaram e deram novos perfis à regulação da forma alternativa de execução da pena privativa de liberdade.  

Após a última reforma de 2015, a legislação espanhola regula o tema no artigo 80 e seguintes:  

“Artículo 80. 1. Los jueces o tribunales, mediante resolución motivada, podrán dejar en suspenso la ejecución de las penas privativas de libertad no superiores a dos años cuando sea razonable esperar que la ejecución de la pena no sea necesaria para evitar la comisión futura por el penado de nuevos delitos. 

Para adoptar esta resolución el juez o tribunal valorará las circunstancias del delito cometido, las circunstancias personales del penado, sus antecedentes, su conducta posterior al hecho, en particular su esfuerzo para reparar el daño causado, sus circunstancias familiares y sociales, y los efectos que quepa esperar de la propia suspensión de la ejecución y del cumplimiento de las medidas que fueren impuestas” (grifamos). 

Especificamente no caso de drogadição, a legislação estabelece: 

“5. Aun cuando no concurran las condiciones 1.ª y 2.ª previstas en el apartado 2 de este artículo, el juez o tribunal podrá acordar la suspensión de la ejecución de las penas privativas de libertad no superiores a cinco años de los penados que hubiesen cometido el hecho delictivo a causa de su dependencia de las sustancias señaladas en el numeral 2.º del artículo 20, siempre que se certifique suficientemente, por centro o servicio público o privado debidamente acreditado u homologado, que el condenado se encuentra deshabituado o sometido a tratamiento para tal fin en el momento de decidir sobre la suspensión. El juez o tribunal podrá ordenar la realización de las comprobaciones necesarias para verificar el cumplimiento de los anteriores requisitos. En el caso de que el condenado se halle sometido a tratamiento de deshabituación, también se condicionará la suspensión de la ejecución de la pena a que no abandone el tratamiento hasta su finalización. No se entenderán abandono las recaídas en el tratamiento si estas no evidencian un abandono definitivo del tratamiento de deshabituación” (grifamos). 

O prazo de suspensão será de dois a cinco anos para as penas privativas de liberdade não superiores a dois anos, e de três meses a um ano para as penas leves. Já no caso da suspensão aplicada com base na hipótese de delito cometido por influência de drogadição, o prazo de suspensão será de três a cinco anos.

A suspensão é aplicada mediante proibição e deveres que têm por objetivo evitar o cometimento de novos delitos. Essas condições não podem ser excessivas e desproporcionais.  

A primeira delas visa dar tranquilidade à vítima e consiste na proibição de se aproximar dela e de seus familiares, de seus domicílios, de seus lugares de trabalho ou lugares habitualmente por eles frequentados. Também é possível proibir contatos por qualquer meio.  

Outra condição tem por objetivo romper os laços com grupos de pessoas que possam facilitar a reiteração criminal. O apenado em tratamento pode ser proibido de se relacionar com determinadas pessoas ou membros de bandos ou de organizações criminosas. 

Também é possível estabelecer medidas de controle como comparecimento judicial, policiais ou de serviços da administração penal. 

Pode ser exigida a participação em programas formativos, laborais, culturais e de educação sexual, ambiental, de proteção de animais, de igualdade e não discriminação ou similares. 

A participação em programas de desintoxicação para o consumo de álcool, drogas lícitas ou ilícitas é uma das medidas mais importantes que pode ser adotada por esse modelo de Justiça, denominada por alguns como terapêutica.  

Valoriza-se também o cumprimento de acordos construídos em mediação penal entre o apenado e a vítima, buscando reparar o dano. A obrigação de realizar trabalhos comunitários também é possível durante o período de suspensão da execução da pena privativa de liberdade. 

Todas essas medidas são comunicadas aos setores de segurança pública, que devem estar devidamente organizados para fiscalizar o cumprimento das condições. A cooperação interinstitucional e o uso das novas tecnologias, inclusive de inteligência artificial, podem, com menor custo, criar uma nova governança e um ambiente de maior controle e segurança pública, tornando as medidas alternativas mais eficazes que a prisão para a redução dos índices de criminalidade.  

Porém, em caso de descumprimento ou cometimento de novo crime, o juiz pode converter a medida em prisão, o que se busca evitar, mas não se pode descartar que em muitos casos será necessário. 

Percebe-se que a Espanha, ao adotar tal modalidade alternativa em casos de apenados dependentes químicos, reforça o princípio da individualização da pena, uma vez que reconhece a preponderância da drogadição no cometimento do crime e a importância de tratamento da questão de fundo, consumo de drogas, para evitar a reincidência criminal. 

Mais que prender e punir, de olho no passado, a Espanha mira o futuro e almeja preparar o apenado para o retorno ao convívio social e familiar. 

Essa experiência estrangeira é de grande importância para a realidade brasileira. Para se ter noção da relevância da influência da droga no cometimento de crimes, dados da Central de Penas Alternativas de Florianópolis revelam que, dos 621 indivíduos encaminhados para atendimento e acompanhamento após a audiência de custódia, 508 atendidos revelaram ser usuários de drogas lícitas e ilícitas.  

Por fim, para os crentes no mito da prisão como única tecnologia social para efetivamente enfrentar o crime organizado (um dos objetivos do “projeto anticrime”), é preciso lembrar que o recrutamento dos jovens acontece nas ruas, com a oferta de drogas e o convite para participar do lucrativo comércio ilícito. Porém, o “plano de fidelidade” é oferecido e contratado nos presídios, com a promessa de proteção e assistência, benefícios para os jovens recrutados e encarcerados, que acabam sem alternativas para abandonar essas organizações, muito vezes por medo de represálias. 

Portanto, é preciso reverter essa lógica com alternativas penais sustentáveis, muito mais eficazes para evitar os riscos criminógenos derivados da imersão no ambiente carcerário, especialmente no caso de dependentes químicos.

 

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