Universidade do Medo: entre o sonho e a realidade nas nossas universidades

Valéria Diez Scarance Fernandes -  

Qual o significado de universidade? 

Universidade pode significar um sonho acalentado e a perspectiva de um futuro melhor. Pode ser também o ambiente físico, o corpo docente ou discente das faculdades. 

Mas para muitas alunas, universidade representa assédio e estupro. 

A pesquisa “Violência contra a Mulher no Ambiente Universitário”, realizada pelo Instituto Avon e pelo Data Popular e  publicada no final de 2015, revelou que dentre 1823 universitárias e universitários de todo o país: 

- 42% das alunas sentiram medo de sofrer violência; 

- 67% das alunas sofreram violência na universidade ou festas acadêmicas, dentre as modalidades assédio sexual, coerção, violência sexual, violência física, desqualificação intelectual ou agressão moral ou psicológica. 

- 38% dos alunos praticaram uma das formas de violência referidas acima. 

Inquietante que, quando se questionou genericamente sobre “violência”, apenas 10% das alunas reconheceram-se vítimas e 2% dos alunos admitiram a prática. Confrontados com as formas de violência referidas, os índices cresceram verticalmente. 

“Violência” é um termo normalmente associado à agressão física e visível, inquestionável. Condutas como submeter mulheres a comentários e práticas degradantes, ingestão forçada de bebida ou drogas e abordagens sexuais invasivas não são identificadas como violência pela maioria dos estudantes, mas como simples “brincadeiras”. Por isso, quando as vítimas reagem ou procuram ajuda não são compreendidas ou aceitas. 

Dentre as práticas mais comuns – e graves -  têm sido citados os estupros em festas ou ambiente universitário. 

O fenômeno ganhou notoriedade nos Estados Unidos. Há inúmeros relatos de estudantes estupradas por amigos, colegas de sala e conhecidos. Muitas delas, desacordadas ou sob efeito de álcool, foram surpreendidas com a prática de sexo individual ou coletivo, sem que pudessem oferecer resistência. 

Um desses casos é o da americana kelsey Belnap, desafiada a beber muitas doses de álcool por integrantes do time de futebol em uma festa. Desfaleceu inerte. Acordou no momento em que um estudante introduzia o pênis em sua boca. Não conseguiu se defender, dormiu e acordou, dormiu e acordou, em estado de letargia, enquanto quatro rapazes a estupraram repetidamente. Esse estupro é relatado na matéria “Como Silenciamos o Estupro” (Revista Super Interessante, jul.2015, p. 33-41). 

Qual o desfecho desse processo? 

Não houve condenação, Kelsey sofreu represálias por ter noticiado o fato e os policiais consideraram que o ato foi consentido, apesar de estar desacordada em virtude do álcool. 

O especialista David Lisak entrevistou diversos rapazes questionando-os quanto à forma como abordavam as garotas. Um dos relatos foi o seguinte: 

“A gente sempre ficava de olho nas meninas mais gatas. As mais fáceis são as calouras porque elas não sabem beber ainda, aí a gente convida elas para a festa e serve qualquer  bebida muito doce e cheia de álcool. Tem que ter talento pra isso, escolher as gatinhas já durante a semana e jogar o papo. Ai quando elas estiverem muito bêbadas, eu dou o bote. Levo para um quarto e tento tirar a roupa. Elas reagem, dizem que não querem, mas eu insisto e uma hora elas acabam capotando mesmo. Aí eu como elas (sic)” (apud “Como Silenciamos o Estupro”, p.41). 

Nos Estados Unidos, o Departamento de Educação e a Polícia Federal investigam 86 universidades justamente por negligência nesses casos de estupros, prioritariamente ocorridos em festas, em contexto de ingestão de bebidas pelas meninas e posterior desencorajamento pelas universidades (“O que está por trás da violência dentro das universidades”. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/educacao /o-que-esta-por-tras-da-violencia-dentro-das-universidades/>. Acesso em 13 jan. 2016): 

E por aqui? 

Nestas terras descobertas por Cabral, sucedem as mesmas mazelas. 

Por aqui, da mesma forma, estudantes brasileiras são convidadas para eventos, festas e apartamentos, induzidas ou incentivadas a ingerir álcool e – nestas circunstâncias – submetidas às práticas sexuais. Esse fato foi descortinado na CPI que apurou 112 estupros. 

O que se considera uma “boa cantada” ou “forçada de barra” pode configurar crime de estupro, hediondo por definição legal. 

Sob o aspecto penal, ameaçar ou usar força física  - segurar, imobilizar, agredir a vítima - para praticar sexo ou ato libidinoso configura crime de estupro (art. 213, “caput”, do Código Penal, pena de 06 a 10 anos de reclusão).  Da mesma forma, há  estupro se a vítima não  consegue oferecer resistência, como na hipótese de embriaguez completa ou vítima inconsciente (art. 217 “, par. 1º, CP, pena de 08 a 15 anos de reclusão). 

Frequentemente, o estupro no ambiente universitário vem associado à ingestão de bebidas alcoólicas pela estudante, erroneamente interpretada como “passe livre” ou “sim implícito”. É assim que quase 1/3 dos estudantes homens pensam. 

Estarrece o fato de que, segundo a pesquisa, 

- 27% dos universitários homens não consideram  violência o abuso de uma mulher alcoolizada 

- 11% das alunas sofreram alguma tentativa de abuso sob efeito de álcool. 

O silêncio reinante nas relações conjugais violentas também impera nas universidades. Vergonha, medo, exposição e falta de apoio dos colegas e da instituição mantém ou reconduzem a estudante ao silêncio, o que leva à realidade de que 63% das estudantes admitem não ter reagido à violência, embora, formalmente, 88% dos homens e 95% das mulheres defendam que a faculdade deveria adotar medidas para punir responsáveis, nos termos do citado estudo. 

A cultura do estupro, fundada em estereótipos de que o homem deve ser predador e a mulher sempre está disponível é o substrato para a perpetuação dessa prática. 

Várias estratégias têm sido adotadas. A tradicional Marshall University mantém em sua página um informativo sobre a cultura do estupro e algumas condutas que a caracterizam, como as seguintes: culpabilizar a vítima (“ela pediu por isso”); banalizar a agressão sexual (“garotos são garotos”); brincadeiras sexuais explícitas; tolerância ao assédio;  analisar publicamente as roupas da vítima, seu estado mental, motivos e história pessoal; definição de masculinidade como dominante e sexualmente agressiva; definição de “feminilidade” como submissa e passiva sexualmente; pressão sobre os homens para “marcar ponto”; pressão sobre as mulheres para não parecerem “frias”; recusa em dar seriedade às acusações de estupro; ensinar as mulheres para não serem estupradas, ao invés de ensinar os homens a não praticar o estupro (tradução livre) (“Culture Rape”. Disponível em:  https://www.marshall.edu/wcenter/sexual-assault/rape-culture/. Acesso em 13 jan. 2016). 

Essas condutas naturalizadas mantém vivos e impunes os abusos nas universidades. Sob a lente da masculinidade do homem predador, que precisa “marcar pontos”, o “não” pode ter o sentido de “sim” ou “talvez”. 

Para combater essa ideia, iniciou-se um movimento nas universidades americanas quanto ao que é consentimento: manifestação livre e expressa. 

Na Califórnia, há a Lei n. 967, conhecida como “Yes means yes” (“Sim significa Sim”).  Pelo texto da lei, para receber financiamento do Estado, a instituição deve adotar medidas preventivas e repressivas adequadas, baseadas no padrão de “consentimento afirmativo”: concordância expressa, consciente e voluntária para a prática sexual, de modo que a falta de oposição, resistência e o silêncio não podem ser interpretados como consentimento. 

Além disso, na avaliação de denúncias em processo disciplinar, o agente não pode alegar sexo consensual se  sabia ou deveria saber que a vítima era incapaz de concordar porque: estava dormindo ou inconsciente; tornou-se incapaz em razão do uso de drogas, álcool ou remédios; não podia manifestar sua vontade por uma limitação física ou mental (Lei n. 967. Disponível em <http://leginfo.legislature.ca.gov/faces/billNavClient.xhtml?bill_id=201320140SB967>. Acesso em 20 jan. 2016). 

O assédio moral, destrutivo e configurador de violência moral ou psicológica, também está presente nas cátedras. 

Não só a desqualificação intelectual, mas também a abordagem invasiva, a humilhação, o isolamento, o “boicote” profissional e o desrespeito baseados em gênero e em discriminação por raça, cor, origem e orientação sexual ocorrem diariamente. 

Marie France Hirigoyen, na obra “El Acoso Moral: El maltrato psicológico en la vida cotidiana”, refere que “no mundo do trabalho, nas universidades e nas instituições, os procedimentos de assédio estão muito mais estereotipados que na esfera privada. Contudo, nem por isso são menos destrutivos” (tradução livre) (Buenos Aires: Paidós:2013, p. 47). Esses grupos surgem como uma nova entidade, distinta de seus membros, e muitas vezes não tolera o diferente ou a minoria. 

A autora também menciona que, se a empresa é indulgente com os abusos, essa “perversão gera imitadores que não são propriamente perversos mas perdem seus pontos de referência e terminam por se deixar convencer” (tradução livre, op. cit, p. 68). 

Insegurança, medo, isolamento, desequilíbrio, depressão e baixa estima são consequências comuns. As vítimas que reagem são isoladas, “boicotadas” e estigmatizadas, pois normalmente o assédio usa as vestimentas de brincadeiras ou posturas “inofensivas”. Como reagir a um olhar de desprezo? Como reagir a um apelido jocoso? Essa é a crueldade do assédio, oculto e dissimulado, faz nascer morta a reação. 

Para que a universidade possa escrever histórias pessoais de sucesso, deve aprender a reescrever sua própria história e se tornar uma “universalidade” de respeito. Afinal, mais do que livros há o saber dos limites do “sim”, do “não” do “talvez”, estruturantes de uma vida minimamente digna no tempo em que tudo parece ser permitido.

 

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