AG.REG. NO HABEAS CORPUS 150.527

RELATOR :MIN. EDSON FACHIN -  

Decisão: Trata-se de agravo regimental (eDOC.26) interposto contra decisão que, forte na ocorrência de hipótese de não conhecimento, sem possibilidade de concessão da ordem de ofício em razão da ausência de ilegalidade flagrante ou teratologia, negou seguimento ao habeas corpus. Sustenta em síntese, que: que: a) o paciente foi condenado, em 1º grau de jurisdição, à pena de 1 (um) ano, 8 (oito meses) e 20 ( vinte) dias de reclusão, em regime fechado, como incurso no crime previsto no art. 33, caput c/c §4º da lei 11.343/2006, pois teria sido surpreendido por policiais, em 21.10.2014, na posse e 1,51g (um grama e cinquenta e um decigramas) de “crack” e 23,15g (vinte e três gramas e quinze decigramas) de cocaína; b) o TJSP, em sede de apelação criminal, deu provimento a recurso da acusação, a fim de exasperar a pena-base em razão da quantidade/natureza da droga apreendida e afastar a minorante prevista no art. 33, §4º da Lei 11.343/2006, culminando na fixação final da reprimenda em 6 (seis) anos de reclusão, em regime fechado; c) há ilegalidade na dosimetria da pena operada pelas instâncias ordinárias e mantida pelo STJ, pois não há fundamentação idônea para negar a incidência do redutor do art. 33, §4º da Lei 11.343/2006, nem agravar a pena-base; d) ademais, o regime prisional estabelecido foi fixado unicamente com base na hediondez do delito, justificativa considerada ilegal segundo a consolidada jurisprudência do STF; e) há nulidade insanável na ação penal originária, pois a condenação fundamentou-se em depoimento colhidos “sob o crivo do falso testemunho”. À vista dos argumentos acima expendidos, “a reconsideração da decisão em que negou a liminar no presente habeas corpos, tendo em vista a sentença proferida no juízo a quo em que determina o regime inicial em aberto e convertida em restritivas de direito nos moldes da VEPEMA, mas mantendo o pedido de Prisão Preventiva do paciente. “ É o relatório. Decido. Tendo em vista a permissão contida no art. 317, § 2º, do RISTF, reconsidero, em parte, a decisão agravada e passo à reanálise dos autos. 1. Em razão dos argumentos lançados no agravo regimental, verifico hipótese de constrangimento ilegal a autorizar a concessão do habeas corpus de ofício, nos termos do art. 654, § 2º, do CPP, no que se refere a dosimetria da pena e regime prisional fixados pelas instâncias ordinárias. 1.1. No que atine à fixação da pena-base, as instâncias ordinárias reputaram desfavoráveis a culpabilidade do agente e potencial lesivo das drogas apreendidas: “Em poder do réu foram encontrados crack e cocaína, entorpecentes com alto poder de causa de causar dependência e extremamente destrutivo à saúde do usuário. Além disso, o grau de culpabilidade incidente sobre a conduta do réu deve ser mais acentuado, já que se trata de servidor público do município de Icém, que entregava merenda escolar, e ainda assim praticava conduta criminosa altamente perniciosa. Deste modo, nos termos dos artigos 59 do Código do Penal e 42 da Lei 11.343/06, a pena deve ser fixada um pouco acima do mínimo legal. Assim, fixo a pena base em 05 (cinco) anos e 02 (dois) meses de reclusão e 550 dias-multa.” (trecho da sentença condenatória). “Neste sentido afastada a referida causa de diminuição de pena, é de ser acolhido o apelo ministerial também para que a pena-base seja fixada 1/5 (um quinto) acima do mínimo legal, ou seja, em fração maior do que aquela aplicada pelo Magistrado de primeiro grau, reforma que é pautada não só no potencial lesivo das drogas apreendidas (cocaína e crack) e na maior culpabilidade  demonstrada pelo apelado ante sua condição de servidor público responsável por entrega de merendas escolares, mas que, ainda, assim, praticava ilícita penal de extrema gravidade, devidamente reconhecidos em sentença, mas, também, na substancial quantidade de entorpecentes, que seriam aptos a atingir dezenas de pessoas.” (trecho do acórdão proferido pelo TJSP). Embora não anteveja ilegalidade aferível de plano, no que tange ao agravamento da pena em razão da culpabilidade acentuada do agente, o mesmo não se pode dizer em relação a exasperação da pena-base,  motivada pela apreensão de 1,51g de crack e 23,15g de cocaína, a qual  está em descompasso com a consolidada jurisprudência desta Corte. Em casos análogos ao presente, considerou-se ilegal fundamentação que, centrada em quantidade/qualidade de droga semelhante a do presente caso, repercutiu em restrição cautelar à liberdade do paciente, ou em agravamento de sua pena.  Nesse sentido, cito o recente julgamento do Agr 147210, de minha relatoria, realizado na ambiência da 2ª Turma, em 30.10.2018 (acordão ainda não publicado), no qual se considerou que a pequena quantidade de droga apreendida (4,6 g de cocaína; 2,8 de crack e 15,7g de maconha) não era hábil a justificar o afastamento do redutor previsto no art. 33, §4º da Lei 11.343/2006. Na mesma direção, repiso outros casos análogos, citados pelo Min. Celso de Mello, no julgamento do já mencionado  AGR 147.210, nos quais também se considerou reduzida a quantidade de droga apreendida: HC 94767, Relator(a): Min. Ricardo Lewandowksi (12g de maconha); HC 112766/ SP, Relator(a): Min. Rosa Weber (164g de maconha); HC 123.765/SP, Relator(a): Min. Gilmar Mendes (9g de maconha); HC 28566/MG, Relator(a): Min. Roberto Barroso (34g de cocaína); HC 140454/SP Relator(a): Min. Ricardo Lewandowski (43g de maconha); HC 143147/SP, Relator(a) Roberto Barroso (158g de cocaína); HC 144199/AM, Relator(a): Alexandre de Moraes (3g de maconha; 2g de cocaína e 2g de crack). Desta feita, tendo em vista que a quantidade e natureza da droga apreendida, à luz da jurisprudência desta Suprema Corte, não justificam o agravamento da reprimenda, deve ser decotado o acréscimo operado em relação a essa vetorial específica, razão pela qual retiro metade do aumento estabelecido pelo juiz de 1º grau, restando a pena-base fixada em 05 (cinco) anos e 1 (um) mês de reclusão. 1.2. Noutro quadrante, no que se refere à não incidência do redutor previsto no art. 33, §4º da Lei 11.343/2006 em patamar máximo, também verifico a existência de constrangimento ilegal, passível de conhecimento de plano. No caso em mesa, a sentença condenatória, entendendo preenchidos os requisitos legais, aplicou, de forma adequada, a minorante do art. 33, §4º da Lei 11.343/2006 , nos seguintes termos : “Na terceira fase, por ser primário e de bons antecedentes e não haver notícia de que integre organização criminosa, reduzo a pena em 2/3, resultando em 01 (um) ano, 08 (oito) meses e 20 (vinte) dias de reclusão e 184 (cento e oitenta e quatro) dias-multa.” O Tribunal de origem, contudo, reformou no ponto a sentença proferida pelo Juízo a quo, assentando-se em fundamentação genérica e em descompasso com a consolidada jurisprudência desta Corte e que merece, portanto, ser reparada nesta via: “No caso dos autos, o apelante não pode, de forma alguma ser considerado traficante ocasional. Denota sua dedicação às atividades criminosas o fato de ter guardado vultosa quantidade e variedade de drogas, aliado à circunstância de que foi constatada em seu aparelho de telefonia celular mensagens de pessoas solicitando a compra de substâncias ilícitas, o que restou por conferir lastro às informações que circulavam pela cidade, no sentido de que ele, ainda que fosse funcionário público há muito tempo, era um dos principais traficantes daquele município, fato este que encontra guarida, também, na oitiva extrajudicial da testemunha Fernando. “ Como se nota a fundamentação utilizada cinge-se a reforçar a convicção de que o paciente era traficante, contudo é lacunosa ao detalhar quais provas corroborariam o entendimento de que era “um dos principais traficantes da cidade”, somente aludindo a “informações que circulavam na cidade” e a oitiva de uma “testemunha extrajudicial”, a qual, como cediço, não se presta a agravar a pena do acusado, à luz do que prevê o art. 155 do CPP. Desta feita, a argumentação tecida no decisum indica que não foi realizado um exame individualizado da conduta praticada pelo agente, ou sua relação com as vetoriais eleitas pelo legislador no art. 33, §4º da Lei 11.343/2006 (primariedade; bons antecedentes, não dedicação a atividades criminosas e não integração à organização criminosa), devendo-se, por conseguinte, restabelecer a decisão de 1º grau, nesse particular.  Com efeito, a quantidade de entorpecente apreendido (aproximadamente 1,51 de crack e 23,15 de cocaína) não é elevada, ao ponto de indicar ou dispensar um exame mais acurado acerca do não preenchimento de algum dos requisitos legalmente eleitos no art. 33, §4º da Lei 11.3343/2006. Além disso, do que consta nos autos, o paciente é primário e não há qualquer indicativo de que integre organização criminosa ou se dedique à traficância habitualmente. Dito isso, não visualizo qualquer argumento ou fundamento hábil a negar a incidência da minorante prevista no art. 33, §4º da Lei 11.343/2006 ao paciente, em seu patamar máximo. Nessa direção assentou a Segunda Turma deste Supremo Tribunal: “HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. LEI 11.343/2006. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA PREVISTA NO ART. 33, § 4°, DA LEI 11.343/2006. GRANDE QUANTIDADE DE MACONHA APREENDIDA (132,85 KG). DEDICAÇÃO À ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. NÃO OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. PACIENTE ABSOLVIDA PELO CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. RECURSO ORDINÁRIO AO QUAL SE DÁ PROVIMENTO EM PARTE. I A grande quantidade de entorpecente, apesar de não ter sido o único fundamento utilizado para afastar a aplicação do redutor do art. 33, § 4°, da Lei 11.343/2006, foi, isoladamente, utilizado como elemento para presumir-se a participação da paciente em uma organização criminosa e, assim, negar-lhe o direito à minorante. II A quantidade de drogas não poderia, automaticamente, proporcionar o entendimento de que a paciente faria do tráfico seu meio de vida ou integraria uma organização criminosa. Ausência de fundamentação idônea, apta a justificar o afastamento da aplicação da causa especial de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4°, da Lei 11.343/2006. Precedentes. III - É patente a contradição entre os fundamentos expendidos para absolver a paciente da acusação da prática do delito tipificado pelo art. 35 da Lei 11.343/2006 e aqueles utilizados para negar-lhe o direito à minorante constante do art. 33, § 4°, do mesmo diploma legal. Precedentes. IV - Recurso ordinário ao qual se dá provimento, em parte, para reconhecer a incidência da causa de diminuição da pena prevista no art. 33, § 4°, da Lei 11.343/2006, e determinar que o juízo a quo, após definir o patamar de redução, recalcule a pena e proceda ao reexame do regime inicial do cumprimento da sanção e da substituição da pena privativa de liberdade por sanções restritivas de direitos, se preenchidos os requisitos do art. 44 do Código Penal.” (RHC 138.715, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe 09.06.2017) 1.3. Por conseguinte, à luz das modificações realizadas na dosimetria da pena, deve o regime prisional imposto ao paciente também ser modificado, a fim de que cumpra a reprimenda, desde logo, em regime aberto, pois a pena-base restou fixada próxima ao mínimo legal, e o quantum de pena aplicado e a circunstâncias do caso concreto não recomendam regime mais gravoso (art. 33, §2º, “c” e art. 33,§3º, ambos do CP). Quanto ao ponto, elucido, ademais, que embora as instâncias ordinárias tenham reputado outra circunstância judicial desfavorável ao paciente (culpabilidade), a qual mantive incólume, não foi ela considerada ao fixar o regime prisional pelas instâncias ordinárias, e assim “não cabe  às instâncias superiores, em sede de habeas corpus, adicionais novos fundamentos à decisão de primeiro grau, visando a suprir eventual vício de fundamentação. Precedentes.” (HC 113.945, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 29.10.2013) Dito isso, avalio o regime prisional unicamente com base nos argumentos utilizados pelas instâncias ordinárias, as quais se centraram  na hediondez do delito, argumento que, como cediço, está em dissonância com a consolidada jurisprudência desta Corte. Com efeito, ao contrário do apontado na sentença (proferida em 08.05.2015), há muito é sedimentada a jurisprudência desta Corte quanto à inconstitucionalidade de fixação ex lege do regime inicial na hipótese de crimes hediondos e equiparados: “(…) Ordem concedida tão somente para remover o óbice constante do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei nº 11.464/07, o qual determina que “[a] pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado“. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da obrigatoriedade de fixação do regime fechado para Não bastasse, recentemente o tema foi consolidado em sede de repercussão geral, restando estabelecida a seguinte tese: “Tema 972 - É inconstitucional a fixação ex lege, com base no art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/1990, do regime inicial fechado, devendo o julgador, quando da condenação, ater-se aos parâmetros previstos no artigo 33 do Código Penal.” (ARE 1052700 RG, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, julgado em 02.11.2017) Partindo dessa premissa, não depreendo fundamento idôneo a amparar o regime estabelecido pois: (i) as circunstâncias judiciais foram majoritariamente valoradas de forma positiva; (ii) o réu é primário e (iii) o quantum de pena não recomenda sanção mais gravosa. Ademais, a insuficiência de fundamentação não pode ser sanada em grau de recurso exclusivo da defesa ou em habeas corpus, ação de mão única. Sendo assim, descabe às instâncias superiores suprir as lacunas de fundamentação da sentença para o fim de exteriorizar convencimento próprio quanto à relação entre dada circunstância negativa e o regime inicial de cumprimento da pena. Em outras palavras, o habeas corpus não constitui via adequada para fundamentação de aspectos punitivos na hipótese em que o Juiz competente não o fez. 1.4. Por derradeiro, presentes os requisitos legais para tanto, deve a pena privativa de liberdade ser substituída pela restritiva de direitos. Quanto ao ponto, reitero que a pena-base foi reformada e estabelecida próxima ao mínimo legal, não havendo nenhuma circunstância a desaconselhar a substituição. 2. Posto isso, reconsidero em parte a decisão agravada, e concedo a ordem de ofício, a fim de: a) decotar o acréscimo relativo a quantidade/natureza da droga, operado na pena-base fixada ao paciente, a qual restabeleço para o mínimo legal de 5  (cinco) anos e 1 (um) mês de reclusão; e b) aplicar o redutor do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 no percentual máximo de 2/3 (dois terços), e, consequentemente, fixar a pena privativa de liberdade final em 01 (um) ano e 08 (oito) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em regime inicial aberto, nos termos do art. 33, §§ 2º, c, e 3º, do CP, e a pena de multa em 167 (cento e sessenta e sete) dias-multa, no valor já arbitrado, bem como determinar a substituição da pena privativa de liberdade por 02 (duas) restritivas de direitos ou por 01 (uma) restritiva de direito e 01 (uma) de multa, nos moldes do art. 44, § 2º, do CP, a serem definidas pelo Juízo da Execução. Comunique-se, com urgência e pelo meio mais expedito (inclusive com utilização de fax, se necessário) ao Juiz da causa, a quem incumbirá a cientificação ao Juiz da Execução Penal que procederá, in continenti, eventuais ajustes necessários, em razão do tempo em que o paciente permaneceu custodiado (eventual detração penal e/ou progressão ao regime aberto). Comunique-se, outrossim, ao TJSP, para ciência desta decisão. 3.  Finalmente, no que tange à tese de nulidade da ação penal originária, não verifico argumentos hábeis a modificar o entendimento consignado na decisão monocrática. Trata-se, portanto, de questão que, oportunamente, submeterei ao Colegiado. Publique-se. Intime-se. Brasília, 28 de fevereiro de 2019. Ministro Edson Fachin Relator.

 

 

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