ACR – 10789/RN – 0005629-76.2012.4.05.8400

RELATOR: DESEMB. ÉLIO WANDERLEY DE SIQUEIRA FILHO -  

PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÕES CRIMINAIS DA DEFESA E DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. NULIDADE. INOBSERVÂNCIA AO ART. 384 DO CPP. MUTATIO LIBELLI. INOCORRÊNCIA. CRIME DE DISPENSA INDEVIDA DE LICITAÇÃO (ART. 89 DA LEI Nº 8.666/93). DOCUMENTOS QUE DEMONSTRAM O PARCELAMENTO INDEVIDO DAS AQUISIÇÕES, ALÉM DA INOBSERVÂNCIA DAS FORMALIDADES ATINENTES AO PROCEDIMENTO DE DISPENSA. CONDENAÇÃO MANTIDA. PROCEDIMENTOS IRREGULARES DE DISPENSA DE LICITAÇÃO EM CONJUNTO COM A UTILIZAÇÃO DE NOTAS FISCAIS FALSAS. CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE DESVIO DE VERBA PÚBLICA (ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI Nº 201/67). USO DE DOCUMENTO FALSO QUE SE EXAURE NO CRIME FIM. CONSUNÇÃO. APELO DO MPF PARCIALMENTE PROVIDO. APELO DA DEFESA NÃO PROVIDO. 1. Nos termos da denúncia, o apelante, à época no exercício do cargo de prefeito do Município de Santo Antônio/RN, incorreu nas condutas típicas previstas no art. 89 da Lei nº 8.666/93, ao dispensar ilegalmente a realização de diversos processos licitatórios destinados à aquisição de medicamentos, materiais médico-hospitalares e odontológicos, em diversas compras realizadas entre janeiro e outubro de 2004; e no art. 1º, inciso I, do Decreto-lei nº 201/67 e no art. 304 do CP, ao desviar recursos públicos e, posteriormente, justificar a regularidade dos gastos públicos mediante uso de notas fiscais falsas. 2. O crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93 é delito de ação múltipla, que se consuma quando realizada uma das condutas nele previstas - a dispensa fora das hipóteses legais ou a inobservância das formalidades pertinentes à dispensa. Ao descrever, pormenorizadamente, as contratações irregulares realizadas pela Prefeitura de Santo Antônio/RN, no período de janeiro a outubro de 2004, a denúncia possibilitou o pleno exercício da defesa e do contraditório, de modo que não há falar em mutatio libelli com base no fato de que a sentença acolheu o pedido condenatório, por fundamentação diversa daquela disposta na inicial acusatória. 3. Especificamente quanto à condenação pelo crime do art. 89 da Lei nº 8.666/93, alguns pontos merecem destaque. Primeiro, as provas denotam que a prefeitura do Município de Santo Antônio/ RN contratou as empresas Dental Médica, Lacmed, Artmed, Erivaldo Ferreira da Silva e Hospdent para o fornecimento de medicamentos e outros materiais de saúde por meio de procedimentos de dispensa de licitação, que, embora tenham atentado para o limite previsto no art. 24, inciso II, da Lei nº 8.666/93, o montante final extrapola essa limitação legal, ou seja, houve um fracionamento intencional das licitações, voltado exatamente para burlar o limite previsto em lei. Segundo, houve o descumprimento de uma série de formalidades, entre as quais: não consta, nos pareceres, a razão da escolha do fornecedor ou executante favorecido, nem a justificativa do preço contratado; não houve a publicação dos despachos de dispensa na imprensa oficial; os documentos sequer são numerados. Além disso, os procedimentos de dispensa foram constituídos de apenas três peças, realizadas praticamente em concomitância: quando não eram elaboradas na mesma data, eram concluídas em datas muito próximas, a reforçar a conclusão de que tais procedimentos sequer existiram de fato. Comprovada, portanto, a prática do crime previsto no art. 89 da Lei nº 8.666/93, deve ser negado provimento ao recurso defensivo, com a manutenção da sentença recorrida nesse ponto. 4. Além de algumas das aquisições terem sido realizadas por meio de dispensa indevida de licitação, as provas denotam que outras aquisições não só tiveram o procedimento burlado, como sequer existiram concretamente. Verificou-se que, ao menos com quatro empresas, a prefeitura dispensou a licitação e efetuou pagamento sem que os materiais fossem entregues. E mais: na tentativa de comprovar o recebimento dos produtos adquiridos, a edilidade apresentou notas fiscais inidôneas. 5. O exame das notas fiscais falsas em conjunto com outras provas que denotam a simulação de procedimentos licitatórios se mostra bastante para, neste processo, acolher o pedido do MPF e reformar a sentença, condenando o réu nas penas do art. 1º, inciso I, do Decreto-lei nº 201/67, ante a demonstração de desvio da verba pública federal. 6. Agora, se, por um lado, as notas são elementos que reforçam a comprovação da prática do crime de desvio, por outro, a falsidade não passou de meio para a consumação da irregularidade na aplicação da verba pública, razão pela qual deve ser reconhecido o princípio da consunção, com a absorção do crime de uso de documento falso pelo crime fim. 7. Como já decidiu o STJ, "a proibição do agravamento da situação do acusado, prevista no artigo 617 do Código de Processo Penal, também se estende aos casos em que há a anulação da decisão recorrida, por intermédio de recurso exclusivo da defesa ou por meio de impetração de habeas corpus, de tal sorte que o órgão julgador que vier a proferir novo julgamento ficará vinculado aos limites da pena in concreto imposta na decisão anulada, não podendo, de forma alguma, recrudescer a sanção, sob pena de operar-se a vedada reformatio in pejus indireta" (EDcl no AgRg no AREsp 596663 / MG). 8. Desta forma, no tocante à dosimetria, passa a ser adotada a fundamentação do acórdão anulado: "Dosimetria. Na escala de valores para fins de dosagem da pena a ser aplicada, deve ser atribuída maior gravidade aos crimes que envolvam violência, pois geralmente revelam um comportamento que merece uma censura penal mais rigorosa. Diante disso e considerando as circunstâncias dos autos, deve ser mantida, em relação ao crime do art. 89, da Lei nº 8.666/93, a repressão fixada pelo juízo recorrido no total de 4 anos e 6 meses e pena de multa de R$ 383.676,48 (trezentos e oitenta e três mil, seiscentos e setenta e seis reais e quarenta e oito centavos), nos moldes fixados na sentença. 13. Em relação ao crime do art. 1º, I, do Decreto-lei 201/67, verifica-se a presença de três circunstâncias judiciais desfavoráveis, a saber: a) culpabilidade, porquanto o réu se valeu do expediente torpe de "fatiar" o objeto de licitação utilizando-se de documentos falsos para malversar o patrimônio público, cuja administração lhe fora confiada por seus eleitores; o que, se em razão do princípio da consunção, não é o bastante para delinear crimes autônomos (art. 89 da Lei nº 8.666/93 e 304 do CP), é razão suficiente para a exasperação da pena-base quanto ao crime-fim; b) conduta social, visto que o réu possui vários registros negativos no TCU, assim se entendendo julgamentos transitados em julgado de rejeição de contas, com determinação de devolução de valores, relativos a fatos diversos dos da presente ação penal (Acórdão nº 3672/09 - 2ª Câmara , Acórdão nº 3139/2010 - 1ª Câmara, Acórdão n º 2561/2011  - 1ª Câmara, Acórdão nº 2396/2011 - 1ª Câmara); c) consequências do crime, "haja vista que a errônea aplicação das verbas públicas pelo gestor prejudicou o usufruto, por parte da população, de direito básico constitucionalmente previsto, qual seja a saúde" (ACR 10131, Rel. Des. Margarida Cantarelli, TRF 5 - Quarta Turma, DJE - Data: 26/09/2013). No mesmo sentido: ACR 9598, Rel. Des. Cíntia Menezes Brunetta (convocada), TRF 5 - Primeira Turma, DJE - Data: 01/08/2013. Diante disso, pela prática dessa conduta, aplica-se a pena-base acima do mínimo no montante de 4 (quatro) anos de reclusão e 100 (cem) diasmulta. Segunda fase. Ausentes atenuantes ou agravantes. Terceira fase. A princípio, considerando a existência de 41 dispensas indevidas de licitação e o consequente desvio dos respectivos valores, e já ser pacífico na jurisprudência que "no caso de sete infrações cometidas pelo paciente, correto o aumento da reprimenda na fração de 2/3 (dois terços)" (HC 200703075435, Felix Fischer, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:16/06/2008), aumenta-se a pena em 2/3, tornando-a definitiva em 6 anos e 8 meses de reclusão e 166 (cento e sessenta e seis) dias-multa. 14. Nos termos do art. 69 do CP, diante da diversidade material de condutas, aplicar-se-ão comutativamente as penas relativas aos dois crimes praticados. Isso posto, condena-se o réu à pena definitiva de 11 (onze) anos e 2 (dois) meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime fechado, 166 dias-multa, à razão de 1/5 (um quinto) do salário mínimo vigente à época dos fatos e multa de R$ 383.676,48 (trezentos e oitenta e três mil, seiscentos e setenta e seis reais e quarenta e oito centavos), nos moldes fixados na sentença, declarando-se ainda a sua inabilitação para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, pelo prazo de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 1º, § 2º do Decreto-lei nº 201/67". 9. Apelação criminal da defesa não provida. Apelação criminal do MPF parcialmente provida.

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