A Corrupção do Judiciário

 

"La ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos." (Camponês salvadorenho)

"Um vizinho muito próximo do formalista é o juiz acomodado, o que se afirma apolítico e entende que não é tarefa sua fazer indagações sobre a justiça, a legitimidade e os efeitos sociais da lei. Esse é, possivelmente, o caso da maioria dos juízes." (Dalmo de Abreu Dallari).

RESUMO: Este artigo trata da questão da desigualdade na administração da Justiça Penal no Brasil, focando aspectos da teoria da decisão, bem como fatores psicológicos e sociológicos que interferem no processo de sua tomada. Por meio da percepção de que o vigente discurso democrático que é sustentado por parcela dos operadores do direito na verdade encobre uma prática autoritária que em nada difere do discurso de medo difundido às massas, constata-se que, em boa medida, a efetivação das garantias penais somente encontra espaço quando o acusado ostenta alguma característica que o torne um "igual" - ou mesmo um "superior" - aos olhos do julgador, e não quando se trata de um "inimigo" social. Assim, sustenta-se que o Poder Judiciário abriga, nesse sentido, traços de corrupção. Aquela relativa aos valores democráticos, especialmente a igualdade.

1 Introdução

Não parece haver correspondência com a realidade discursos que atribuem a peja de corrupto ao Poder Judiciário. Evidente que há agentes corruptos em suas entranhas, dentre juízes, escreventes e oficiais de justiça. Trata-se de uma instituição humana, é o que basta dizer, mas não se observa um problema de corrupção endêmica notadamente naquilo que é o foco de preocupação: na atuação dos agentes políticos encarregados de dizer o direito.

Porém, se o termo corrupção for tomado não de um modo estritamente ligado aos tipos penais respectivos, mas, sim, no sentido de algo deturpado de seus anunciados atributos (republicanos) e objetivos (democráticos), talvez não seja um erro, ou um exagero ao menos, observar aspectos de corrupção nas entranhas de um Judiciário ainda bastante atrelado aos donos do poder. É nesse sentido, pois, que parece pertinente falar de corrupção do Judiciário.

Nesse contexto, em matéria criminal, uma das questões mais instigantes que se coloca é no sentido de saber se a Justiça dispensa um mesmo tratamento aos que são oriundos das classes dominantes e àqueles que advêm de setores oprimidos e marginalizados da sociedade.

Não se trata de meramente observar que as normas penais são seletivas, mas principalmente de analisar os mecanismos por trás da decisão judicial em um ou em outro caso, ou seja, a questão que se coloca é se os juízes criminais decidem do mesmo modo independentemente de ser o acusado um empresário que pode cruzar com o julgador à noite no restaurante - até porque muito provavelmente não estará preso cautelarmente - ou um indivíduo que costuma perambular pelos cruzamentos que separam a residência do julgador do fórum.

O tema certamente não é novo, e não é, também, pouco explorado. Porém, parece ainda valer a pena insistir na constatação de que o sistema penal não trata a todos igualitariamente.

Com isso, espera-se contribuir para que cada vez mais sejam evidenciados quais mecanismos estão por trás da tomada de decisão (especialmente na área criminal, foco deste artigo), fazendo com que um número crescente de juízes tome consciência de que não são seres assépticos, no sentido empregado por Eugenio Raúl Zaffaroni, que estão suscetíveis de serem influenciados por fatores ocultos - e que negá-los apenas reforça projeções e, portanto, acarreta um menor domínio racional sobre a tomada de decisão sob critérios de justiça -, inclusive em razão de suas classes sociais de origem, por seus interesses carreiristas - as quais, em razão de uma estrutura ainda autoritária e arcaica dos tribunais, podem ser prejudicadas em certa medida se exercida com ampla liberdade a independência funcional -, que suas decisões carregam, sim, carga política, evidenciam opções ideológicas, e que o Judiciário, enfim, não tão raramente não é isonômico no tratamento dirigido aos "nossos" e aos "outros".

Assim, nas próximas linhas serão tecidas algumas considerações acerca do tratamento despendido pelo Judiciário no julgamento da criminalidade ordinária, de um lado, e aquela conhecida como do colarinho-branco, de outro - sem restringir-se, no entanto, a tal dicotomia, mas apenas como um exemplo de algo maior que se procurará tratar, no que tange às identificações dos julgadores com certos clientes do Judiciário, ao passo que em relação à imensa maioria há barreiras ao exercício pleno da alteridade. Para que tal análise faça sentido, serão discutidos, rapidamente, alguns dos possíveis mecanismos de tomada de decisão pelos julgadores - inclusive questionando-se quem seriam esses julgadores -, contextualizando a abordagem não apenas com aspectos da psicologia, mas, também, de uma análise sociológica que identifica a potencialidade de o direito ser exercido não como um fator de emancipação de todos os seres humanos no resgate e garantia de sua liberdade e igualdade, mas, sim, na manutenção do apartheid social que faz o país ostentar o 3º pior índice entre as nações mais socialmente desiguais do mundo, segundo relatório regional para a América Latina e Caribe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2010.

2 Mecanismos da Decisão Judicial e a Desigualdade na Administração da Justiça Penal

Não parece ser mais segredo para quem quer que se disponha a estudar com seriedade a forma pela qual são tomadas decisões judiciais que, de acordo com Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, "acontece, muito amiúde, aliás, não sendo isso necessariamente deplorável, que mesmo um magistrado conhecedor do direito formule seu julgamento em dois tempos, sendo as conclusões a princípio inspiradas pelo que lhe parece ser mais conforme a seu senso de equidade, vindo a motivação técnica apenas como acréscimo".

Seguindo nessa linha, analisando as ideias pragmatistas de Richard Posner, Ronald Dworkin indica que "sua única resposta ao argumento de que seu pragmatismo permanece vazio é a de que os juízes norte-americanos concordam o suficiente quanto aos melhores objetivos para sua sociedade, o que torna desnecessária qualquer definição ou discussão acadêmica desses objetivos".

A par da importante crítica de Ronald Dworkin ao identificar que, na realidade, não há tal consenso, já que é perceptível a divergência dos juízes em diversas questões políticas importantes para o direito, tem-se que defender a legitimidade das decisões judiciais com base em um suposto consenso acerca de quais seriam os melhores objetivos para a sociedade é advogar a própria ausência de legitimidade de tais decisões, pois fundadas no arbítrio - e coisa diversa não é, na medida em que não se apresentam critérios de escolha de tais "melhores objetivos". A não ser que de fato - a par do tal consenso que não há - fosse possível sustentar que os juízes tenham a capacidade de escolher invariavelmente os "melhores objetivos" para a sociedade - seja lá o que isso for, o que implicaria em amparar, inclusive, a ideia de juízes como deuses.

A mera seleção rigorosa para os quadros da magistratura parece não imunizar seus membros de adotarem visões não condizentes com os tais melhores anseios da sociedade. Em primeiro lugar, porque o mero saber técnico não qualifica o julgador para o bom exercício de sua função. Em segundo lugar, poder-se-ia investigar o próprio perfil da magistratura - perpetuado, inclusive, por sua forma de seleção, que é composta, no geral, por membros de uma classe média ainda muito atrelada a ideais conservadores no Brasil.

A partir de tal perfil, fica evidente que os juízes, em boa medida, tenderão a eleger como "melhores objetivos" aqueles que mais se encontram arraigados em seu contexto social próprio - o que, evidentemente, não representará, necessariamente, os anseios de toda a sociedade.

Portanto, a não ser que convenhamos admitir como legítimo o exercício arbitrário do poder, no que se implicará em negativa aos postulados de um Estado Democrático de Direito, é preciso - para além de identificar tal fenômeno na prática judicial em algumas circunstâncias  atribuir "condições de veracidade" às proposições de direito.

Sendo assim, a adoção de uma teoria da justiça mostra-se imprescindível caso estejamos dispostos a insistir na realização concreta de promessas como a de "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3º, I, da Constituição Federal). Levando-se em conta que o modo de organização que se tem mostrado mais legítimo contemporaneamente - por procurar consagrar os interesses de todos os seres humanos - é a "democracia constitucional, a concepção pública da justiça deveria ser, tanto quanto possível, independente de doutrinas religiosas e filosóficas sujeitas a controvérsias" (John Rawls). Diante do pluralismo e da complexidade das sociedades atuais, o Estado não poderá obter um acordo político sobre questões filosóficas, morais ou religiosas sem que, nas palavras do citado autor, "ofenda as liberdades fundamentais" (p. 212); mas se "todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos", como nos parece fazer acreditar não apenas a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo I, primeira parte), mas, também, uma própria "intuição que nos parece estar implícita na cultura pública de uma sociedade democrática" (p. 213), o que melhor nos atende sob o ponto de vista político é uma teoria da justiça como equidade, cujo objetivo "não é metafísico nem epistemológico, mas prático" (p. 211), fundada na ideia contratualista de um véu de ignorância a impedir que cada membro da sociedade, em estado de posição original, conheça seu papel social e todas as contingências de sua futura posição em sociedade, obtendo-se, assim, um acordo o mais justo possível para a vida em sociedade, isto é, num "sistema de cooperação entres pessoas livres e iguais" (p. 223).

Mas seja como for, ainda que possamos obter alguma segurança na compreensão da gênese da decisão judicial e até mesmo na adoção de uma certa concepção de justiça, cabe insistir em analisar a efetivação prática no cotidiano judicial dos discursos doutrinários.

Evidente que se questionados os juízes acerca de garantias, como a presunção de inocência, o devido processo legal, o direito à intimidade, dentre outros, certamente sustentariam sua grande importância e afirmariam que os observam em suas atuações práticas.

Porém, a realidade tem nos mostrado que o discurso democrático não se efetiva de modo amplo nas manifestações concretas no campo da Justiça Penal e não apenas nela.

Conforme observaram Ivan César Ribeiro e Brisa Lopes de Mello Ferrão, "em dois estudos diferentes, Bolívar Lamounier e Armando Castelar Pinheiro colocam esses juízes frente a um dilema: em um extremo manterem um contrato independente de todas as suas consequências sociais, no outro extremo ignorarem o contrato como forma de alcançar a justiça social. Os juízes, envergonhados de seu papel de aparato neutro em uma sociedade tão injusta, tendem a concordar com a segunda posição. É uma resposta que diz tanto sobre a forma como decidem quanto pesquisas que perguntam sobre hábitos de filantropia das pessoas: responde-se o que parece socialmente certo, não o que realmente se faz".

Outro exemplo, agora mais ligado à teoria da decisão, é apresentado por Ronald Dworkin. Segundo ele, "alguns dos juízes dessa [Suprema] Corte [norte-americana] que adotaram o originalismo não observaram coerentemente seus princípios em seu próprio comportamento judicial. Seus votos em casos controvertidos poderiam ser mais bem explicados por uma agenda política muito conservadora que não depende do êxito de nenhuma interpretação feral de nossa prática jurídica".

Daí decorre a conclusão lógica acerca da importância vital da análise da prática judicial de modo a testar as hipóteses teóricas acerca da real efetivação do que, no fundo, pode ser sintetizado na figura dos próprios direitos humanos.

E se em relação a estes, de modo geral, permanece válida a assertiva de Norberto Bobbio, no sentido de que o problema de nossa época não é propriamente fundamentá-los (filosoficamente), mas, sim, efetivá-los (politicamente), certamente não é diferente com aquela parcela de direitos e garantias relacionadas ao direito penal e processual penal - inclusive, e talvez primordialmente, em relação à observância do princípio da igualdade.

Na mesma linha, mas sob outro aspecto, Renato de Mello Jorge Silveira traz a lembrança da crítica acerca do distanciamento da teoria em relação às questões da prática no campo penal. Travam-se debates metafísicos intermináveis no direito penal enquanto milhares de jovens excluídos permanecem sendo lançados, e em números cada vez mais crescentes, às masmorras contemporâneas.

De outro lado, e retomando a crítica acerca da baixa efetivação prática das garantias já há muito consagradas, inclusive em razão dos constantes avanços que a teoria do direito e a metodologia têm proporcionado à ciência penal, não é incomum observar que a práxis não tem se aproveitado de tais progressos em diversas situações.

Conforme Winfried Hassemer, "o juiz penal de hoje parece mais inclinado a buscar soluções 'sensatas' do que seguir 'cegamente' a letra da lei, atuando, assim, mais teleologicamente do que gramaticalmente - uma tendência perigosa para o direito penal, de se tornar um 'juiz do rei'. O legislador penal contempla isso com benevolência e ainda amplia o campo de decisão do juiz, outorgando-lhe critérios vagos de decisão".

Ainda segundo o autor, "enquanto sempre se soube - ou se poderia saber - que as instruções formuladas pela lógica jurídica ou pela teoria analítica do direito pouco significam para a prática jurídica (porque os erros da prática têm caráter mais substancial e político do que formal-dedutivo), agora também se sabe que as regras de caráter substancial-racional formuladas pela metodologia somente alcançam a prática, quando muito, mediante mecanismos de mediação deturpados. Daí não decorre de modo algum que a jurisdição atue de forma voluntarista ou caótica. Ela segue uma espécie de 'teoria da prática', a saber, as regras e os programas informais por ela própria desenvolvidos".

Cabe questionar, nos parece, o significado de tal caráter substancial e político dos apontados "erros da prática".

Seriam eles conscientes ou inconscientes?

E a tal "teoria da prática", com "as regras e os programas informais por ela própria desenvolvidos", no que constituiria?

Podemos constatar em diversos julgados claras referências a diretrizes teóricas alinhadas a postulados libertários de uma ciência penal garantista, mas, agora, segundo Winfried Hassemer, há razões para sermos céticos quanto à utilização de tais diretrizes na produção das decisões e não apenas na sua apresentação.

Sendo assim, haveria plenas possibilidades, no âmbito dessa "teoria da prática", de serem produzidas decisões que formalmente anunciem e reforcem o valor das garantias processual-penais, mas que não as levaram em conta, verdadeiramente, em seu processo de formação, de modo que um mesmo tribunal, uma mesma turma ou câmara julgadora, ou até um mesmo magistrado, tenha um conjunto de decisões em matéria penal absolutamente heterogênea no que tange à efetivação daquelas garantias, na busca por "soluções 'sensatas'" - e em prejuízo do princípio da legalidade.

Citando o pensamento de Max Wertheimer (Productive thinking. Nova York; Londres: Harper and Brothers, 1945. p. 135-136), Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca indicam que "podem-se observar (...) maravilhosas mudanças nos indivíduos, como quando uma pessoa apaixonadamente sectária torna-se membro de um júri, ou árbitro, ou juiz, e suas ações mostram então a delicada passagem da atitude sectária a um honesto esforço para tratar o problema em questão de uma maneira justa e objetiva. Ocorre o mesmo com a mentalidade de um político cuja visão muda quando, após anos passados na oposição, torna-se membro responsável do governo".

Não se ignora tal fenômeno, evidentemente. Porém, não raro, observa-se certa "dificuldade" nos julgadores em justamente assumirem com honestidade e transparência seu novo papel social: o de garantidores dos direitos e garantias constitucionais - ao menos na visão daqueles que leem a Constituição Federal como uma carta fundante de um Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, lugares-comuns e concepções divorciadas de qualquer arcabouço teórico pertinente a uma discussão jurídica séria são defendidos por muitos juízes criminais como se estivessem a indignar-se com os amigos, em uma mesa de bar, por conta da "explosão da violência em nossa cidade".

Talvez tal ausência de um exercício racional no processo decisório encontre explicações também psicológicas, além daquelas de cunho sociológico, notadamente em uma área que mexe de modo muito claro com ideias de desvio, anormalidade, pulsão e violência.

Nessa linha, conforme Lídia Reis de Almeida Prado, "não haveria um arquétipo de juiz e outro de infrator. Cada um deles seria uma das extremidades de uma mesma situação arquetípica". Por ser natural ao ego buscar neutralizar ambivalências, tem-se uma ruptura entre aquelas extremidades, de modo que um dos polos arquetípicos "permanece consciente e o outro poderá, reprimido, ficar no inconsciente e ser projetado sobre as partes do processo", o que "pode levar o magistrado a acreditar que o ato antijurídico nada tem em comum consigo: que o mal só existe no réu, fraca criatura, que vive num mundo totalmente diverso do seu".

Com razão a autora, assim, ao sustentar que "um magistrado, que tenha vivências de alteridade no ato de julgar, terá maior possibilidade de outorgar aos jurisdicionados boas decisões".

Mas tal alteridade, condição essencial para um julgamento justo, pode vir deturpada no inconsciente do julgador, de modo que ele apenas se coloca no lugar do outro que não seja "tão outro assim". O agente público que estudou em boas escolas - e que, portanto, "fala a mesma língua do juiz" -, o réu proveniente da mesma classe social do julgador, o acusado, no júri, que se indigna, assim como muitos magistrados e jurados, com a "incapacidade do governo em deter o aumento avassalador da violência", e que, até por isso, diz ter agido em legítima defesa ao atirar no garoto maltrapilho que o abordou no semáforo simulando portar uma arma na cintura, etc. Por mais que, ao contrário do juiz, estejam todos envolvidos com uma acusação perante a Justiça Criminal.

Já imaginar-se no lugar do furtador, do assaltante ou do traficante é algo impensável para muitos julgadores.

Aí entram as projeções e sai a efetivação das garantias processual-penais de modo independente da qualificação do acusado.

E tem-se que o fenômeno pode já ser percebido a partir da seletividade da criminalização. Sobre os membros das classes oprimidas age a Justiça Penal com todo o seu rigor, ocultando-se "a criminalidade dos opressores, com suas leis tolerantes, tribunais indulgentes e imprensa discreta".

A par de diversas condutas praticadas legalmente por certa parcela da população, mas que são tão ou muito mais lesivas do que a maioria dos delitos previstos em nossa legislação, é preciso observar que em relação às condutas tipificadas, como crimes das classes dominantes, impera uma certa característica nos julgamentos que diz respeito à observância de garantias aos réus em um nível de preciosismo muito maior do que em relação aos feitos da criminalidade ordinária.

Ou seja, são duplamente favorecidas: primeiro, pelo vácuo legal em relação a diversas condutas ofensivas por seus membros muitas vezes praticadas - ou por um tratamento normativo privilegiado a eles dirigido quando "às voltas com a lei", e, segundo, pelo tratamento "mais ameno" que recebem da Justiça Criminal.

De outro lado, as classes menos favorecidas são, por sua vez, prejudicadas já pela própria condição de opressão em que vivem e também por sofrerem, de modo inverso, a seletividade do sistema penal já em sua órbita normativa (criminalização de certas condutas praticadas pelas classes excluídas), passando pelos filtros promovidos pela atividade policial, pelo foco de atuação do Ministério Público e chegando-se à órbita propriamente jurisdicional (com a cotidiana não observância de garantias e direitos na prática judiciária).

A mídia propaga um claro discurso de medo em relação à criminalidade ordinária no sentido de que "os bandidos não são mantidos presos pela Justiça", de que "há muitos benefícios aos marginais", de que "a impunidade de assaltantes e traficantes tem fomentado a criminalidade", etc. -, que não encontra, evidentemente, uma correspondência válida com a realidade.

Já em relação à criminalidade do colarinho-branco, a reação social (estimulada pela mídia) não é de mesma ordem.

Enquanto que no caso da criminalidade ordinária a "indignação" que se produz, notadamente nas classes médias e altas, pode estar associada a uma dificuldade de enxergar no outro um semelhante - tomando-o, isso sim, como um inimigo, muitas vezes -, a um anseio pela manutenção da própria exclusão social, ou mesmo, de modo geral, a uma "necessidade" atávica por vingança (no que se aplicaria também às classes menos favorecidas). No caso de crimes do colarinho-branco, a impressão que se tem é que tal sentimento comum por vingança é, na verdade, qualificado por uma possível inveja inconsciente em relação aos "benefícios" fáceis obtidos pela "esperteza" do corrupto.

É claro que também não se pode deixar de notar um "forte sentimento experimentado pelo cidadão comum quanto à desigualdade da repressão penal", notadamente "entre os membros das classes mais desfavorecidas", mas exercido, vale observar, com aquele comedimento próprio do homem cordial.

Mas tanto no caso do discurso relativo à criminalidade ordinária quanto naquele atinente aos delitos do colarinho-branco o que se tem é a hegemonia de classe operando. Em relação ao primeiro, para que se mantenha e se justifique a exclusão (vendo na pobreza o inimigo, que deve ser combatido - e não a ela, por meio da emancipação de todos os cidadãos com vista a uma vida verdadeiramente digna -, conforme o discurso da Lei e da Ordem). Já em relação ao segundo, observa-se uma reação aos ruídos produzidos pelo sistema - ou, caso prefira-se, pelo mercado -, ou seja, o desvio para além do aceitável - leia-se, para além do que, sendo igualmente prejudicial ao povo, é convenientemente mantido na legalidade, na lógica do mercado - e que não tenha sido feito com a devida cautela para que fosse mantido longe dos olhos e ouvidos das classes subalternas ou mesmo da própria classe média umas e outras também convenientemente alienadas das reais discussões políticas importantes para os rumos da sociedade. E cabe destacar que tal mencionada reação é, inclusive, incentivada pelas próprias classes dominantes. Isso porque a hegemonia é exercida através de um poder simbólico, que "é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem", de modo que para esse mecanismo que opera na alienação é importante que se acredite que há uma ferramenta social (o direito penal - simbólico, evidentemente) que dará conta dos desvios, inclusive das elites.

Ocorre que, se de um lado - e em certo sentido -, o direito penal simbólico é utilizado para meramente iludir a população acerca da promessa de igualdade contida nas ideias de República e de Estado Democrático de Direito, de outro, ele traz consequências bastante reais - e nefastas! - em face dos "inimigos de sempre".

Seja como for, a solução não parece ser o recrudescimento no combate aos delitos usualmente praticados pelas classes dominantes através, por exemplo, de um Judiciário "menos atento" às garantias constitucionais também em relação a eles - e não apenas em relação àqueles crimes geralmente cometidos pelas classes sociais oprimidas.

Mas retomando o processo de decisão judicial que, no mais das vezes, implica na apontada discriminação em razão da origem social do acusado, tem-se que em uma sociedade em que há clara preponderância de uma pequena parcela da população no poder político e econômico, na qual a classe média expressa, forjada em boa parcela pela mídia  da qual é forte sustentáculo através da expressão máxima de sua cidadania, o consumo -, sentimentos de exclusão em relação a uma grande massa de pobres ou mesmo ainda muitos miseráveis, bem como uma tendência de enxergar violência apenas e tão somente na chamada delinquência ordinária, superdimensionando-a, inclusive, o "auditório que se propõe persuadir, a suas exigências em matéria de direito e de justiça", tudo isso forjará a motivação - e, portanto, o próprio conteúdo - de boa parcela das decisões em matéria penal (que aqui nos interessa) no sentido de satisfazer uma ampla exigência por vingança e proteção, uma vez que, conforme Chaïm Perelman, "o direito é, simultaneamente, ato de autoridade e obra de razão e persuasão", sendo que, "detentor de um poder, num regime democrático, o juiz deve prestar contas do modo como o usa mediante a motivação. Esta se diversifica conforme os ouvintes a que se dirige e conforme o papel que cada jurisdição deve cumprir".

Nesse ponto, a indagação que surge é justamente acerca da legitimidade de uma argumentação produzida com vistas aos aplausos de uma plateia que pouco ou nada está afeita, em seu dia a dia, aos princípios e garantias constitucionais.

De outro lado, poder-se-ia questionar se em um Estado Democrático de Direito haveria espaço a uma completa desvinculação aos "sentimentos públicos" por parte do juiz?

Aí parece que é imperativo retornarmos ao início. Não do presente texto, mas da própria concepção de Estado e de sociedade. Desejamos, afinal, um governo de homens ou um governo de leis?

Parece não ser necessário perder-se muito tempo em discutir a conveniência de um governo de leis, limitando-se o arbítrio, ordenando a vida social por critérios de Justiça, etc.

Para a constituição de um governo de leis, este, necessariamente, deve estar calcado em um sistema de justiça, sob pena de não haver razão para a sua existência, frente ao arbítrio de um governo de homens - a não ser que consideremos a "conveniência" de se "legitimar" um Estado arbitrário em um discurso legalista, em um sistema normativo, ainda que não provido de bases democráticas ou mesmo que estas sejam constantemente desrespeitadas pela produção e aplicação normativa.

Assim, se o melhor caminho é regerem-se as sociedades pelo governo das leis, se estas devem estar inseridas em um sistema de justiça e se este possui em sua base valores tidos como caros por dada sociedade, os quais devem ser observados por toda a cadeia subsequente, é um imperativo lógico admitir que um verdadeiro Estado Democrático de Direito somente é constituído justamente sob essas bases e, sendo assim, não permite que "o são sentimento do povo"  seja fundamento válido para a quebra dos próprios valores fundantes da ordem jurídica. Para além disso, tem-se que não se pode manter incólume um discurso democrático e republicano sem que a prática do poder estatal se afine, verdadeira e cotidianamente, a ele.

Nesse contexto, cabe observar que, "contrariamente aos poderes executivo e legislativo que são poderes de maioria, o juiz julga em nome do povo, mas não da maioria, em tutela das liberdades também das minorias" .

Assim, deve assegurar o respeito aos princípios e garantias constitucionais ainda que a "opinião pública" brade o contrário em dado caso concreto. Nesse sentido, conforme Eros Grau, "a independência é expressão da atitude do juiz em face de influências provenientes do sistema e do governo. Permite-lhe tomar não apenas decisões contrárias a interesses do governo - quando o exijam a Constituição e a lei -, mas também impopulares, que a imprensa e a opinião pública não gostariam que fossem adotadas".

É preciso, em outras palavras, que haja juízes no Brasil conscientes de suas falibilidades, de sua condição humana, das influências de fatores psicológicos em seus julgamentos, de que é a eles atribuída a missão de decidir sobre bens caríssimos aos membros da sociedade, sendo-lhes exigido, por um imperativo ético de confiança social, antes de mais nada, que coloquem sua independência funcional na aplicação da justiça acima de interesses carreiristas, de receios da mídia, de pressões de massa, exercendo o ato de julgar com alteridade e com vista à consecução prática cotidiana dos valores próprios do Estado Democrático e Social de Direito consagrado pela norma fundante.

3 Conclusão

É verdade que, conforme Cláudia Maria Cruz Santos, não há unanimidade na tese de que a Justiça dispensa um tratamento desigual em razão dos seus diferentes clientes; porém, não nos parece possível negar certas evidências da prática judiciária (e do sistema penal como um todo) a apontarem na direção de que há, sim, ao menos, "algumas diferenças no sancionamento", conforme expressão utilizada pela autora em questão - e conforme esperamos termos podido demonstrar ao longo do presente artigo.

A questão central do julgador, aquilo que lhe mais importa para bem desempenhar o seu papel, parece-nos condensar-se na figura da alteridade, uma vez que, conforme afirmou Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, "é mister, para intervir numa controvérsia cujo desfecho afetará determinado grupo, fazer parte desse grupo ou ser-lhe solidário". O "fazer parte desse grupo" é - para o que nos interessa neste breve estudo - estar e saber-se inserido na sociedade, reconhecer-se um criminoso em potencial - ou até mais, um infrator, tomar consciência de sua falibilidade humana, não pretender ordenar a tudo e a todos, admitindo que não há perfeição na vida em sociedade. O "ser-lhe solidário" é ter tudo isso em conta e colocar-se no lugar do réu, pensar em sua formação, imaginar-se nascendo, crescendo e vivendo em seu contexto social, familiar, geográfico. E, ao contrário do que uma leitura superficial dessa colocação pode indicar, nada disso implica em tornar-se o juiz parcial. Ainda conforme os autores citados,"ser imparcial não é ser objetivo, é fazer parte de um mesmo grupo que aqueles a que se julga, sem ter previamente tomado partido por nenhum deles".

Talvez a alteridade venha sendo mais exercitada pelos julgadores, em assuntos criminais, justamente quando seja óbvia que assim ocorra (réus mais parecidos com os julgadores, etc.). Porém, se a partir da constatação de que "a evolução da humanidade foi no sentido de uma complexidade maior da vida social, tornando-se mais difícil a captação da ideia predominante de justiça", tendo-se que "a consequência é que, por mais que se queira evitar, não há como recusar a profissionalização dos juízes", não se pode admitir que tais profissionais não possam ser, em primeiro lugar, selecionados e, em segundo lugar, melhor preparados no sentido de exercerem conscientemente a razão - não aquela que signifique somente ter "bons conhecimentos técnico-jurídicos, pois o juiz que oferecer apenas isso, ainda que em alto grau, não conseguirá ser mais do que um eficiente burocrata", e muito menos, evidentemente, a que reduza o pensamento a um positivismo asséptico e a um formalismo vazio, mas, sim, a que implique em uma maior consciência acerca dos fatores que podem influir no processo de tomada de decisão, que permita, a partir daí, tornar o juiz ciente de que deve esforçar-se para evitar projeções, que o faça perceber e admitir-se um ser político e que se valha de seus instrumentos de trabalho e de sua posição para a verdadeira consagração da justiça. Uma racionalidade que permita o juiz, também, colocar-se no lugar do diferente.

Roberto Luiz Corcioli Filho

 

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