ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL: UM ATALHO PARA O TRIUNFO DA JUSTIÇA PENAL CONSENSUAL?

Por Hermes Duarte Morais -  

Mateus foi preso em flagrante por ter praticado o crime de embriaguez ao volante (artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro). Ele confessou à autoridade policial a ingestão de bebida alcoólica momentos antes de assumir a condução de seu veículo. Como é primário e para evitar os dissabores do processo, afirmou desejar, desde já, submeter-se ao cumprimento das penas restritivas de direito de prestação pecuniária e prestação de serviço à comunidade. Foi, então, encaminhado ao promotor de Justiça. Comparecendo à Promotoria no dia seguinte, assistido por advogado, celebrou acordo para não ser processado e cumprir imediatamente as sanções penais.

Embora inexista lei que regulamente a feitura desse acordo, desde 7 de agosto de 2017 essa solução consensual é possível e já vem ocorrendo, com fundamento na Resolução 181/07 do Conselho Nacional do Ministério Público. 

O ordenamento jurídico brasileiro já está familiarizado com institutos de Justiça penal consensual como a transação penal, para delitos de pequeno potencial ofensivo, e colaboração premiada, para crimes graves que podem envolver organizações criminosas. No entanto, faltava um instituto consensual para crimes de médio potencial ofensivo. Essa lacuna foi suprida com o acordo de não persecução penal (ANPP); mas, pela primeira vez, o substrato normativo para a celebração do ajuste é um ato normativo infralegal.

O artigo 18 da resolução estabelece que, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, além de assumir o compromisso de: reparar o dano à vitima, pagar prestação pecuniária, cumprir prestação de serviço ou cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.

Para parcela da doutrina, a ANPP é formalmente constitucional por não dispor sobre Direito Penal e Processo Penal, matérias que demandam lei em sentido formal oriunda da União nos termos do artigo 22, I, da Constituição da República. Ao invés, tratar-se-ia de matéria de política criminal, o que tornaria legítima a normatização realizada pelo CNMP. 

Exsurgem desse raciocínio dois problemas. Primeiro, considerar que a decisão do investigado em não se submeter ao processo criminal e cumprir imediatamente sanção penal trate-se apenas de uma questão de política criminal é uma argumento frágil. Se por um lado a utilização do acordo pode vir a ser, se bem utilizado, instrumento de política criminal, seu conteúdo, isto é, o objeto sobre o qual as partes transacionam (pena imediata sem processo), é evidentemente processual penal. Outro equívoco é supor que a existência de eficácia normativa primária das resoluções do CNMP, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 12, permita que o órgão regulamente qualquer matéria uma vez que, inquestionavelmente, não se encontra entre as atribuições do CNMP estampadas no artigo 130-A, parágrafo 2º, da CF/88 normatizar sobre política criminal. 

Por outro lado, não se verifica ofensa ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. Ao contrário da Constituição italiana (artigo 112), a CF/88 não o previu expressamente, sequer o Código de Processo Penal o fez. Assim, previsão normativa que o mitigue, como já fizeram a Lei 9.099/95 e a Lei 12.850/13, é compatível com nosso ordenamento jurídico. 

Em todo caso, foram propostas duas ações diretas de inconstitucionalidade contra a Resolução 181/2017, uma de iniciativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a ADI 5.793, e outra de autoria da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a ADI 5.790, cujos julgamentos ainda não se realizaram.  

Há de se reconhecer, entretanto, ante o princípio da presunção da constitucionalidade, que a norma que regulamenta o ANPP é eficaz e aplicável até ulterior análise de sua compatibilidade com a Constituição pelo STF.

Mudando-se o enfoque do plano formal para o material, verifica-se que o regime jurídico erigido na resolução assegura, por meio de um procedimento detalhado, a observância de todas as garantias constitucionais ao investigado: inafastabilidade do controle judicial (artigo 18, parágrafo 4º), defesa técnica (parágrafo 2º) e segurança jurídica (parágrafo 11º).

Como esse fenômeno da expansão dos espaços de consenso na Justiça criminal é de ordem mundial, não uma exclusividade brasileira, é relevante observar que a Corte Europeia de Direitos Humanos, em 2014, no caso Togonidze v. Georgia, já teve oportunidade de manifestar que acordos criminais, similares ao ANPP, não ofendem ao contraditório e ao devido processo legal. E nos EUA, a Suprema Corte reconheceu, no caso Brady v. USA, em 1970, a constitucionalidade do plea bargaining quando o tribunal estipulou algumas condições para que o acordo seja válido. 

Importante também mencionar que a implementação de acordos criminais estão em consonância com as diretrizes estabelecidas nas Regras de Tóquio (item 5.1), normativa internacional impossível de ser ignorada. 

Há, sim, questões ainda não solucionadas, tais como a forma de se realizar o ANPP durante a audiência de custódia (artigo 18, parágrafo 7º) ou como estabelecer uma política criminal lógica e efetiva que preserve, por exemplo, o tratamento igualitário no aceite e recusa da celebração do acordo pelo membro ministerial e garanta também a repressão e prevenção de ilícitos penais em determinada comunidade.

Mesmo que o destino seja louvável, o atalho tomado pelo CNMP foi equivocado, em especial por existir propostas legislativas em tramitação no Congresso Nacional que contemplam acordos dessa natureza.

A despeito da consagração da Justiça penal consensual no Brasil decorrente da constatação de sua celeridade, efetividade e eficiência, cujo ápice se deu com a operação "lava jato", a aplicação do ANPP ainda é incipiente e incerta.

Por ora, parece que se repetirá o enredo da colaboração premiada. Será a prática dos atores envolvidos nos acordos e a jurisprudência que moldarão os contornos do ANPP. Experiência similar à vivenciada pela Alemanha, onde, após larga utilização de acordos criminais sem previsão normativa, em 2007, o Tribunal Constitucional Federal reconheceu a validade de sua utilização por não violarem princípios constitucionais e processuais. 

O caminho do devido processo legislativo era o preferível, contudo, substancialmente, o ANPP é constitucional.

 

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