Audiência de Custódia: inviabilidade

Marcelo Assiz Ricci -  

No último mês de janeiro, o Conselho Nacional de Justiça o anunciou o “Projeto Audiência de Custódia”. Para implantação do projeto piloto, o Tribunal de Justiça de São Paulo promulgou o Provimento Conjunto nº 03/2015, da Presidência e da Corregedoria Geral de Justiça. 

Sua principal inovação é estabelecer a apresentação da pessoa detida em flagrante delito ao Juiz competente em até 24 horas depois de sua prisão. 

O principal argumento para justificá-lo é atender ao disposto no artigo 5º, item 7, do Pacto de San José da Costa Rica, cujo texto diz que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)”. 

Existem, no entanto, objeções de caráter histórico e legislativo para a sua implementação. 

A origem do cargo de Delegado de Polícia remonta à chegada da corte portuguesa ao Brasil. Para o exercício das funções de polícia, foi criada a Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil, desempenhada por um Desembargador do Paço, com status de Ministro de Estado. Nas províncias, ele poderia nomear alguém para representá-lo – daí o nome. 

O ordenamento jurídico brasileiro desenvolveu um sistema de investigação criminal sem paralelo no Direito Comparado. O Inquérito Policial é presidido pelo Delegado de Polícia, cargo privativo de bacharel em Direito, com poderes de autoridade. Segundo Hélio Bastos Tornaghi, as autoridades “exercem em nome próprio o poder de Estado. Tomam decisões, impõem regras, dão ordens, restringem bens jurídicos e direitos individuais, tudo dentro dos limites traçados por lei”. 

Historicamente, temos um sistema de investigação preliminar presidido por uma autoridade cujo cargo tem origem em uma delegação do Poder Judiciário. Ainda que deva atender a requisições do Ministério Público ou do Poder Judiciário, o Delegado de Polícia não está a eles diretamente subordinado. 

Também existem objeções no aspecto processual. A prisão em flagrante é uma espécie de prisão cautelar, cuja finalidade é garantir a efetividade do processo principal. Pode-se afirmar, com tranquilidade, que a prisão cautelar tem natureza jurisdicional. 

Quando a pessoa detida lhe é apresentada, nos termos do artigo 304, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal, a Autoridade Policial não se limita à mera materialização da prisão que lhe é comunicada e conduzida pelo agente policial. 

Ele exerce juízo de valor. Avalia se, efetivamente, é caso de manutenção - hipótese de ratificação - ou não - hipótese de relaxamento - da prisão em flagrante. Trata-se de verdadeira concessão, ainda que de forma restrita, de parcela da função jurisdicional a outra Autoridade que não o Juiz de Direito. 

É perfeitamente possível apontar que a figura do Delegado de Polícia se enquadra na definição de “outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”, prevista no artigo 7º, item 5, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. 

Em reiterados julgamentos a respeito deste dispositivo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos interpreta como Autoridade habilitada a exercer função judicial o funcionário público investido de jurisdição. Entendemos que o Delegado de Polícia se enquadra nessa hipótese. 

Finalmente, há objeções no aspecto legal. Independente das teorias sobre a forma de ingresso dos tratados no ordenamento jurídico interno, o dispositivo em análise do Pacto de San José da Costa Rica não é autoaplicável. 

Não são necessárias grandes digressões para se perceber que os termos e conceitos dele trazidos, especialmente o procedimento a ser realizado para sua perfeita concretização, precisam de melhor esclarecimento, a ser feito por um ato normativo de outra espécie. 

A Constituição Federal é clara. A competência para legislar sobre direito processual é privativa da União. A reserva legislativa é de uma evidência cristalina que o próprio Provimento Conjunto faz referência ao Projeto de Lei 554/2001, que altera o § 1º do art. 306 do CPP. 

Inconstitucionalidade é gritante. Um ato infra legal regulamenta, disciplina e esclarece o ato normativo hierarquicamente superior, no que lhe é permitido, em sua esfera de atribuições e para melhor funcionamento da rotina de trabalho de seu ente emissor. 

Uma ordem natural deve ser seguida. O ato regulamentador só surge após promulgação da lei que a justifica. 

Não se regulamenta projeto de lei, que é uma lei em gestação, sujeita a discussão, alteração, arquivamento ou rejeição, ao longo de seu trâmite nas casas legislativas. 

Sua antecipação implica em invasão de competência legislativa. O Provimento é norma inovadora, não complementadora, em diversos pontos. 

A Convenção Interamericana de Direitos Humanos diz que a pessoa detida deve ser conduzida à presença de “um juiz ou outra autoridade”, “sem demora”. Não aponta o lapso temporal considerado como satisfatório ao cumprimento dessa exigência. Está a se falar de prazo para a prática de um ato. Trata-se, portanto, de matéria de natureza processual. 

O artigo 6º do Provimento Conjunto prevê uma verdadeira etapa do procedimento processual penal não prevista em lei, com a previsão da natureza das perguntas que poderão ser feitas ao detido, e quais poderão ser as atuações do Ministério Público e da Defensoria Pública no ato. 

Um ato normativo emanado pelo Poder Judiciário restringe-se a regulamentar a atuação de seus membros. Não vincula os agentes de outros órgãos aos quais não detém ascendência ou poder correcional. 

Finalmente, o Provimento fere o princípio da isonomia. 

Sob o pretexto de efetivar uma garantia ao preso em flagrante delito, prevê tratamentos diferenciados. Começou válido para apenas algumas regiões da Capital, permanece em vigor apenas nos dias da semana, e não atinge o restante do Estado. 

Ou seja, sequer obedece a melhor doutrina de Direitos Humanos que fundamentou sua promulgação, especialmente o princípio da aplicação do dispositivo mais benéfico ao indivíduo. 

Vale lembrar, ante a mesma ratio, que o STF declarou, no HC 90900, em controle difuso, por violação da competência legislativa da União, a inconstitucionalidade formal da Lei Estadual 11.819/05, que autorizava a utilização de aparelhos de videoconferência para interrogatórios e audiências com réus presos. 

Com razão, já se encontram julgados no Tribunal de Justiça de São Paulo que reconhecem a impossibilidade de implantação desse procedimento por ato normativo diverso de lei federal.

 

Comments are closed.