Audiência de Custódia: viabilidade

Alamiro Velludo Salvador Netto -  

A ciência jurídica que se dedica ao estudo do processo penal tradicionalmente outorga-lhe uma natureza complexa. A finalidade do processo abrangeria questões múltiplas e de diversos matizes, as vezes de intrincada e conflituosa convivência: a condenação do culpado, a proteção do inocente, a formalidade do procedimento isenta de arbitrariedades e a estabilidade jurídica das decisões (ROXIN, Claus. Derecho procesal penal. Trad. Gabriela Córdoba y Daniel Pastor. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000, p. 4). O alcance destes plurais objetivos apresenta, ao seu turno, um fator essencial de medição, um barema elementar de avaliação: a capacidade das normas processuais de operacionalizarem, em concreto, os valores e princípios constitucionais. Dito de outro modo, a Constituição deve ser a fonte primária da processualística penal, devendo-se fazer valer, acima de quaisquer outros primados, princípios como a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência. Não é por outra razão, portanto, a relação umbilical entre o sistema penal em sentido amplo e a ordem constitucional. 

Feitas estas primeiras e sucintas ponderações, uma assertiva já pode aqui ser lançada: as normas processuais penais não são, em si mesmas, ruins ou boas. O caráter instrumental do processo, sua perspectiva teleológica, faz com que suas relações jurídicas e procedimentais apenas possam ser avaliadas à luz da consagração, ou não, de certos valores. O processo penal, nesse sentido, funciona como o mais nítido espelho da política. A leitura histórica é implacável ao diagnosticar que, com o advento de regimes de força, as garantias do cidadão no processo penal são sempre as que inicialmente desvanecem. Isso porque em ditaduras opta-se sempre pela condenação daquele que se quer culpado por algum motivo, fazendo do processo um distorcido instrumento em favor do Estado e não, como deveria ser, de defesa do cidadão. O processo como fator de garantia do cidadão, típico de sistemas que respeitam as liberdades civis, prefere, ao seu turno, fazer valer a proteção do inocente. A liberdade apresenta-se como regra, a prisão como exceção. 

A problemática envolvendo a denominada audiência de custódia apenas pode ser analisada sob esta chave. Isto é, ao se tratar de um tema processual, o que aqui interessa, para além de palavrórios e argumentos de cunho burocrático-operacional, são os questionamentos a respeito de quais valores são consagrados por este instituto. Posteriormente, pode-se questionar se são estes valores consagrados compatíveis com a Constituição brasileira e condizentes com um projeto de Nação que se queira ver realizado. O ponto central está sediado na ponderação acerca da adequação da audiência de custódia como um instituto jurídico que aprimora o Brasil em seu sentido democrático e republicano. Este é, em suma, o cerne do debate. 

A audiência de custódia, é bom que se diga, não é uma invenção brasileira. Aliás, está longe de ser uma autêntica jabuticaba daquelas tão apreciadas por Policarpo Quaresma, inesquecível personagem de Lima Barreto. Ao mesmo tempo, a sua não adoção no Brasil em termos estritamente legislativos derivam de algumas razões. Uma delas certamente reside no descompasso temporal, histórico e, principalmente, ideológico da ordem constitucional inaugurada em 1988 e o Código de Processo Penal de 1941. Um tanto quanto óbvio que o pensamento da Constituição Cidadã pouco apresenta em comum com a dimensão jurídica elaborada sob o Estado Novo. Outro motivo parece ser uma espécie de mistura de comodismo e conservadorismo. Não obstante a existência de alguns projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional com a finalidade de inserção da audiência de custódia no Código, constantemente surgem argumentos que sobre ela elencam empecilhos materiais, como falta de servidores aptos ao transporte de presos, longas distâncias a serem percorridas, desnecessidade da medida etc. Somam-se a isso posturas políticas que, de fato, não veem no processo penal um espaço de valorização das liberdades, enxergando-o como explícita ferramenta de persecução.  

Ocorre que o Brasil, por meio do Decreto nº 678/1992, promulgou a Convenção Americana de Direitos Humanos, aprovada na Organização dos Estados Americanos em 1968 e vigorando internacionalmente desde 1978. Em seu artigo 7º, item 5, assim dispõe o instrumento internacional: toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada para exercer funções judiciais. Trata-se, portanto, da necessidade de apresentação do preso pessoalmente e perante o juiz, oportunidade em que competirá ao magistrado decidir acerca da manutenção da custódia cautelar, tendo em vista os requisitos para esta descritos na legislação processual. Nota-se que este juiz não decidirá o mérito da causa, mas sim a necessidade da prisão processual, a qual apenas se justificará se existente algum perigo ao bom andamento do processo ou de frustração do provimento final. Infelizmente, contudo, no Brasil tal exigência sempre foi ignorada. Nos dizeres de AMARAL, embora já estivesse sedimentado na doutrina e na jurisprudência do STF que a CADH é direito interno, de grau supralegal e infraconstitucional, o art. 7º, item 5 jamais foi aplicado em solo brasileiro em caráter vinculante. Nunca foram anuladas as prisões preventivas originárias de prisão em flagrante cujo preso não foi apresentado sem demora ao juiz para a audiência de custódia (AMARAL, Cláudio do Prado. Da audiência de custódia. In: Boletim IBCCrim. n.º 269, v. 23, 2015, p. 4-6). 

Final e recentemente, e após muitos anos e esforços de entidades e instituições como o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, dentre outros, iniciou-se no Brasil, a despeito da falta de alteração na legislação processual, a realização efetiva destas audiências. Até mesmo a Comissão Nacional da Verdade apontou como recomendação em seu relatório final a imprescindibilidade da audiência de custódia. No Estado de São Paulo, pioneiro na matéria, foi publicado em 27 de janeiro de 2015 o Provimento nº 03/2015, conjunto da Presidência e Corregedoria do Tribunal de Justiça. No Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária da Capital são realizadas, atualmente, mais de meia centena de audiências diárias, com apresentação do preso em até 24 horas de sua prisão e com a participação do Ministério Público, da OAB, da Defensoria e outros órgãos de assistência social. 

A experiência paulista mostrou a todo o Brasil que é possível efetivar a norma internacional, e por isso hoje já foi reproduzida em outros Estados da Federação. O número de detidos que obtiveram a concessão da liberdade provisória ou viram seu flagrante relaxado igualmente aumentou, fator que mostra como o contato pessoal do juízo com o preso importa em julgamento melhor e mais humano na exata medida em que percebe as reais condições materiais daquele submetido ao cárcere. Isso no Brasil se faz ainda mais relevante ao se verificar a situação de miserabilidade econômica que fomenta um sem número de delitos patrimoniais e relativos ao comércio ilegal de drogas. A audiência de custódia, existente em praticamente todos os países europeus e latino-americanos, sem dúvida, implica no aprimoramento do regime de liberdades, bem como na fiscalização das práticas dos agentes públicos no momento das detenções.  Cuida-se de um instrumento processual que consagra valores essenciais do Estado Democrático de Direito. Sua aplicação no Brasil já tardava demasiadamente. Necessário agora sua conversão em lei, introduzindo-a legislativamente no Código de Processo Penal. Qualquer outra coisa é arcaico retrocesso. 

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