DE MASSACRE A SUICÍDIO, DESEQUILÍBRIO ENTRE ACUSAÇÃO E DEFESA FICOU NÍTIDO

Miguel Pereira Neto -  

Encerra-se o ano judiciário inaugurado em fevereiro pelo Supremo Tribunal Federal, em sessão solene, na qual o ministro Teori Zavascki se fazia presente apenas pela toga envolta em sua cadeira. A retrospectiva de 2017 deve ser iniciada com menção honrosa e todas as homenagens àquele que tanto enobreceu a carreira, dedicando toda uma vida à magistratura e conduzido com sabedoria e senso de justiça os milhares de casos submetidos à sua jurisdição, ainda que tenham recebido maior atenção da mídia os processos referentes à operação "lava jato" de competência do STF, lá sob sua relatoria.

O acidente aéreo que ceifou a vida de Sua Excelência, de grande amigo e outras três pessoas foi noticiado em janeiro, enquanto a população ainda se refazia do choque causado pela primeira notícia impactante do ano. A barbárie das rebeliões ocorridas em penitenciárias da região Norte, o “massacre de Manaus”, capaz de sintetizar o caos em que se encontra o sistema penitenciário, as mazelas do sistema prisional, as consequências da omissão estatal e a violência extrema perpetrada pelo ser humano apenas quando no chamado “estado natural”.

Os detentos dispunham, dentro do presídio, de smartphones com conexão à internet por meio dos quais registravam as cenas de terror e as difundiam via redes sociais, materializando-se o atual conceito da mídia moderna; qualquer indivíduo munido de equipamento modesto é hoje um potencial produtor de conteúdo. E todos os veículos jornalísticos dispuseram do material para noticiar, com detalhes macabros, aquela tragédia anunciada que pode se repetir a qualquer momento. 

Realmente não é a prisão o melhor remédio para a pacificação social, como já decidido pelo Supremo ao primar pela aplicação de penas alternativas e alheias à indústria de marginalidade desumana formada pelo sistema prisional. Deve-se evitar prisões cautelares e realizar as audiências de custódia.

No findar do recesso forense, a presidência do STF fazia mutirão para homologar o acordo de colaboração premiada de quase oitenta executivos da maior empreiteira do país, a fim de dar resposta à sociedade e evitar morosidade na redistribuição e assunção dos processos pelo novo relator. Em fevereiro, o ministro Edson Fachin é escolhido o novo relator dos processos relacionados à operação "lava jato", e o ministro Alexandre de Moraes, indicado para ocupar a cadeira deixada pelo ministro Teori Zavascki, é empossado.

Já em março, foi deflagrada a primeira grande operação da Polícia Federal no ano. Batizada de carne fraca; mirou as maiores empresas produtoras de carne como parte de um esquema para fraudar a fiscalização sanitária mediante pagamento de propina — permitindo, assim, tanto a exportação como a venda no mercado interno de carne adulterada imprópria para consumo.

Em que pese a gravidade da conduta investigada, a operação foi criticada pela forma midiática como foi deflagrada, pondo de joelhos um dos últimos mercados fortes que vinham resistindo à economia combalida pela recessão. Além dos embargos levantados pelos países compradores da proteína animal brasileira, gerando enormes prejuízos, o mercado consumidor interno foi acometido pelo pânico diante das afirmações de que a carne colocada nas prateleiras era moída com papelão ou tratada com ácidos cancerígenos.

Passado o frenesi inicial (mais uma espetacularização de operação dispendiosa em excesso aos cofres públicos), reconheceu-se as irregularidades identificadas pontuais e não sistêmicas — o que permitiu o levantamento gradual dos embargos e a retomada das exportações.

Ou seja, o Ministério Público e a Polícia Federal, ao representarem por buscas e apreensões, quebras de sigilo, bloqueio da totalidade de bens e ativos ou prisões cautelares, assim como os magistrados, ao deferirem, deveriam adotar medida a proteger o desenvolvimento da atividade econômica e não se darem por satisfeitos com a publicidade exacerbada das operações criminais e deixarem ao léu a continuidade das atividades das pessoas jurídicas e das pessoas físicas de seus executivos e familiares. Afinal de contas, tratavam-se da maior empresa de proteína animal e uma das maiores empreiteiras do mundo.

Como os noticiários de pauta amena não se têm sustentado nos últimos anos, a turbulência seguinte veio em 11 de abril, quando o ministro Edson Fachin levantou o sigilo das delações premiadas dos executivos da Odebrecht (aquelas homologadas às pressas), revelando fatos antigos e recentes atribuídos a centenas de políticos das mais variadas siglas. O estardalhaço que se esperava com as revelações não se concretizou uma vez que boa parte das informações já havia sido vazada à imprensa.

Assim, aquela tratada pela mídia como “a delação do fim do mundo” conseguiu manter os holofotes por pouco mais de um mês, quando, em maio, a vinheta característica do plantão jornalístico irrompeu para noticiar a existência de acordo de colaboração premiada celebrado com proprietários e executivos do grupo JBS, por meio do qual foram revelados novos esquemas de financiamento de campanhas eleitorais e de corrupção, envolvendo diversas autoridades das mais variadas esferas de poder e cifras bilionárias.

A notícia de que o próprio presidente da República teria sido gravado, como se afirmou à época, avalizando a compra do silêncio de réu preso para que não colaborasse com as investigações, fez na manhã seguinte os mercados afundarem diante da crise política. Além da disparada do dólar e dos juros futuros, a bolsa de valores chegou a acionar o mecanismo circuit breaker e o Tesouro Nacional suspendeu a negociação de títulos públicos por vários dias. 

Ainda assim, apesar da fartura de fatos denunciados, documentos e gravações, o que mais chocou a opinião pública foi o generoso benefício recebido em troca. Em três anos de delações no âmbito das renomadas investigações, raros delatores foram agraciados com o compromisso do Ministério Público de não os denunciar por quaisquer dos crimes confessados.

O episódio, entre diversos outros desdobramentos, rendeu duas denúncias de prática de crime pelo presidente da República. Encontram-se atualmente suspensas, visto que a Câmara dos Deputados não autorizou a instauração de processo. E a delação premiada dos proprietários e executivos do maior grupo empresarial de proteína animal do mundo encontra-se com o risco de perder sua eficácia, após descobertas conversas inicialmente apagadas do próprio gravador entregue às autoridades pelos delatores, contendo malversação aos Três Poderes e seus membros, mas sem o necessário nexo de causa com os fatos delatados ou graves omissões, nem tampouco o preenchimento de requisitos legais ao decreto de prisão preventiva, decretada e mantida por mais de cem dias, até hoje. Agora, no final do ano, foi realizado pedido de rescisão da delação.

Seguindo o calendário jurídico-político, em junho, o Tribunal Superior Eleitoral finalmente julgou o mérito da Ação de Investigação Judicial Eleitoral com objeto o financiamento da campanha presidencial; por maioria de quatro a três, a corte negou o pedido de cassação da chapa eleita, o que permitiu a manutenção do atual presidente no cargo, mas, por outro lado, desvendou o sistema de financiamento das campanhas eleitorais com recursos oriundos de superfaturamento de contratos públicos.

Em julho, foi publicada a sentença que condenou, pela primeira vez desde a Constituição e com base em presunções e depoimentos de delatores, um ex-presidente pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A questão promete desdobramentos para 2018 em esferas distintas. Afinal, com o julgamento em segundo grau marcado a jato para janeiro, Lula declara intenção de candidatar-se novamente e com vantagem nas pesquisas de intenção de voto. Pelo procedimento e medidas cabíveis, a candidatura se viabilizará, com a possibilidade, ainda, em última hipótese, de substituição de candidato vinte dias antes do pleito.

A depender do resultado do julgamento, certamente será atraído o debate sobre a incidência da lei da ficha-limpa e a possibilidade de execução antecipada da pena.

Muito importante sejam julgadas as ADCs 43 e 44 pelo STF, mantendo-se intacto o artigo 283 do CPP. Espera-se que não haja flexibilização do relevante preceito fundamental da presunção de inocência, tamanha sua clareza ao definir que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Nos meses de julho e agosto foram deflagradas novas fases de operações derivadas da "lava jato", com novas prisões preventivas — inclusive de ex-ministros do governo atual e do anterior.

Em setembro, foi realizada pela Polícia Federal a maior apreensão de dinheiro em espécie já registrada. Contabilizados R$ 51 milhões, o dinheiro foi atribuído ao ex-ministro Geddel Vieira Lima, que teve prisão preventiva restabelecida em razão do episódio.

Outubro começou com um acontecimento trágico. Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, cometeu suicídio saltando no vão central de um shopping em Florianópolis. O reitor fora preso temporariamente em 14 de setembro quando deflagrada a operação ouvidos moucos, que investiga o desvio de verbas destinadas ao programa de ensino à distância da universidade, sob alegação de que estaria obstruindo as apurações, sem jamais ter sido intimado para depor. Soube que era investigado apenas quando teve sua residência invadida no raiar do dia. Com a deflagração contumaz midiática, houve em seguida a já habitual coletiva de imprensa. Nela se apontou o desvio de R$ 80 milhões. A cifra, hoje se sabe, é o valor total repassado ao programa ao longo dos anos, entre 2005 e 2015, quando Cancellier ainda não era reitor.

A magistrada substituta revogou de ofício a prisão no dia seguinte. Não enxergou qualquer motivo para que aqueles professores estivessem em uma penitenciária. Mas houve tempo para que o reitor vivenciasse a experiência em todos os seus pormenores. Teve a residência vasculhada. Foi algemado, transportado em um camburão, exposto na mídia, revistado nu. Dormiu em uma penitenciária. Infelizmente, não conseguiu se recompor do trauma. Não há motivos para negar ter a injusta e abusiva humilhação funcionado como gatilho para a tragédia.

Por respeito à memória do nobre reitor, não cabe fazer conjecturas acerca de seus motivos ou mesmo fazer uso do episódio para subsidiar ataques a quem quer que seja. No entanto, o mesmo respeito demanda seja esclarecido se havia alguma razoabilidade naquela prisão, e, mais importante, se suscite o necessário debate entre as instituições seguido da iniciativa legislativa que impeça isso venha a se repetir. O projeto de lei referente ao abuso de autoridade recebe hoje o nome de Lei Cancellier. Que seja aprovado em 2018!

No mesmo mês, em julgamento histórico, o Supremo, decidiu que o afastamento de parlamentares ou qualquer outra medida cautelar que interfira no exercício do mandato precisa de aval do Congresso Nacional. Assim, o plenário do Senado frustrou a aplicação das medidas de afastamento e recolhimento noturno que haviam sido impostas pela 1ª Turma do STF ao senador Aécio Neves.

O precedente passou a ser utilizado pelas Assembleias Legislativas estaduais para revogar prisões e outras medidas decretadas em desfavor de parlamentares. Atualmente, o Supremo analisa a constitucionalidade dessa extensão de efeitos em julgamento que já conta com nove votos, sendo um empate por quatro a quatro e um voto médio. A definição também deve ficar para 2018.

O ano de 2017 foi marcado, igualmente, pela persistência na utilização ilegal e em número elevado de conduções coercitivas. Basta a simples leitura dos dispositivos de lei relativos a esse instituto para se concluir por sua aplicação apenas nas hipóteses em que a testemunha, regularmente intimada, sem motivo justificado, não comparece ao ato, ou o não atendimento pelo acusado quando devidamente intimado para interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que sem ele não possa ser realizado.

Exemplo absolutamente repugnante dessa ilegalidade é a recente medida cumprida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A repetição de erro anterior, sem base em fatos concretos atuais a justificar o extremo, a excessiva exceção. Há notícia de o próprio Ministério Público ter sido contrário, mas a operação “Esperança Equilibrista” estava pronta e foi deferida no final de um dia para cumprimento na manhã seguinte, com diversos policiais fortemente armados e sem prazo ou ciência da parte para a prática de atos regulares do devido processo legal.

O STF haverá de conceder medida cautelar a evitar de imediato essa prática e julgar as ADI´s ajuizadas por partido político e pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Qual o efeito dessas invasões a universidades públicas, em cadeia, com prisões desnecessárias e barulho na imprensa? Que não se venha com ideia de privatizações do ensino, enquanto o que se deveria fazer é investir de forma abundante em sua qualidade, garantir o acesso e evitar novas gerações sem alternativa de demonstrar seus talentos e se apresentarem como transformadores sociais.

Também em novembro, o Supremo passou a analisar outra demanda antiga de extrema relevância, que, há muito, demandava iniciativa ou, ao menos, debate legislativo: a restrição ao foro privilegiado.

Suspenso o julgamento por pedido de vista, já se encontra formada a maioria para que a competência originária da Corte Constitucional para julgar criminalmente políticos e autoridades se restrinja a atos cometidos no exercício do cargo e relacionados à função desempenhada. Novamente, um vácuo de ação legislativa preenchido por ação judicial.

De volta à pauta legislativa, ainda em novembro foi aprovado em comissão da Câmara dos Deputados um projeto de emenda que altera a Constituição Federal proibindo o aborto por qualquer motivo, inclusive aqueles já previstos em lei. Diz-se que a iniciativa seria a reação legislativa a uma decisão da 1ª Turma do STF, de novembro de 2016, no sentido de que não seria crime o aborto realizado no primeiro trimestre de gestação.

No entanto, para o fim de analisar e rememorar 2017, e definir o que queremos para 2018, os episódios devem ser analisados também sob o enfoque do choque e desarmonia entre os poderes atuantes: o ponto médio entre a omissão daquele que deveria legislar e o limite de aceitação da incursão daquele que deveria apenas julgar.

Pende o julgamento da ADI, iniciado neste mês de dezembro, que discute a possibilidade de que acordos de delação premiada possam ser celebrados pela autoridade policial. Dos votos já tomados, a maioria indica que, sim, a polícia pode celebrar tais acordos, ainda com entendimentos distintos quanto às peculiaridades. Resta definir por meio de um ponto médio os limites e formalidades para tanto.

Em dezembro, a Lei 13.506/17 sofreu duas alterações de grande relevância na tipificação do crime de insider trading. A primeira, diz respeito à necessidade de sigilo. Tal característica passou a configurar causa de aumento da pena, não mais integrando o caput do tipo penal. A segunda, ampliação no sujeito do delito, de modo a caracterizar como autor quem repassar informação sigilosa atinente a fato relevante, além daquele que efetivamente utilizou a informação. 

Este ano revelou, ainda mais, as decisões e matérias jornalísticas voltadas a marginalizar e criminalizar o exercício da advocacia, contra o direito de defesa, contra as prerrogativas do advogado, num estado punitivo que busca confundir o crime com o defensor. Não serão toleradas e suportadas tais assertivas, pois desequilibram o processo e desprezam a indispensável atuação do advogado na administração da Justiça. No derradeiro do ano, o projeto de lei aprovado pela Câmara do Deputados alterou o Estatuto da Advocacia para tipificar (o que já era tipificado) as infrações contra as prerrogativas.

De todos os fatos aqui lembrados, o ponto comum — seja como causa ou como efeito — é a falta de harmonia. A harmonia em seus mais diversos sentidos. Paz, proporção e concórdia, que vêm minguando nas relações sociais e jurídicas. Entre administração e administrado. Entre defesa e acusação. Fatos apurados e pedidos de prisão preventiva. Decretos de prisão preventiva e efetivo cumprimento. Entre os Poderes da República. Entre o propósito comum do combate à corrupção e as garantias individuais.

E o que se espera é a volta da harmonia, que só existe quando respeitados os limites que a Constituição impõe. Espera-se que cada poder da República, em harmonia, possa proceder à pacificação social não pela execução antecipada das penas ou com prisões preventivas espetaculares, mas, sim, por meio da otimização desse processo, expungindo-se o uso excessivo das conduções coercitivas; seja o conceito de “manter a ordem pública” objeto de maior reflexão quando invocado – e sempre o é – para fundamentar uma prisão preventiva e, nesse juízo, não sejam considerados fatos pretéritos ou condutas já consumadas.

Enfim, em 2018 se volte a respeitar a lei, os direitos e as garantias individuais, afastando de vez o conceito que maliciosamente se tenta construir no sentido de que o garantismo e as prerrogativas do advogado no exercício da defesa seriam corrente favorável à impunidade.

 

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