DELEGADO PODE E DEVE EMITIR JUÍZO DE VALOR NO INQUÉRITO POLICIAL

Por Henrique Hoffmann e Gabriel Habib -  

Vez ou outra circulam pela internet manifestações de alguns membros do Ministério Público afirmando que a autoridade policial não deve fazer juízo de valor no relatório de inquérito policial e no indiciamento.

Alegam que não deve a peça profissional do delegado de polícia conter citações de doutrina e jurisprudência, ante a suposta ausência de autorização legal para tanto. Sustentam que o relatório do inquérito policial corresponde a um mero índice remissivo das diligências realizadas. Aduzem que as decisões da autoridade de Polícia Judiciária devem ser tão somente descritivas, desprovidas de qualquer raciocínio jurídico.

Ou seja, pugnam por uma persecução criminal sem fundamentação, ao menos nessa etapa preliminar. Essa tese absurda é refutável por qualquer iniciante em Direito, mas merece a explicação por amor ao debate.

De início, vale lembrar que o delegado de polícia é a autoridade vocacionada a conduzir a fase investigativa (artigo 144 da CF) e responsável por presidir o inquérito policial (artigo 2º, §1º da Lei 12.830/13). A Polícia Judiciária, ao exercer função essencial à justiça, não tem compromisso com acusação ou defesa, mas apenas com a busca de verdade. Seu primeiro benefício não é perseguir o criminoso, mas proteger o inculpado. 

A persecução extrajudicial sob responsabilidade da autoridade de Polícia Judiciária deve ser enxergada principalmente como barreira contra acusações temerárias, além de um mecanismo salvaguarda da sociedade, assegurando a paz e a tranquilidade sociais. 

Interessante notar que o inquérito policial atinge os direitos fundamentais mais importantes do cidadão, quais sejam, liberdade, patrimônio e intimidade. Quando o delegado decide, por autoridade própria, prender alguém em flagrante, apreender seus bens ou acessar certos dados sigilosos, atinge o que uma pessoa possui de mais relevante. Retirando-se as circunstâncias, atinge-se o eu. 

Nesse sentido, a motivação é justamente o que se espera de uma autoridade que tem o poder-dever de tomar decisões que envolvem direitos fundamentais alheios. Num Estado de Direito, não se admite que o Estado possa impactar com essa profundidade na vida do cidadão sem a devida fundamentação.

Justamente por isso a Lei 12.830/13 demanda no artigo 2º, §6º que o indiciamento ocorra por “ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica”, a Lei 11.343/06 afirma no artigo 52, I que a autoridade de polícia Judiciária deve relatar o inquérito “justificando as razões que a levaram à classificação do delito”, e o CPP ordena um relatório “minucioso”.

E não se diga que minucioso pode ser despojado de fundamentação. Por minucioso deve se entendido fundamentado, ao menos para quem faz uma interpretação constitucional e sistemática do dispositivo da Lei da década de 1940. Afinal, o inquérito policial, como qualquer outro processo administrativo, tem como um dos seus princípios basilares a motivação (artigos 2º e 50 da Lei 9.784/99 e artigo 37 da CF). O Supremo Tribunal Federal deixou claro que: o indiciamento, que não se reduz à condição de ato estatal meramente discricionário, supõe, para legitimar-se em face do ordenamento positivo, a formulação, pela autoridade policial (e por esta apenas), de um juízo de valor fundado na existência de elementos indiciários idôneos que deem suporte à suspeita de autoria ou de participação do agente na prática delituosa. 

A doutrina ensina:

A exigência de motivação, hoje considerada imprescindível em qualquer tipo de ato, foi provavelmente urna das maiores conquistas em termos de garantia de legalidade dos atos administrativos. 

O princípio da motivação é reclamado, quer como afirmação do direito político dos cidadãos ao esclarecimento do "porquê" das ações de quem gere negócios que lhes dizem respeito por serem titulares últimos do poder, quer como direito individual a não se sujeitarem a decisões arbitrárias, pois só têm que se conformar às que forem ajustadas às leis. 

Portanto, não é só um poder, mas um dever da autoridade de Polícia Judiciária realizar um juízo de valor, tanto policial (lógico) como jurídico, sobre os elementos de convicção angariados no inquérito policial. Resguardada, nessa análise técnico-jurídica, sua independência funcional, o que significa que a deliberação emana do seu livre convencimento motivado. Não faria sentido algum conferir ao delegado de polícia tamanho poder decisório se tivesse receio de decidir conforme sua consciência, embasado no ordenamento jurídico. 

O livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia deriva do fato de o inquérito policial ser um procedimento discricionário (CPP, artigo 14). A isenção e imparcialidade, por sua vez, são consectários lógicos dos princípios da impessoalidade e moralidade, previstos expressamente no artigo 37, caput da Constituição Federal. 

Registre-se que o indiciamento traduz a decisão conclusiva do delegado, juízo de diagnose que deve levar em conta tudo o que foi produzido no iter investigativo, transportando o fato para o mundo do Direito. Se o indiciamento é costumeiramente parte integrante do relatório, significa que este não traduz a indicação pura e simples do suposto criminoso, despida de raciocínio jurídico. 

Não se trata de mera atividade mecânica e automática. Ao detectar a presença de materialidade e autoria, o delegado de polícia tem a obrigação de realizar análises como tipificação formal e material da infração penal, concurso de crimes, qualificadoras e causas e aumento de pena, nexo de causalidade, tentativa, desistência voluntária, arrependimento eficaz e arrependimento posterior, crime impossível, justificantes e dirimentes, conflito aparente de leis penais, incidência ou não de imunidade, erro de tipo, dentre outras.

A autoridade policial, portanto, tem a missão de realizar juízo de valor, ainda que de cognição sumária, tendo em conta que será revisada a posteriori pela instância judicial. Trata-se de garantia do cidadão, de ter um operador do Direito conduzindo a investigação, e não um mero arquivista de provas. Note-se que o juízo de valor feito pela Autoridade Policial, dentro dos parâmetros do Estado Democrático de Direito, funciona como verdadeiro fator de contenção de qualquer abuso por parte do Estado, garantindo ao cidadão a devida segurança jurídica, há muito erigida ao patamar de princípio e, portanto, norma cogente que deve ser observada pelo Delegado de Polícia, como primeiro garantidor dos direitos fundamentais do cidadão.

Ao Delegado de Polícia foi conferida a missão constitucional de apuração da infração penal e da sua respectiva autoria, nos moldes dispostos no art. 144, §4º, da Constituição da República, nos seguintes termos: “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” O que se deve entender por “apuração de infrações penais”? A resposta não ultrapassa uma interpretação literal, para se chegar a um resultado hermenêutico gramatical. Apurar, de acordo com o dicionário da língua portuguesa, significa examinar com cuidado, averiguar, confirmar. Como a Autoridade Policial vai averiguar, confirmar a prática da infração penal e a sua autoria? Por meio de um amplo juízo de valor sobre o fato que lhe foi apresentado, com a efetiva análise técnico-jurídica, fundamentada e cuidadosa, atividade que demanda obrigatoriamente a realização de juízo de valor, sobretudo por envolver, sempre, na esfera criminal, direitos e garantias fundamentais do investigado.

Afirmar que o Delegado de Polícia não deve fazer juízo de valor seria o mesmo que retomar aquele entendimento já ultrapassado segundo o qual o autor do fato é mero objeto de investigação, e não sujeito de direitos, ideia hoje incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Não fosse assim, qualquer um poderia ser indiciado pelo delegado com base em mera denúncia anônima, formulada por inimigo, desprezando assim a jurisprudência dos Tribunais Superiores e da doutrina dominante, no sentido de que a notícia apócrifa é imprestável para embasar o indiciamento (e também a decretação de medida cautelar ou a própria instauração do inquérito).

As deliberações do delegado não são simples carimbos ou despachos descritivos. Fosse diferente, seria melhor passar a tarefa para uma máquina que automatizasse a persecução criminal.

O Ministério Público, como fiscal da correta aplicação da lei penal, deveria ser o primeiro a reconhecer a necessidade de o Delegado de Polícia cumprir fielmente a sua missão constitucional de apurar a infração penal e somente indiciar alguém após um estrito juízo de valor sobre aquilo que lhe foi apresentado diante de um caso concreto, bem como o que foi apurado dentro da investigação, sempre homenageando o princípio da segurança jurídica. 

Vale grifar que o Ministério Público pode perfeitamente discordar da posição da Polícia Judiciária, porquanto o entendimento do delegado não vincula o membro do MP (assim como a opinião do MP não obriga o juiz). Se não concordar com o indiciamento ou sua ausência, basta pedir o arquivamento ou ofertar a denúncia. Simples assim. O que não se admite, como já afirmado pelos Tribunais Superiores, é que o Parquet requisite à Polícia o indiciamento ou desindiciamento de quem quer que seja. Note-se que o indiciamento e o desindiciamento são funções exclusivas da Autoridade Policial, conforme já dissemos alhures.  

Importante sublinhar também que o controle externo do Ministério Público, dever de fiscalização de legalidade da atividade-fim da Polícia Judiciária, não importa em qualquer hierarquia funcional entre as importantes carreiras. Nessa linha de raciocínio, não há diferenças entre o status das convicções jurídicas dos operadores do direito, que possuem igual formação jurídica, sendo elas manifestadas no mesmo patamar, e apenas em momentos distintos. Ora, assim como o Ministério Público é o titular da ação penal, o delegado de polícia é o titular do inquérito policial. 

Na dicção da Suprema Corte:

O indiciamento, a denúncia e a sentença representam, respectivamente, atos de competência privativa do Delegado de Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário, sendo vedada a interferência recíproca nas atribuições alheias, sob pena de subversão do modelo acusatório, baseado na separação entre as funções de investigar, acusar e julgar. 

A doutrina não diverge:

Deve-se recordar que o delegado de polícia possui, obrigatoriamente, formação jurídica e assume as funções que lhe são inerentes mediante a aprovação em concurso público, tal qual juízes, promotores e demais membros das chamadas carreiras jurídicas. Inexiste, outrossim, qualquer subordinação hierárquica entre o delegado de polícia, o promotor de justiça e o juiz de direito. Essas impressões são reforçadas pela lei 12.830/2013, que, em seu art. 2º, identifica as funções de polícia judiciária como de natureza jurídica e determina que ao delegado de polícia seja dispensado “o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados” (artigo 3º). 

Faz bem a uma persecução penal democrática que a autoridade policial sempre motive sua convicção com base na prova colhida, entendida como sub-rogação da percepção. Quanto mais profundo o raciocínio feito pelas autoridades estatais, melhor, pois melhora o nível das decisões e reduz as incertezas no movediço campo da persecução penal. A segurança jurídica de todo cidadão começa dentro do inquérito policial, sendo o Delegado de Polícia o primeiro a observá-la e a garantir a sua efetividade. 

A quem interessa uma investigação criminal açodada e com decisões vazias (sem fundamentação)? Já passou da hora de deixar de lado a vaidade e a sede de poder e passar a pensar no respeito ao ordenamento jurídico e aos direitos do cidadão.

 

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