“Ela merece”: a eterna insurreição da defesa da honra

Valéria Diez Scarance Fernandes -

Será que em algum momento, algum dia, o julgamento pela honra desapareceu no Brasil? Lamentavelmente, não. Com a evolução da sociedade e dos meios de comunicação, na denominada “sociedade de risco”, a defesa da honra também sofreu mutação e mudou sua roupagem, mas o DNA continua o mesmo: objetificação da mulher e sentimento de posse sobre seu corpo.

Masculinidade, honra e violência são conceitos sempre em construção, voláteis ao momento histórico, à cultura e origem das pessoas envolvidas e da sociedade. Apesar dessas variáveis, existe um núcleo comum: a cultura da honra e da masculinidade hegemônica, com seu centro no “controle da vida sexual da mulher” como referiu Maria Luiza Heilborn, doutora em antropologia social, no I Seminário Internacional Cultura da Violência Contra as Mulheres (São Paulo, 20 e 21 de maio de 2015).

Na cultura brasileira, a imagem da mulher segue associada aos serviços domésticos e propagandas de cervejas, expostas seminuas e praticamente mudas. Perpetua-se a mensagem de “mulher objeto”, destinada a satisfazer o homem, ou de “mulher mãe” destinada a casar e ser boa esposa. Desviando-se desse último papel, a mulher sofre pressão social e recebe tratamento legal mais rigoroso. No Chile, Lidia Casas e Olga Espinoza identificaram que as mulheres acusadas de crimes incompatíveis com o modelo “ideal” de boas mães e esposas fiéis eram julgadas com mais rigor do que os homens que praticavam o mesmo crime (Casas, Lidia; Espinoza, Olga. La perspectiva de género en la defensa de mujeres bajo el nuevo sistema procesal penal chileno. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 61, p. 262, jun.-ago. 2006).

Fidelidade também é um conceito construído e interpretado segundo as culturas e papéis de gênero. Para o homem está naturalizado o comportamento infiel, uma necessidade física incessante de sexo e conquista, tal como os “machos” das espécies animais. Sobre esse biologismo que determinaria a conduta dos homens, Matthew Gutmann refere de forma eloquente: “Os homens são animais, mas nossa biologia não é nosso destino” (I Seminário Internacional Cultura da Violência contra as Mulheres, São Paulo, 20 e 21 de maio de 2015).

Para a mulher, a infidelidade é julgada com mãos de ferro, pela sociedade, amigas, meio social, parceiro e família. Não só a infidelidade, mas qualquer conduta que se afaste do perfil “ideal” é tratada com repulsa.

Nos processos, é comum transformar a pessoa da vítima em “objeto” de prova. Questiona-se sua vida pessoal, relacionamentos anteriores, estabilidade emocional, vestes e problemas psíquicos. Raramente são indeferidas perguntas de cunho pessoal, ainda que não tenham relação direta com o fato. Nesse contexto, há um perene desnível entre os direitos do réu e os direitos da vítima. Ao réu, garante-se o silêncio, sem qualquer prejuízo. À vítima, o dever de falar, com a possibilidade de condução coercitiva.

A vingança também se modernizou. Surgiu a denominada “vingança pornô”, divulgação de fotos reais ou montagens como forma de destruir a imagem da ex-parceira. O efeito é devastador, uma morte civil em plena vida, que tem levado meninas e mulheres ao suicídio. Apesar disso, não há no ordenamento um dispositivo legal específico. Para suprir esta lacuna, desde 2013, tramita na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei (PL 6630/2013), que tem como objetivo tipificar a conduta de divulgar fotos ou vídeos com cenas de nudez ou ato sexual, sem autorização da vítima.

No grande reduto da legítima defesa da honra – Tribunal do Júri – ainda se encena a estratégia de defesa de transformar o feminicídio em “ato de amor” e o réu em homem apaixonado, como o célebre processo de Doca Street.  Logo a seguir, a vítima é apontada como desregrada, insensível ao amor ou infiel. Tudo isso para se tentar uma absolvição ou a diminuição da pena pelo crime privilegiado.

Silvia Pimentel, Juliana Belloque e Valéria Pandjiarjian realizaram um estudo qualitativo de julgados sobre a legítima defesa da honra e encontraram quatro categorias de decisões: “acolhimento da tese de legítima defesa da honra ultrajada por conduta sexual de parceiro com terceiro, não acolhimento por falta de requisitos formais do art. 25 do CP, rejeição absoluta da tese com voto vencido em sentido contrário e rejeição unânime” (Legítima Defesa da Honra: Legislação e Jurisprudência da América Latina. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 50, p. 311, set/2004).

Em 2001, o Superior Tribunal de Justiça afastou a legítima defesa da honra por ausência do requisito da atualidade (art. 25 do Código Penal). Neste processo, o réu foi acusado de homicídio qualificado por matar a esposa, de quem estava separado há 30 dias, porque ela se negou à reconciliação quando por ele procurada na residência de seus pais. Curioso é que, absolvido pelo júri, o Tribunal de Justiça do Estado confirmou a decisão salientando não ser “aquela causa excludente desnaturada pelo fato de o casal estar separado, há algum tempo, e porque a vítima não tinha comportamento recatado” (REsp 203632/MS, 6ª T, j. 19.04.2001, DJ 19.12.2002, p. 454). Somente no julgamento do recurso especial a decisão foi revertida.

Mas foi na década anterior, em 1991, que o Superior Tribunal de Justiça proferiu julgamento histórico. Em um processo de duplo homicídio, em que o marido surpreendeu a esposa em adultério e foi absolvido por defesa da honra, proclamou-se que “não há ofensa à honra do marido pelo adultério da esposa, desde que não existe essa honra conjugal. Ela é pessoal, própria de cada um dos cônjuges” e “a lei civil aponta os caminhos da separação e do divórcio. Nada justifica matar a mulher que, ao adulterar, não preservou a sua própria honra”. A decisão do júri foi cassada para determinar novo julgamento (REsp 1517/PR, 6 a. T., j. 11.03.1991, DJU 15.04.1991, p. 4309).

Essa concepção individual de honra deve servir de paradigma. Nossa postura enquanto sociedade e aplicadores do Direito é fundamental para evitar o feminicídio. Desde as mortes de Juarez, no México, aponta-se a responsabilidade do Estado e da sociedade por omissão diante do assassinato de mulheres. Como adverte Marcela Lagarde: “Contribuyen al feminicidio el silencio social, la desatención, la idea de que hay problemas más urgentes, y la vergüenza y el enojo que no conminan a transformar las cosas sino a disminuir el hecho y demostrar que no son tantas “las muertas” (Feminicidio, el último peldaño de la agresión. Disponível em: <http://www.mujeresenred.net/spip.php?article141>. Acesso em 23.05.2015).

A honra é um atributo pessoal e a conduta da mulher não tem esse “poder” de desonrar um homem honrado por sua própria história de vida. Problemas familiares são resolvidos no âmbito próprio, na presença de um juiz. Não se pode conceber que alguém tenha o direito de julgar e matar. Afinal: se ao feminicida se resguarda o direito a um julgamento justo com ampla e efetiva defesa, quem lhe permitiu julgar e matar sumariamente a parceira?

 

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