Figura equiparada do porte de arma de uso restrito não se tornou hedionda

Henrique Hoffmann e Eduardo Fontes -

Foi editada a Lei 13.497/17, que alterou o parágrafo único do artigo 1º da Lei 8.072/90 para ampliar o rol de crimes hediondos incluindo o delito de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (artigo 16 da Lei 10.826/03).

Como se sabe, a hediondez de um delito traz consequências mais gravosas para o criminoso, impostas tanto pela Constituição (artigo 5º, XLIII – inafiançabilidade e impossibilidade de graça ou anistia) quanto pela própria Lei (artigo 2º da Lei 8.072/90 e artigo 83, V do CP – impossibilidade de indulto, requisitos mais rigorosos para progressão de regime e livramento condicional, e prazo maior da prisão temporária).

A justificativa para o etiquetamento de mais um crime como hediondo foi a “avassaladora onda de criminalidade que vitima a sociedade brasileira, atingindo patamares nunca antes experimentados no país.”

Cuida-se de mais uma manifestação do chamado Direito Penal Simbólico, movimento em que o legislador aumenta o rigor do tratamento penal a certas condutas procurando transmitir à população a ilusória sensação de tranquilidade e a falsa impressão de que o problema da criminalidade está sob controle das autoridades.

Não se ignora, como exposto pelo próprio projeto de lei que resultou na Lei 13.497/17, que a maioria dos homicídios cometidos no país é praticada por armas de fogo, e que grande parte das armas que circulam no país são ilegais. Todavia, “querer combater a criminalidade com o Direito Penal é querer eliminar a infecção com analgésico”. “Não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza do castigo”. Criar tipos penais, aumentar penas e reduzir garantias não resolve coisa alguma sem investimento nas polícias e aprimoramento do moroso sistema de persecução penal.

A par das considerações críticas iniciais, a principal polêmica surgida dessa mudança é a abrangência apenas da conduta narrada no caput do artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, ou também das figuras equiparadas do parágrafo único do mesmo artigo.

Isso porque o parágrafo único do artigo 1º da Lei de Crimes Hediondos passa a englobar o delito “de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no artigo 16 da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003”. Ou seja, o legislador (sempre impreciso) citou apenas o artigo 16 (obviamente abrangendo o caput) mas não mencionou expressamente o parágrafo único do artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, que hospeda as condutas equiparadas, dando margem a dúvidas. Daí surgem duas correntes, entendendo de um lado que (a) a figura equiparada está abrangida e é hedionda, e de outro lado (b) que não está abarcada e portanto não é hedionda (nossa posição).

Uma interpretação possível é de que quando o legislador fala em artigo 16, abrange todo o dispositivo (inclusive parágrafo), pois se quisesse limitar apenas ao caput o teria feito expressamente. Onde o legislador não restringe, não cabe ao intérprete fazê-lo.

Essa exegese de fato seria a mais lógica em condições gerais, e se feita a análise isolada do parágrafo único do artigo 1º da Lei 8.072/90. Todavia, não há como desconsiderar a técnica legislativa empregada nos incisos do artigo 1º da Lei dos Crimes Hediondos. A interpretação conjunta de todo o artigo 1º da Lei revela que sempre que o legislador quis abranger também as figuras equiparadas (ou qualificadas) do crime, em vez de permanecer silente, especificou os parágrafos (sistemática adotada com os delitos de extorsão mediante sequestro, estupro, estupro de vulnerável, falsificação de medicamentos e favorecimento da prostituição de menor ou vulnerável). Nos demais crimes somente a figura qualificada foi sinalizada como hedionda (vide crimes de latrocínio, extorsão qualificada pela morte e epidemia com resultado morte).

Nesse sentido, a leitura sistemática de todo o artigo 1º da Lei 8.072/90 não permite a realização de interpretação extensiva e solitária do parágrafo único, ignorando a técnica legislativa (concorde-se ou não com ela) de especificar os parágrafos de cada crime para que eventual figura equiparada seja catalogada como hedionda.

Indene de dúvidas que algumas condutas descritas no parágrafo único também mereceriam ser tratadas como hediondas (como o porte de artefato explosivo). Todavia, uma leitura mais técnica e com observância estrita do sistema legal de definição de delitos hediondos leva à conclusão inarredável de que apenas a figura básica do artigo 16 é hedionda.

Mencione-se que a discussão sobre os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, (existente antes da Lei 12.015/09) não serve de parâmetro para o presente debate, pois naquela situação a forma qualificada (mais grave) era indicada como hedionda juntamente com a figura simples, diferentemente da exposição sobre posse ou porte ilegal de arma de uso restrito.

E mesmo se sairmos dos aspectos formais de legalidade estrita e passarmos aos fundamentos teleológicos dos motivos pelos quais o legislador editou a Lei (o que pode ser analisado pela ementa, justificativa e pareceres ao Projeto de Lei 230/14), a outra conclusão não chegamos.

O motivo do Projeto de Lei foi punir com mais rigor a posse ou porte de armas de fogo de uso restrito (e o comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo, que foram retirados no curso do processo legislativo). Não houve qualquer pronunciamento do legislador no sentido de que queria incluir as condutas equiparadas, muitas das quais inclusive abrangem armas de uso permitido.

Como bem lembrou Rogério Sanches (que segue corrente contrária à por nós defendida):

De fato, o maior perigo causado pela posse ou pelo porte de uma arma de uso restrito não tem nenhuma relação com o ato de suprimir marca, numeração ou sinal de identificação de arma de fogo, tanto que esta conduta pode ser cometida inclusive sobre armas de uso permitido. Exatamente o mesmo pode ser dito dos demais incisos citados, pois todas as condutas neles tipificadas podem se fundamentar tanto em armas de uso permitido quanto em armas de uso restrito.

Deveras, é totalmente criticável o tratamento penal diferenciado dispensado pelo legislador a figuras equiparadas. No entanto, não é papel do intérprete (seja doutrina ou jurisprudência) interferir na catalogação de crimes hediondos, que segue sistema legal.

Por fim, convém sublinhar dois aspectos sobre a Lei 13.497/17, em relação aos quais concordamos com o professor Rogério Sanches.

O primeiro é a crítica à exclusão dos delitos de comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo (artigos 17 e 18 da Lei 10.826/03) do Projeto de Lei 230/14, que inicialmente os incluía como hediondos. A intenção foi evitar o “terrorismo penal legislativo”. Realmente apenas incrementar o tratamento penal não é solução para a criminalidade, como já salientado. Porém, se está sendo dada determinada disciplina para o crime do artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, não faz sentido dispensar consequências menos graves a crimes apenados de forma mais severa. De todo modo, a opinião dos juristas não tem o condão de alterar a lei.

O outro diz respeito ao concurso dos crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito e roubo:

Antes, entendia-se que se o uso da arma estivesse inserido no mesmo contexto do crime patrimonial, este absorvia o crime de porte. Agora, no entanto, parece-nos inadequado aplicar o princípio da consunção para que o crime patrimonial absorva o crime hediondo, razão pela qual devem ser aplicadas as regras relativas ao concurso de delitos.

Entender o contrário seria chancelar que o crime não hediondo absorva delito hediondo. Destarte, deve o agente responder por porte ilegal de arma de fogo de uso restrito em concurso material com roubo simples (afastando-se a majorante de emprego de arma para evitar o bis in idem).

Registre-se, ainda, que a lex gravior tem vigência apenas a fatos posteriores à sua publicação (artigo 2º, parágrafo único do CP).

 

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