“IMPEACHMENT” e a atualidade do mandato presidencial

René Zamlutti Jr. -  

A grave crise de governabilidade que assola o país nos últimos meses tem suscitado relevantes questionamentos acerca da possibilidade de a atual presidente da República sofrer um processo de “impeachment”, notadamente diante da possibilidade de que o Tribunal de Contas da União rejeite as contas apresentadas pela presidente relativas ao ano de 2014. 

            Tendo em vista a reeleição da presidente Dilma em outubro de 2014 e a circunstância de que, em 1º de janeiro de 2015, iniciou-se um novo mandato para a governante eleita, instaurou-se a dúvida acerca da possibilidade de a presidente sofrer o processo de “impeachment” em razão de fatos ocorridos no mandato encerrado ao término de 2014, à luz do que dispõe o § 4º do art. 86 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”. 

            Intenso debate instaurou-se entre juristas de renome quanto ao preciso sentido desse dispositivo, em especial no que tange ao alcance da responsabilização do presidente da República (e, por conseguinte, da possibilidade de “impeachment”) por fatos ocorridos no transcurso do mandato já encerrado. 

            Em 22 de agosto, a Folha de São Paulo publicou, na seção Tendências/Debates, dois entendimentos distintos sobre o tema. O professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP, Gustavo Badaró, defendeu a possibilidade do “impeachment” nessa situação, sob o argumento de que “se o presidente foi reeleito, e ainda não deixou o cargo no segundo mandato, não me parece haver um óbice para o processo de impedimento, mesmo que tenha sido por ato praticado no exercício da função no primeiro mandato”, uma vez que “a lei não veda tal possibilidade”. Segundo o penalista, “a impossibilidade de impeachment por ato do primeiro mandato significaria na prática que haveria um ‘bill de indenidade’ para os atos nos momentos derradeiros, mas decisivos do mandato, pois não haveria um processo de impedimento”. Essa impossibilidade, portanto, implicaria uma situação de poder sem responsabilidade, algo incompatível com o Estado de Direito.

             Em sentido contrário, o professor de direito constitucional Pedro Estevam Serrano, da PUC-SP, sustenta a impossibilidade de “impeachment” em razão de ato praticado no mandato anterior, invocando, como fundamento de sua posição, o princípio republicano, que fundamenta o Estado brasileiro. Para o constitucionalista, “o crime de responsabilidade deve ser compreendido à luz do princípio republicano, o qual é assinalado pela eletividade, pela responsabilidade e, essencialmente, pela periodicidade dos mandatos. Nesse cenário, não há possibilidade de impeachment do presidente da República por ato praticado no exercício do mandato anterior”. 

            Em 24 de agosto, o constitucionalista Lenio Luiz Streck publicou artigo no site Consultor Jurídico, aderindo ao entendimento de Pedro Estevam Serrano e observando, com perspicácia, que “quando o texto não diz o que queremos, não podemos lhe dar o sentido que queremos. Ao contrário: se queremos dizer algo sobre um texto, diz Gadamer, deixemos, primeiro, que ele nos diga alguma coisa”. 

            Salientando que as normas previstas na Lei nº 1.079/1950 (que tipifica os crimes de responsabilidade capazes de levar ao processo de “impeachment” do presidente da República) devem ser interpretadas à luz da Constituição de 1988 e não da Constituição de 1946, Streck, inspirado no princípio democrático, assevera que “quando está em jogo a coisa mais sagrada da democracia – que é a vontade do povo – também não se podem fazer pan-hermeneutismos, a partir de analogias e/ou interpretações extensivas. Parece-me que qualquer interpretação sempre deverá ser ‘in dubio pro populo’. ‘In dubio pro’ vontade popular”. Aduz que a preservação da vontade popular “é a pedra de toque que deve servir para dar sentido a eventuais vaguezas ou ambiguidades decorrentes de ‘gaps de sentido’, como, por exemplo, a discussão acerca da palavra ‘mandato’ ou ‘estar no exercício’ ou, ainda ‘se o segundo mandato é ou não uma continuidade do primeiro’”. E conclui que a lei ordinária deve ser interpretada conforme a Constituição e não o contrário, o que ocorreria a se admitir a possibilidade de “impeachment” em razão de fatos ocorridos em mandato pretérito. 

            Em 31 de agosto, no mesmo site (Consultor Jurídico), Gustavo Badaró ofereceu a Streck uma resposta, reiterando que o fundamento de seu entendimento, “que é um fundamento constitucional, é que não existe poder sem responsabilidade pelo exercício do mandato. Se assim não fosse, ao final do mandato, e no período em que concorresse à reeleição, o ocupante do cargo estaria no poder, mas sem responsabilidade, porque qualquer crime de responsabilidade que viesse a cometer não seria passível de processo de impedimento por absoluta falta de tempo para sua instauração e conclusão”.

             O objetivo deste artigo é acrescentar ao debate, já enriquecido pelos argumentos dos prestigiosos juristas, alguns elementos ainda não abordados, ou não diretamente abordados, nos artigos anteriores. 

            A redação do § 4º do art. 86 da Constituição, que faz expressa referência à “vigência de seu mandato” e a “atos estranhos ao exercício de suas funções”, permanece inalterada desde a promulgação da Constituição, em 05 de outubro de 1988. Tais expressões, portanto, foram concebidas em um regime jurídico que não admitia a possibilidade de reeleição do presidente da República, instituída pela Emenda Constitucional nº 16, de 04 de julho de 1997, que alterou o § 5º do art. 14 da Constituição e inseriu a possibilidade de reeleição para um único período subsequente para os chefes do Poder Executivo federal, estadual, distrital e municipal. É importante observar que não houve momento algum na história republicana brasileira em que a reeleição do governante, mesmo que para um único período, fora admitida. 

            Assim, a EC nº 16/1997 trouxe à Constituição uma inegável novidade para o Poder Executivo brasileiro. 

            É possível uma interpretação que, diante desse novo regime jurídico, que admite a reeleição do governante, extraia do § 4º do art. 86 da Constituição a possibilidade de “impeachment” a partir de atos praticados no primeiro mandato, durante a vigência do segundo? 

            Uma interpretação puramente literal do dispositivo poderia, sem dúvida, levar a essa conclusão. Afinal, os crimes de responsabilidade – que não são efetivos “crimes”, e sim infrações político-administrativas – só podem ser cometidos no exercício das funções do presidente da República (do contrário não serão crimes de responsabilidade, e sim infrações penais comuns). Poder-se-ia, assim, argumentar que a vedação contida no § 4º diz respeito exclusivamente a atos estranhos ao exercício da função de presidente da República, sem que – como afirma Gustavo Badaró – haja qualquer vedação expressa, na Constituição ou na lei, à responsabilização por condutas ocorridas no mandato anterior. 

            Essa interpretação, que parece sedutora à primeira vista, só se sustenta diante de uma exegese isolada do § 4º do art. 86, ou seja, diante de uma interpretação que não leve em conta o que Savigny chamada de “elementos histórico e sistemático”, nem o princípio da unidade da Constituição.

             A conjugação dos elementos histórico e sistemático (este último, ainda, consubstanciado no princípio da unidade da Constituição) enriquece e ilumina o sentido da norma, que, por óbvio, transcende sua mera literalidade. 

            Historicamente, pode-se afirmar que nem o § 4º do art. 86 da Constituição, nem os dispositivos da Lei nº 1.079/1950 foram concebidos à luz de uma realidade em que estivesse presente o instituto da reeleição. Dito de outro modo, tais normas foram idealizadas em (e para) incidir sobre um único mandato presidencial, pois esse era o contexto fático que se apresentava quando de sua elaboração. 

            A dúvida que se coloca é se, com a alteração constitucional promovida em 1997, pode-se interpretar o segundo mandato como extensão do primeiro. 

            A resposta constitucional é, a meu juízo, indiscutivelmente negativa. 

            O art. 82 da Constituição é de clareza inarredável: “O mandato do Presidente da República é de 4 (quatro) anos”. Diante desse dispositivo, não há malabarismo hermenêutico capaz de atribuir ao segundo mandato a natureza de extensão do primeiro. Um mandato se encerra. Outro se inicia. Não há um mandato de oito anos, e sim dois mandatos de quatro anos. O § 4º do art. 86 usa a expressão “seu mandato”, no singular. O cotejo entre os dois dispositivos não autoriza, de modo algum, que atos praticados durante o primeiro mandato alcancem o segundo. 

            A reforçar esse entendimento, os princípios democrático e republicano (invocados por Pedro Serrano e Lenio Streck em seus artigos, como visto) consagram a legitimidade de cada mandato enquanto fato jurídico único. Não há, por óbvio, absoluta identidade entre os eleitores que elegeram a presidente na primeira eleição e os que o fizeram na segunda. É evidente que grande parcela do eleitorado repetiu, na segunda eleição, o voto dado na primeira. Mas, repita-se, a composição de eleitores não é idêntica. Similaridade não é a mesma coisa que identidade. Ainda que o eleitorado deva ser compreendido como representante do “povo” (este, juridicamente considerado no texto constitucional enquanto unidade), a circunstância de os dois eleitorados não serem exatamente os mesmos torna ainda mais evidente que o primeiro mandato não é mera extensão do segundo, mas outro mandato, com seus próprios início, meio e fim. 

            Fica claro, portanto, que a responsabilidade do governante se caracteriza em cada mandato, sendo inviável entender o segundo como extensão do primeiro – o que, por conseguinte, inviabiliza, no modelo presidencialista adotado pela Constituição de 1988, a responsabilização do governante por fato ocorrido no mandato anterior. 

            Um último – e relevante – aspecto a ser considerado. 

            Em sua resposta a Lenio Streck, Gustavo Badaró, como visto, afirma que “não existe poder sem responsabilidade pelo exercício do mandato. Se assim não fosse, ao final do mandato, e no período em que concorresse à reeleição, o ocupante do cargo estaria no poder, mas sem responsabilidade, porque qualquer crime de responsabilidade que viesse a cometer não seria passível de processo de impedimento por absoluta falta de tempo para sua instauração e conclusão”. 

            Esse argumento enseja duas observações. 

            Em primeiro lugar, a posição defendida por Serrano e Streck não leva, ao contrário do que afirma Badaró, ao exercício do poder sem responsabilidade. Isso porque, via de regra, a conduta tipificada como crime de responsabilidade não raro constitui, também, um crime em sentido comum (por exemplo, a corrupção passiva), pelo qual o então presidente poderá responder, judicialmente, ao término do mandato (o entendimento do Supremo Tribunal Federal é peremptório a esse respeito). Além disso, a se acolher o entendimento de Badaró, o mesmo problema se verificaria ao término do segundo mandato (ou ao término de um único mandato, caso não houvesse a possibilidade de reeleição). Num e noutro caso, o problema persistiria. 

            Em segundo lugar, ainda que assim não fosse, o uso do argumento meramente pragmático (a solução constitucionalmente prescrita não se mostra socialmente adequada, ou, dito de outro modo, não é “justa na prática”) não pode, por si só e sem fundamento no ordenamento jurídico (notadamente na Constituição, lei maior do sistema jurídico), levar a uma interpretação que escape completamente ao campo semântico da norma (vale dizer, que lhe atribua um sentido que o texto normativo não suporta). Dito de outro modo, a discordância em relação à solução dada pela Constituição a determinada situação não pode levar à negação do próprio texto constitucional, sob o manto de uma – sempre subjetiva – concepção do “socialmente justo” ou “socialmente adequado”.

             Por todas essas razões, e respeitadas as opiniões em sentido contrário, parece-me bastante evidente que o texto constitucional não admite a interpretação segundo a qual o processo de “impeachment” pode tomar por base situações ocorridas no mandato anterior ao presente. Entendimento que, repita-se, não consagra qualquer espécie de irresponsabilidade do governante, na medida em que a esfera político-adminitrativa (e funcional) é uma, mas não a única que admite sua responsabilização, observados os limites constitucionais. 

            Afirmar que o “impeachment” é um “processo político” não significa, num Estado Democrático de Direito, liberdade para que o Congresso Nacional não observe os preceitos constitucionais. Contudo, os últimos tempos têm demonstrado o descompromisso do Parlamento com a Constituição (do que é prova, dentre outras, a aprovação, pela Câmara dos Deputados, da PEC nº 171/93, um dia após sua expressa rejeição, em flagrante violação ao § 5º do art. 60 da Constituição), de modo que, a despeito do entendimento exposto neste artigo (que, como afirmado de início, vai ao encontro de posições de consagrados constitucionalistas), não será de surpreender que a Câmara dos Deputados, diante de um eventual pedido de “impeachment” da presidente em razão de fatos ocorridos no mandato passado, formule juízo de admissibilidade positivo, admitindo a instauração do processo de “impeachment” perante o Senado Federal, nos termos do art. 86 da Constituição. 

            Se isso ocorrer, haveria ainda a possibilidade de recurso ao Judiciário (no caso, ao Supremo Tribunal Federal), por violação à Constituição no que concerne aos pressupostos de admissibilidade do processo de “impeachment”. Atualmente, contudo, não se pode esperar do Judiciário uma resposta politicamente isenta, pois, como bem observa Tércio Sampaio Ferraz Jr., a desneutralização política do Judiciário torna a atividade jurisdicional não mais uma prudência, mas uma técnica, “uma relação tornada meramente pragmática do juiz com o mundo”. Assim, na quadra atual, “a neutralidade do juiz é politicamente contaminada, passando a sustentar-se por meios políticos, como a busca de apoio da opinião pública, a geração de consenso popular, a manutenção da imagem (o juiz ‘progressista’, a decisão atendendo ao ‘clamor popular’), a busca do prestígio (a decisão de repercussão nacional, a entrevista dada à imprensa, o julgamento ao vivo na TV) etc. O risco, nisso tudo, fica, então, por conta de uma rendição da Justiça à tecnologia do sucesso, com a transformação do direito em simples e corriqueiro objeto de consumo”. 

Nesse contexto, a fragilidade do governo (fruto de sucessivos erros que contribuíram consideravelmente para o agravamento da crise econômica e política), seu isolamento político, a rejeição popular (inclusive dentre o próprio eleitorado da presidente) e a absoluta incapacidade de encontrar soluções para os graves problemas de governabilidade que marcam o presente momento, são circunstâncias que dificultam ainda mais a prevalência do aspecto jurídico da questão sobre o aspecto político. 

            Em suma, se, juridicamente, não há fundamento constitucional para a instauração do processo de “impeachment” em razão de fatos ocorridos no mandato anterior, politicamente, não causará surpresa se a Câmara dos Deputados, em contrariedade à Constituição, acatar o pedido de instauração eventualmente formulado. Tampouco surpreenderá se o Supremo Tribunal Federal, caso provocado a se manifestar, entender pela admissibilidade do processo de impedimento, o que, a meu ver, seria tanto inconstitucional quanto incongruente com as decisões tomadas pelo Supremo sobre temas conexos (embora essa questão ainda não tenha sido diretamente analisada pelo STF).

 

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