Inconstitucionalidade da Supressão do Protesto por Novo Júri

Adel El Tasse -

O Código de Processo Criminal de 1832 instituiu o protesto por novo júri, para vigorar no Brasil nas hipóteses de condenação as penas máximas do sistema àquela época: morte, degredo, galés ou prisão perpétua.

A abolição desses modelos punitivos não fez desaparecer o protesto por novo júri do sistema brasileiro, que persistiu quando da edição da Constituição Federal de 1988, consolidando-se no conjunto de garantias constitucionais que efetivam a plenitude de defesa proclamada na Lei Maior.

A Constituição Federal estabelece no art. 5º, XXXVIII, a, a plenitude de defesa nos julgamentos pelo Tribunal do Júri e, na medida em que o legislador constituinte agregou à regra geral do art. 5º, LV, que garante a ampla defesa em todos os processos judiciais ou administrativos, a plenitude de defesa, no que diz ao Tribunal do Júri, emanou uma mensagem clara de que nos julgamentos populares há um reforço defensivo, ou seja, há uma verdadeira priorização da defesa no júri para contrapor à natural grandiosidade do poder acusatório representado pelo Estado e, em geral, nos julgamentos populares, acrescido da pressão popular no sentido da condenação do acusado.

A problemática é que o legislador brasileiro desejou promover a retirada do protesto por novo júri do sistema pátrio com a edição da Lei nº 11.689/08, ao não mais prever essa modalidade recursal, porém, é de se observar que o legislador ordinário não poderia ter suprimido o protesto por novo júri do sistema jurídico, sendo a medida supletiva dessa modalidade recursal carente de amparo constitucional, justamente por representar redução do conteúdo da garantia de plenitude de defesa.

Ocorre que, desde 1988, com a entrada em vigor da atual Carta Constitucional e expressa previsão de que nos julgamentos pelo Tribunal do Júri deve incidir a plenitude de defesa, passou a ser impossível ao legislador infraconstitucional promover qualquer alteração legislativa que represente diminuição das possibilidades do exercício da defesa.

Não pode o legislador infraconstitucional suprimir nenhum dos mecanismos existentes em favor da defesa quando da edição da Carta de 1988, caso contrário se estaria impedindo, por via transversa, o que garantiu a Constituição, ou seja, a plenitude de defesa.

Melhor explicando, fosse admissível a supressão do protesto por novo júri após a edição da Constituição Federal de 1988, estaria se legitimando o legislador infraconstitucional a revogar a plenitude de defesa, pois bastaria ao legislador infraconstitucional alterar a legislação processual para dela retirar a previsão dos mecanismos assecuratórios da defesa para que, embora a Constituição fale de forma absolutamente ilimitada em plenitude de defesa, essa determinação constitucional se transforme em mera enunciação vazia.

A intocabilidade dos direitos e garantias fundamentais não diz somente respeito à impossibilidade de ataque formal à sua existência, mas, também, a um bloqueio de que sejam utilizados mecanismos que promovam o esvaziamento de seu conteúdo e, com isso, produzam a proclamação formal de determinado direito ou garantia, mas a sua inexistência real, pela ausência de previsão de mecanismos que permitam sua efetivação, pela subtração gradual do universo jurídico dos meios que permitem que o compromisso constitucional se efetive.

Especificamente no que refere ao exercício da defesa no Tribunal do Júri, as reformas processuais somente podem ser ampliativas das possibilidades de seu exercício, não se admitindo que jamais sejam voltadas a diminuir seu campo, pois este encontra, na proclamação da plenitude de defesa havida em 1988 pela Carta Constitucional, um momento de consolidação de um plexo mínimo a lhe garantir seja plena.

Assim sendo, ao trazer a plenitude da defesa para o cotejamento com a supressão infraconstitucional do protesto por novo júri, há uma clara constatação do confronto constitucional na reforma processual promovida, pois o que fez o legislador foi diminuir as possibilidades de defesa, quando, desde 1988, nos julgamentos populares, a defesa deve ser plena, ou seja, ilimitada, o que impede modificações que retirem qualquer possibilidade de exercício da defesa previsto quando da edição da Carta Maior.

Submetida a matéria ora comentada às primeiras manifestações dos Tribunais, o que se tem observado é que estes têm se furtado a aprofundar o debate sob o ponto de vista constitucional do esvaziamento de garantia fixada na Lei Maior com a força de cláusula pétrea, o que é particularmente preocupante, pois há que se recordar que a reforma processual penal de 2008 foi embalada, sob o ponto de vista retórico, do momento de hegemonia do discurso de pânico com a ideia abstrata de impunidade, o que fez as ações legislativas movimentarem-se no sentido da geração de dificuldades para o exercício da defesa, identificada como uma das responsáveis pela propalada e falsa baixa punibilidade no Brasil, que, em verdade, é um dos países que ostenta maiores índices de prisionalização no planeta.

Lembre-se que os modelos autoritários de Estado são constituídos a partir do clamor social por medidas que debelem o sentimento de pânico coletivo que, em regra, é o fruto da deliberada criação de um ente abstrato, como o demônio, o terrorismo, a impunidade, seguido de sua continua ampliação discursiva até a própria população admitir a retirada de seus direitos em nome do combate ao mal imaginário.

Dessa forma, quando há o choque entre os direitos e garantias e o desejo de sua limitação como contraposição retórica ao elemento gerador de pânico coletivo, há que preservar aqueles e não ceder à sedução das propostas mágicas para o combate do que gera medo.

Quando o legislador, em 2008, suprimiu o protesto por novo júri em sua reforma, o que fez foi identificar esse expediente recursal com a impunidade e combatê-lo; porém, ao assim fazer, diminuiu as possibilidades de defesa de qualquer pessoa acusada do cometimento de um crime doloso contra a vida.

O mais grave é que eventual admissão desse aspecto da reforma processual penal de 2008 autoriza o legislador infraconstitucional a sempre usar o mecanismo do esvaziamento dos direitos e garantias fundamentais como forma indireta de revogá-los, retirando-lhes a eficácia, o que em hipótese alguma pode ser aceito, sob ameaça de colocar-se em risco a própria existência da democracia.

 

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