Inquérito policial tem sido conceituado de forma equivocada

Henrique Hoffmann Monteiro de Castro -  

O Brasil adotou um sistema de investigação preliminar conduzido pela polícia judiciária, sobressaindo o inquérito policial como principal procedimento investigativo para a busca da verdade na fase pré-processual. Desde o século XIX, consolidou-se como mecanismo central de investigação criminal, consagrado pela Lei 2.033/1871 e pelo Decreto 4.824/1871, legislação esta que o conceituava de maneira singela como “todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices”.

O atual arcabouço legal não fornece o conceito de inquérito policial, tarefa delegada à doutrina. O conceito do procedimento policial costumeiramente difundido é formado por sua natureza jurídica, características e finalidades. Isso significa que sua correta definição depende da apropriada concepção de sua essência, objetivos e traços marcantes.

Segundo doutrina amplamente difundida, inquérito policial é o procedimento administrativo presidido pelo delegado de polícia, inquisitorial, informativo, dispensável, e preparatório. Essas supostas particularidades não resistem a um exame mais minucioso.

Na verdade, o inquérito policial é o processo administrativo presidido pelo delegado de polícia natural, apuratório, informativo e probatório, indispensável, e preparatório e preservador. Examinemos o conceito analiticamente:

  1. a) processo administrativo, e não um procedimento: apesar da resistência em utilizar o termo processo na seara não judicial, nada impede o etiquetamento do inquérito policial como processo administrativo sui generis, no contexto da chamada processualização do procedimento. Apesar de não existirem partes, vislumbram-se imputados em sentido amplo. E nada obstante não haver na fase policial um litígio com acusação formal, existem, sim, controvérsias a serem dirimidas por decisões do delegado de polícia que podem resultar na restrição de direitos fundamentais do suspeito (tais como prisão em flagrante, liberdade provisória com fiança, indiciamento e apreensão de bens). Os atos sucessivos afetam inegavelmente exercício de direitos fundamentais, evidenciando uma atuação de caráter coercitivo que representa certa agressão ao estado de inocência e de liberdade, ainda que não se possam catalogar tais restrições de direitos como sanções.
  2. b) presidido pelo delegado de polícia natural: o inquérito policial só pode ser presidido por delegado de polícia (mediante juízos de prognose e diagnose), e nenhuma outra autoridade. E não por qualquer autoridade de polícia judiciária. Por exigência do princípio do delegado de polícia natural, o delegado a coordenar os atos de determinado inquérito policial só pode ser aquele definido conforme regras pré-estabelecidas, vedando-se indicação ad hoc tendenciosa, sob pena de o Estado-Investigação falhar no dever de investigar de forma imparcial e célere. Consequentemente, veda-se a avocação e redistribuição arbitrárias do inquérito policial, bem como a remoção despótica do delegado de polícia.
  3. c) apuratório, e não inquisitivo: para restabelecer a igualdade, tendo em vista o desnível provocado pelo próprio criminoso, é preciso que o Estado tenha alguma vantagem na etapa investigativa, para a eficiente colheita de vestígios. Essa vantagem se traduz no elemento surpresa, materializada no sigilo inicial das medidas investigativas da polícia judiciária; ao serem efetivadas sem prévia notificação do suspeito, as diligências policiais podem ter um mínimo de eficácia na colheita de elementos informativos e probatórios. O segredo não é absoluto, não afetando o direito de o investigado ter ciência dos atos de investigação já concluídos e documentados nos autos, para que possa se defender. Ocorre que o termo inquisitivo, comumente utilizado para designar essa característica, é mais apropriado para diferenciar a fase processual, e não a investigação preliminar. Aliás, utilizando esse critério para caracterizar o inquérito policial, ele se aproxima mais do sistema acusatório do que do inquisitorial, pois não concentra funções numa única autoridade nem ignora direitos do investigado (como integridade física, informação e defesa). Além disso, a palavra inquisitivo remete à abusiva Santa Inquisição, que concebia o imputado como mero objeto, e não sujeito de direitos. Portanto, o vocábulo que melhor indica essa característica é apuratório, por indicar que se trata de apuração criminal que compatibiliza sigilo inicial, imparcialidade e dignidade da pessoa humana.
  4. d) informativo e probatório, e não somente informativo: o inquérito policial de fato produz elementos informativos, em relação aos quais o contraditório é regrado quanto ao direito de informação, ou seja, condicionado à conclusão das diligências policiais (basicamente as oitivas, que serão repetidas em juízo). Mas também fabrica elementos probatórios, em que há incidência de contraditório, ainda que diferido para a fase processual (provas cautelares e irrepetíveis). Esse contraditório postergado é extrínseco à produção da prova e ocorre após a sua formação, o que significa que a prova foi efetivamente colhida no bojo do inquérito policial sob presidência do delegado de polícia. Como consequência, eventuais vícios no procedimento investigativo podem, sim, acarretar nulidade, inclusive afetando o ulterior processo penal.
  5. e) indispensável, e não meramente dispensável: muito embora seja possível o oferecimento de denúncia desacompanhada de inquérito, a esmagadora maioria dos processos penais é antecedida da investigação policial. Afinal, trata-se de garantia do cidadão, no sentido de que não será processado temerariamente. A própria Exposição de Motivos do CPP destaca que o inquérito policial traduz uma salvaguarda contra apressados e errôneos juízos, formados antes que seja possível uma precisa visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. A instrução preliminar é a ponte que liga a notitia criminis ao processo penal, retratando a transição do juízo de possibilidade para probabilidade pela via mais segura. E, justamente por esse motivo, mesmo quando o Ministério Público já dispõe dos elementos mínimos para propor a ação penal sem o inquérito policial, na maior parte das vezes prefere requisitar a sua instauração, não abrindo mão desse filtro processual. De mais a mais, não se deve perder de vista que, nos crimes de ação penal pública incondicionada (que são a maioria), a regra é a obrigatoriedade de instauração do inquérito policial, e esse procedimento deve acompanhar a peça acusatória sempre que servir de suporte à acusação.
  6. f) preservador e preparatório, e não apenas preparatório: o procedimento policial é destinado a esclarecer a verdade acerca dos fatos delituosos relatados na notícia de crime, fornecendo subsídios para o ajuizamento da ação penal ou o arquivamento da persecução penal. Logo, o inquérito policial não é unidirecional e sua missão não se resume a angariar substrato probatório mínimo para a acusação. Não há entre a investigação policial e a acusação ministerial relação de meio e fim, mas de progressividade funcional. A polícia judiciária, por ser órgão imparcial (e não parte acusadora, como o Ministério Público), não tem compromisso com a acusação ou tampouco com a defesa. Além da função preparatória, de amparar eventual denúncia com elementos que constituam justa causa, existe a função preservadora, de garantia de direitos fundamentais não somente de vítimas e testemunhas, mas do próprio investigado, evitando acusações temerárias ao possibilitar o arquivamento de imputações infundadas. Assim, além de a função preparatória não ser a única, ela sequer é a mais importante.

Em outras palavras, inquérito policial consiste no processo administrativo apuratório levado a efeito pela polícia judiciária, sob presidência do delegado de polícia natural; em que se busca a produção de elementos informativos e probatórios acerca da materialidade e autoria de infração penal, admitindo que o investigado tenha ciência dos atos investigativos após sua conclusão e se defenda da imputação; indispensável para evitar acusações infundadas, servindo como filtro processual; e que tem a finalidade de buscar a verdade, amparando a acusação ao fornecer substrato mínimo para a ação penal ou auxiliando a própria defesa ao documentar elementos em favor do investigado que possibilitem o arquivamento, sempre resguardando direitos fundamentais dos envolvidos.

Aqueles que propositalmente buscam diminuir a importância do inquérito policial, ensinando que é dispensável, não possui valor probatório e não tem que ser conduzido com imparcialidade, transmitem a equivocada ideia de que o investigado não precisa se preocupar com a fase policial. Vendem a imagem de que o inquérito policial supostamente não teria qualquer relevância para o desfecho do processo penal, quando na verdade a regra é que investigação policial determina a sorte da etapa processual. De modo que, quando uma defesa despreparada abrir os olhos, no adiantar da persecução penal e com as provas devidamente produzidas, terá perdido a chance de adotar estratégia defensiva minimamente eficaz.

Não se pode olvidar que o inquérito policial, ao promover a colheita imparcial de vestígios e preservar direitos fundamentais, serve como barreira contra acusações draconianas, qualificando-se como devida investigação criminal. Já passou da hora de o seu exame ser feito sob a lente constitucional, sem reducionismos antidemocráticos.

 

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