LIÇÕES DE DIREITO PENAL QUE PODEMOS APRENDER COM O CASO NEYMAR

Por Luciano Santoro -  

O recente caso envolvendo o jogador Neymar e a modelo Najila Trindade Mendes, com acusação de crime contra a dignidade sexual, sob o ponto de vista do Direito Penal, suscita interessantíssimas discussões que merecem algumas reflexões. Não há como deixar de extrair diversas questões de dogmática penal que merecem aqui ser aventadas, especialmente aos estudantes e amantes de Direito Penal, tais como: o princípio da territorialidade, o consentimento do ofendido, o estado de necessidade e a exigibilidade de conduta diversa. 

A primeira demanda se refere à aplicação da lei brasileira a um fato ocorrido na França, mais especificamente na cidade de Paris. De fato, o artigo 5º do Código Penal é claro ao prescrever que a lei brasileira é aplicada aos crimes cometidos no território nacional, o que se denomina de princípio da territorialidade. Todavia, o artigo 7º do mesmo codex estabelece as exceções, denominadas de extraterritorialidade, ou seja, quando serão aplicadas as normas brasileiras a fatos cometidos no exterior. Entre as hipóteses em que há interesse do Brasil em aplicar a sua lei penal está a do crime praticado por brasileiro fora do território nacional (artigo 7º, II, “b”, CP), desde que as seguintes condições estejam, todas, satisfeitas: entrar o agente no território nacional; ser o fato punível também no país em que foi praticado; estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; não ter sido o agente absolvido no outro país ou não ter lá cumprido a pena; não ter sido o agente perdoado no exterior ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável. Percebe-se, claramente, que todas essas condições estão preenchidas e que uma ação penal pode, a depender das provas produzidas a longo do inquérito policial, vir a ser instaurada. 

Outra questão interessante se refere ao consentimento do ofendido em lesões corporais praticadas dentro da prática de relação sexual, o que é um tema bastante controvertido. Isto porque o consentimento do ofendido é uma cláusula supralegal de exclusão da ilicitude, ou seja, quando se entende que a conduta, embora esteja prevista como crime, é permitida pelo Direito. É o que ocorre, por exemplo, com a legítima defesa: quando alguém tira a vida de outra pessoa, mas em um ato de defesa, reagindo moderada e proporcionalmente ao ataque sofrido, entende-se que a conduta é típica (está prevista na lei como crime de homicídio), mas não é ilícita (o Direito autoriza esse agir, o que se chama de causa justificadora). O consentimento do ofendido não está previsto de forma expressa em nossa legislação, mas se entende que é uma cláusula supralegal, portanto, que o sistema reconhece a sua existência e validade dessa causa justificadora. 

Para que se admita o consentimento do ofendido como causa excludente da ilicitude, conforme as lições de Francisco de Assis Toledo, alguns requisitos devem ser respeitados: que o ofendido tenha concordado livremente com aquele ato (sem coação, fraude ou outro vício de vontade); que o ofendido possua capacidade para decidir; que o bem jurídico lesado ou exposto a perigo de lesão se situe na esfera de disponibilidade do ofendido; que a conduta praticada se identifique com a previsão e com o objeto de consentimento do ofendido, podendo ser concedido prévia ou concomitantemente ao comportamento do agente. 

Resta então a pergunta: as lesões corporais praticadas durante relações sexuais estão amparadas por essa causa justificadora? Entre quatro paredes vale tudo? Ainda que as lesões praticadas tenham sido exatamente aquelas espontânea e livremente autorizadas pelo parceiro sexual que as sofreu, decorrendo de sua vontade e compreendendo o significado e as consequências de sua decisão, deve-se perquirir se a integridade física é um bem jurídico disponível. Porque não é todo bem jurídico que se encontra na esfera de disponibilidade da vítima, como se percebe com o direito à vida (por exemplo, a eutanásia é crime de homicídio). 

Mas essas lesões à integridade física ocorridas durante o ato sexual encontram-se dentro da esfera de disponibilidade da vítima? Historicamente, sempre se sustentou que a integridade física seria um bem jurídico indisponível e que o consentimento seria irrelevante. Entretanto, a sociedade evoluiu, novos valores se fazem presentes, os costumes já não são os mesmos da década de 1940, quando da edição do Código Penal brasileiro. Em pleno século XXI, há casas noturnas abertas para a prática do sadomasoquismo, cujo termo é a junção de sadismo (prazer em ver e/ou proporcionar dor) e o masoquismo (prazer em sentir dor).  

Assim, não é mais aceitável que o Estado interfira sobremaneira na esfera de disponibilidade dos direitos, especialmente quando se tratar da vida íntima das pessoas. Mas deve haver um limite para essas lesões, afinal, nenhum direito é absoluto. O limite deve ser a prática de lesões corporais leves, posto que neste caso o Estado concedeu à vítima o direito de representar o autor do fato (ação penal pública condicionada à representação), ou seja, sem esta manifestação de desejo o Estado fica impossibilitado de processar o autor de um crime e exercer seu direito de punir. Ainda que se tratem de lesões corporais consentidas praticadas no contexto da Lei Maria da Penha, quando a ação penal seria pública incondicionada, deve-se respeitar a vontade do ofendido em seu aspecto mais íntimo da vida privada. 

Por fim, ainda sob uma análise do caso à luz do Direito Penal brasileiro, vale a discussão se o vídeo publicado pelo jogador Neymar em suas redes sociais, com suas conversas e fotos íntimas da modelo Najila, configuraria o disposto no artigo 218-C do Código Penal. Para isso, há que se entender o contexto envolto em sua divulgação, isto é, quando já estava circulando nas redes sociais e publicado na mídia o Boletim de Ocorrência 2564/2019, lavrado junto à 6ª Delegacia de Defesa da Mulher de Santo Amaro, em que consta o esportista como investigado da prática do hediondo crime de estupro, ocorrido em 15 de maio de 2019. Não se pode perder de vista que se trata de um dos principais jogadores de futebol do mundo, que tem milhões de fãs e seguidores de todas as idades, é patrocinado por diversas empresas e seu próprio nome representa uma marca a ser preservada. E não é só: como qualquer ser humano, tem que ter a possibilidade de se defender das acusações que lhe forem dirigidas. A linguagem do silêncio tem que ser uma faculdade, jamais uma imposição. 

Em consequência, ao divulgar o vídeo com as fotos íntimas, ao que parece, Neymar não buscou ferir a dignidade sexual da modelo Najila, mas, sim, exercer a sua autodefesa. E tal fato, ressalvado os entendimentos contrários, não tipifica o referido crime do artigo 218-C, do Código Penal. Analisando o elemento objetivo do tipo, naquilo que interessa ao caso, tem-se a ação nuclear “divulgar” por qualquer meio (inclusive por sua rede social) e o elemento objetivo “sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia”. Neymar divulgou conversas suas com a modelo, com conotação sexual e fotos dela em poses sensuais e de biquíni, sendo possível constatar nudez (seios e nádegas). Assim, embora formalmente a conduta seja típica, há necessidade de se verificar se ela é ilícita e culpável. 

No caso, poder-se-ia justificar a conduta de Neymar sob a excludente do estado de necessidade, o que afastaria a ilicitude de sua conduta de divulgar o vídeo. Isto porque encontrava-se em situação de perigo, já que não há como se negar a rapidez com que a opinião pública se forma, ainda mais em tempos de propagação das notícias pela rede social. O tempo de resposta (a rapidez com que se refuta os fatos), nesses casos é fundamental para a formação da opinião pública. Ninguém em sã consciência há de acreditar que teria hoje a mesma percepção sobre o caso sem a divulgação da conversa privada mantida entre o casal. E os demais requisitos do estado de necessidade (artigo 24 do Código Penal) estão preenchidos: situação de perigo; atualidade; inevitabilidade da lesão; emprego dos meios menos nocivos possíveis; involuntariedade na produção do perigo; defesa de direito próprio; balanceamento dos bens jurídicos; e ciência de agir em estado de necessidade. 

E ainda que assim não se entenda, reputando como uma ação típica e ilícita, não seria culpável. Por quê? Porque um dos elementos da culpabilidade, ao lado da imputabilidade e da potencial consciência da ilicitude, é a exigibilidade de conduta diversa, ou seja, para que a ação seja reprovável, é indispensável que se possa exigir do autor do fato o atuar de outra forma, de acordo com o Direito. Somente se pode reprovar um comportamento se puder exigir que tivesse atuado de acordo com o ordenamento jurídico. 

Ora, alguém que está com seu nome sendo enxovalhado perante a opinião pública, com a sua honra sendo maculada e é acusado da prática de hediondo crime, tendo em mãos o que acredita ser a prova de sua inocência, deverá aguardar para só então em um futuro distante a utilizar como defesa em um processo penal? E isso após ter a opinião pública se formado contrariamente e certamente com a perda de inúmeros patrocinadores e outros males? Parece evidentemente que a conduta está amparada pela inexigibilidade de conduta diversa, a afastar a culpabilidade, já que não havia outra alternativa senão rapidamente se defender. Assim, sob qualquer perspectiva, não há que se falar na prática do crime previsto no artigo 218-C do Código Penal. 

Para concluir, não cabe a este autor, genuíno advogado criminalista, tecer considerações sobre a ocorrência ou não do crime de estupro. Como garantista, deve-se confiar na presunção de inocência e acreditar que a verdade somente se encontra a partir das provas apresentadas no mundo dos autos. Fora dele, nada há de relevante. Não menos certo, no entanto, é que se deve aproveitar desses casos rumorosos para ensinar o Direito Penal e fomentar o debate perante a sociedade brasileira.

 

Comments are closed.