O QUE PODEMOS APRENDER COM KAMALA HARRIS SOBRE A JUSTIÇA CRIMINAL NO BRASIL

Por Fernanda Peron -  

Uma das maiores novidades na política internacional é a presença marcante de Kamala Harris enquanto vice-presidente de Joe Biden, eleito para ocupar a Casa Branca pelos próximos quatro anos. A escolha de Harris adveio não apenas de seu gênero e da ascendência étnica diversa enquanto mulher não branca — fatores importantes por sua representatividade, com potencial de arejar o jogo político após o traumático período Trump.

Seu destaque foi construído a partir da atuação, desde 2004, como district attorney em São Francisco (Califórnia), em instituição análoga ao nosso Ministério Público estadual. Em 2010 e 2014, foi eleita procuradora-Geral da Califórnia, função na qual liderou o órgão responsável por acusar pessoas criminalmente. Em suma, Kamala Harris construiu sua carreira como promotora antes de ser eleita senadora e, enfim, vice-presidente.

Embora possa ser considerada progressista em alguns aspectos, sua gestão foi marcada pelo pragmatismo e pela insistência no discurso da "lei e ordem". Durante o período, seu gabinete obteve um aumento considerável nas condenações criminais. Em certos momentos, opôs-se ativamente a iniciativas de redução do encarceramento, além de ser contra a descriminalização da maconha e da prostituição. Destacou-se especialmente pelo amplo apoio às forças policiais no combate à criminalidade.

Também é especialmente alvo de críticas sua posição em relação a casos de condenações equivocadas, combatidas por grupos como o Innocence Project (organização que defende pessoas presas injustamente). O gabinete da procuradora-Geral Harris se recusava a reconhecer as falhas do Estado na condução daqueles processos, sustentando as condenações mesmo em casos em que a inocência estava comprovada por provas materiais ou testemunhais.

Sua rigidez no combate ao crime foi uma das principais críticas recebidas por ela durante os anos no Senado e a campanha para a presidência, e encontra ressonância até hoje. Diversos grupos estadunidenses que denunciam o encarceramento em massa de jovens negros no país não a perdoam por suas posições do passado.

Seja por evolução em seu próprio pensamento ou pressão das circunstâncias, fato é que o discurso de Harris mudou ao longo dos últimos anos, e sua análise ilustra essa mudança. Em uma publicação de 2009, por exemplo, ela defendeu a necessidade de aumentar o policiamento nas ruas como medida de segurança pública. Já em agosto de 2020, questionou esse mesmo pensamento, apontando-o como um senso comum incorreto.

Desde que ocupou o Senado, Harris passou a defender ativamente a necessidade de reforma do sistema de Justiça criminal, reproduzindo muitas das críticas às quais antes se opunha. Durante a campanha presidencial, em entrevista concedida à CNN em setembro, a vice-presidente denunciou a existência de "dois sistemas de Justiça" diferentes: um para brancos e outro para negros.

No esforço de conciliar seu posicionamento público atual com algumas das posturas do passado, Harris acaba por fornecer elementos conciliatórios que podem nos ajudar a compreender o caminho a seguir na Justiça criminal brasileira. Assim afirmou Harris à CNN, em tradução livre: "Eu não acredito que a maioria das pessoas razoáveis, que estão prestando atenção aos fatos, negaria que existem disparidades raciais e um sistema engajado em racismo, em relação a como as leis vêm sendo aplicadas".

Elucidando sua compreensão, a vice-presidente ressaltou que não se coloca contra a polícia, mas, sim, a favor da exigência por accountability, isto é, pela responsabilização de qualquer pessoa envolvida em crimes graves. Na mesma entrevista, concedida em agosto, Harris tratou sobre a importância de responsabilizar criminalmente policiais acusados de homicídios contra jovens negros, destacando casos que ganharam repercussão, como os tiros contra Jacob Blake, ocorridos naquele mês em Kenosha (Wisconsin, EUA). Em 5 de janeiro deste ano, procuradores locais decidiram não apresentar acusação criminal contra o policial que atirou sete vezes nas costas do jovem negro, causando nova revolta popular.

A evolução nos posicionamentos de Harris sobre a questão da Justiça criminal e sua demanda por responsabilização nos casos de violência policial foram essenciais para que alcançasse o cargo que agora ocupa, e podem servir para questionar as posturas de outros operadores do sistema de Justiça, tanto nos EUA como em todo o mundo.

No Brasil, a presença desproporcional de homens e mulheres negros e periféricos nos bancos dos réus e nos presídios denuncia o mesmo racismo estrutural agora alertado também por Harris. Denunciada há décadas por especialistas, ONGs e coletivos que atuam pela justiça racial, a seletividade na persecução penal pelo Estado vem fazendo cada vez mais vítimas.

Aqui, como nos EUA, instrumentos jurídicos que poderiam proteger a população mais vulnerável são utilizados como ferramentas para o massacre. Prisões forjadas recebem aparência de legalidade nos autos policiais. Torturas e extorsões por policiais são ignoradas. Relatos de vítimas e familiares são abafados por ameaças ou simplesmente desacreditados. Comunidades inteiras são expostas e mantidas na miséria, sem acesso aos seus direitos básicos, e aqueles que lutam recebem pouco ou nenhum apoio estatal, quando não são ativamente perseguidos.

Essa realidade é apagada nos processos criminais, nos quais a construção da verdade parte da versão da polícia que, encampada pelo Ministério Público, tenderá a ser acolhida pelo Poder Judiciário. Em geral, esse destino apenas não ocorrerá caso o réu tenha a grande sorte de encontrar alguma prova concreta e fidedigna de sua inocência, como uma filmagem ou perícia. As dificuldades enfrentadas pelo sistema de persecução penal, ao invés de promoverem seu aprimoramento, resultaram no oposto: com padrões e práticas falhos mas amplamente aceitos, baseados na presunção de culpa de réus vistos por muitos como bandidos em potencial.

Somando-se a isso, a letalidade policial, que já era crescente no país nos últimos anos, atingiu níveis insuportáveis em 2020, como vêm alertando diversas organizações e movimentos sociais. Para especialistas, o aumento tem relação direta o incremento da lógica repressiva homicida que ganhou mais repercussão desde 2018, com a eleição de representantes como Bolsonaro, Dória e Witzel.

Porém, o fator preponderante nos altíssimos índices de letalidade estatal é a negação desse problema estrutural, a despeito de provas reiteradas de sua existência e gravíssimas consequências. A cada nova prisão forjada na periferia, a cada jovem negro torturado ou assassinado por policiais, a cada autoridade que, sabendo da realidade, recolhe-se no conforto de seus privilégios, o sistema de Justiça se enfraquece. É isso que precisa mudar — rápido.

Nesse sentido, a lição dada pela vice-presidente dos Estados Unidos, ex-procuradora-Geral de Justiça da Califórnia, às autoridades que compõem e lideram os órgãos de persecução penal é esta: "Não nos faz qualquer bem negar (o racismo no sistema de justiça). Vamos apenas lidar com isso. Vamos ser honestos. Essa pode ser uma conversa difícil para alguns, mas não é uma conversa difícil para líderes; não para líderes de verdade."

A todos que atuam e tomam decisões no sistema de justiça criminal é imperioso que levem a sério essa demanda, cumpram suas funções institucionais e combatam com vigor, prioridade e honestidade o racismo estrutural que vigora no Poder Judiciário, no Ministério Público, nas polícias, nas secretarias de Segurança, na administração penitenciária, nas guardas municipais —‚ e, necessariamente, nas pessoas que integram essas instituições.

 

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