Porque o Direito Penal do Inimigo é perigoso

Damásio Evangelista de Jesus -  

Segundo Günther Jacobs, penalista alemão criador do DIREITO PENAL DO INIMIGO (1985), deve ser entendido ao pé da letra o princípio jurídico básico que a lei é igual para todos. Em tese, segundo ele, deveria ser assim, mas na prática, diante da escalada do crime – e, especialmente em face do terrorismo e do crime organizado – a lei não deve ser igual para todas as pessoas, já que a população não forma um conjunto único e homogêneo, mas se divide em dois grupos antagônicos e em irremediável conflito: os homens de bem e os inimigos da lei e da ordem. 

O primeiro grupo, largamente majoritário, é constituído pelos cidadãos de bem, que trabalham, obedecem às leis e pagam impostos. Para eles, sim, as garantias do Direito devem ter pleno vigor em relação a cada um, sem exceções. Para eles, vale o princípio, também basilar, da presunção de inocência (tomado como exemplo): ninguém pode ser considerado culpado enquanto não transita em julgado a sentença penal condenatória. 

Ainda nos termos da teoria do DPI (Direito Penal do Inimigo), o segundo grupo, numericamente muito minoritário, é composto pelos cidadãos que, livre e espontaneamente, optaram por viver à margem da lei, ou melhor, contra a lei e a ordem. São pessoas notoriamente inimigas da sociedade, perniciosas ao bem comum e devem ser consideradas como inimigas da boa paz social. A elas, segundo o Prof. Jacobs, não é justo aplicar o conjunto de garantias legais que beneficiam o cidadão honesto; para tais pessoas, pelo contrário, deve a lei ser interpretada in malam partem, sempre em prejuízo delas; assim, por exemplo, a tipicidade do delito, indispensável para um cidadão de bem ser incriminado, deve ser relativizada quando se julga um inimigo, admitindo-se adequações típicas de maior amplitude, por extensão e até por analogia; as garantias processuais habitualmente favorecedoras do acusado ainda não julgado e condenado, também devem ser restringidas para os inimigos da lei e da ordem; e assim por diante. 

Qualquer estudante de Direito, logo à primeira vista, reconhece a fragilidade dessa teoria que, a leigos em matéria jurídica, pode parecer justa, porque se lhes afigura como representando a legítima defesa da sociedade civil ameaçada por inimigos insidiosos que se valem das leis apenas para agir contra elas. Na verdade, a ideia do DPI não apenas não se sustenta no campo teórico, mas é perigosíssima na sua aplicação prática, deixando aberto o campo para toda espécie de abusos e arbitrariedades. As piores ditaduras registradas na História tiveram, cada qual a seu modo, “direitos penais do inimigo”... Assim foi com o nazismo e com o comunismo soviético – para falar só deles. 

A aplicação de princípios do DPI pode, de imediato, favorecer a sociedade contra seus inimigos reais; mas, a médio e longo prazo, se voltará inevitavelmente contra a mesma e ameaçará seriamente sua liberdade e seus plenos direitos. Assim penso eu e, no mesmo sentido, sei que assim também se manifestam pelo menos 95 % dos juristas brasileiros. No plano puramente teórico, são muito poucos os doutrinadores adeptos dessa teoria. Na prática, contudo, essa doutrina vai ganhando terreno, perigosamente, em duas frentes: de um lado, no âmbito legal, cada vez mais vão sendo propostas leis inspiradas no DPI, agravando penas, estendendo a lista já extensa dos crimes considerados hediondos, restringindo garantias legais; e, de outro lado, elementos do próprio Judiciário, na sua faina diuturna, cada vez mais procedem com severidade extremada, julgando casos concretos como se estivesse em vigor no Brasil o DPI e não as normas claríssimas da nossa legislação, garantidoras dos direitos fundamentais da pessoa humana. Uma das discussões, tomada só para exemplo, se encontra no tema da menoridade penal: por que um menor, hoje com dezesseis anos idade, não responde criminalmente por um latrocínio cometido com crueldade perante o CP e o CPP, sujeitando-se ao Estatuto da Criança e do Adolescente? A razão, respondo eu, é que não temos um sistema nacional que atenda aos menores de 18 anos de idade que ofendem o Código Penal, remetendo-os às masmorras que atualmente os recebem. 

Há uma longa série de situações concretas em que nossa legislação penal já adotou medidas inspiradas nos princípios do DPI; e outra série de projetos de lei em curso no Legislativo, tendo claramente a mesma fonte inspiradora. 

Penso que já é hora de tomarmos consciência da extrema gravidade do risco representado pelo DPI. Talvez tenhamos, nos próximos dias, um debate no STF que poderá ser decisivo, abordando, penso eu, de maneira específica e genérica, princípios do DPI. Recorde-se que, no julgamento do Habeas Corpus 84.078, o Plenário do STF, em 5 de fevereiro de 2009, tendo como relator o Ministro Eros Grau, decidiu pela inconstitucionalidade da execução da sentença penal condenatória antes de seu trânsito em julgado, nos termos do princípio constitucional da presunção de inocência. Nada mais razoável, já que a Constituição Federal é muito clara ao dispor que, enquanto ainda houver recurso, a condenação não pode ser executada. No julgamento do HC 126.292, entretanto, o Plenário do Pretório Excelso, no dia 17 de fevereiro de 2016, por maioria de votos e sendo relator o Ministro Teori Zavascki, surpreendeu o mundo jurídico ao entender que a confirmação da sentença condenatória em segundo grau permite a execução da pena, contrariando preceito da Carta Magna e sua tranquila jurisprudência. Essa decisão peregrina, conquanto majoritariamente adotada pelo STF (sete votos a favor, quatro contrários), não tem efeito vinculante, dela podendo discordar qualquer juiz, de qualquer instância, como votou contra, abertamente, o Ministro Celso de Mello, que declarou textualmente: “trata-se de aplicação do Direito Penal do Inimigo” (HC 85.531, de 18.2.2016). 

Mais recentemente, no dia 1º de julho de 2016, mais uma vez o preclaro Ministro Celso de Mello tomou posição em sentido contrário à decisão colegiada de fevereiro, em decisão monocrática de grande alcance e repercussão, ao acatar um pedido de HC em favor de um réu que tinha sido condenado à prisão, por homicídio, em segunda instância do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O mandado de prisão foi, por essa decisão, suspenso. É provável que o mesmo caso vá a plenário e, sobre ele, mais uma vez, se pronuncie o STF, desta vez em caráter definitivo e vinculante. 

Penso que a razão está com o Ministro Celso de Mello. Ele foi e continua sendo muito criticado, na imprensa, por se ter posicionado contra a maioria de seus pares, o que, segundo alguns noticiários, perturba a tranquilidade do Judiciário. Também foi criticado porque sua decisão prejudicaria o bom andamento das investigações da Lava-Jato, investigações essas que vêm sendo acompanhadas simpaticamente pela maioria da população, a justo título indignada com a amplitude da corrupção na vida pública do País, em todos os seus níveis. Essa população está, também, indignada com a impunidade de criminosos ricos que, podendo dispor de hábeis advogados, conseguem protelar a execução de suas sentenças. 

Todas essas razões são verdadeiras. Mas razão maior tem o Ministro Celso de Mello. Jurista experimentado, ele vê com clareza todo o risco representado pela restrição do princípio sagrado da presunção de inocência até trânsito em julgado de sentença condenatória definitiva. E se o réu vem a ser absolvido em recurso posterior?

 

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