Princípio da presunção de inocência e o drama jurisprudencial

Valber Melo e Filipe Maia Broeto Nunes -

Há pouquíssimo tempo (23 de agosto) a revista eletrônica Consultor Jurídico noticiou que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, “concedeu um Habeas Corpus contra o cumprimento de pena imediatamente após a condenação em segunda instância”. Essa nova postura, no entanto, como se pretende demostrar no decorrer do presente texto, não implica, necessariamente, uma “mudança no entendimento” da corte suprema.

Para contextualizar, rememore-se que, em 17/2/2016, o Supremo Tribunal Federal, no bojo do “habeas corpus” 126.292/SP, deu uma (péssima e lamentável) guinada em sua jurisprudência — pacífica — e passou a admitir a famigerada execução provisória da pena, mesmo quando ausentes os requisitos de cautelaridade das prisões processuais, em evidente e insofismável violação ao postulado da presunção de inocência.

À época do ocorrido não foram poucas as vozes que criticaram veementemente o retrocesso levado a efeito pelo “Guardião da Constituição”. Alexandre Moraes da Rosa chegou a dizer, em tom bastante severo, que o posicionamento era um “retumbante erro histórico”.

Os subscritores do presente artigo, por sua vez, enfatizaram, naquela oportunidade, que o entendimento da suprema corte consubstanciaria uma verdadeira “mutação inconstitucional”, na medida em que, a despeito de não modificar o texto positivado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, alterava o sentido e alcance normativos da referida cláusula, a qual deveria ser, em tese, imutável.

De fato, como criticado na ocasião, a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal era (e continua a ser!) totalmente inconstitucional, porquanto extrapola insofismavelmente a teleologia da garantia da presunção de inocência e, na contramão da melhor doutrina, interpreta restritivamente direitos e garantias constitucionais, o quais, por coerência, deveriam receber maximização hermenêutica — e não o reverso.

O que se optou a chamar de “mutação inconstitucional” naquele momento é, doutrinariamente, conhecido como mutação constitucional exogenética. Sobre o tema, aliás, esclarecedores são os ensinamentos de Lécio José De Oliveira Moraes Vasques, o qual, citando o eminente constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, preleciona que:

“[...] o exegeta não deve extrapolar os limites interpretativos, valendo-se de elementos extra Constituição que contrariam o programa da norma Constitucional, sob pena de haver uma mutação constitucional inconstitucional, denominada mutação constitucional exogenética, a qual, por razões óbvias, deve ser rechaçada, para haver harmonia do sistema”.

Ora, foi justamente o que ocorreu no malfadado julgamento — e ainda está a ocorrer, frise-se —, no qual o plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de 7 votos a 4, em verdadeira extrapolação dos limites constitucionais, modificou a jurisprudência da Corte e “alterou” — pela via hermenêutica — o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, afirmando ser possível a execução provisória da pena depois de decisão condenatória corroborada em segunda instância, quando o texto constitucional é indubitavelmente em sentido oposto.

Contudo, a dar esperanças de que esse cenário turbulento está a passar, mais recentemente o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, consolidou seu entendimento acerca do tema em questão, deixando expressamente consignado que “a condenação só deve ter efeito de trânsito em julgado após decisão do Superior Tribunal de Justiça”.

Importante salientar que a manifestação do ministro Gilmar Mendes tem grande relevância, porquanto, ano passado, quando da virada jurisprudencial, o placar de votação do “habeas corpus” 126.292/SP havia sido “apertado” sobremaneira, de modo que tendência que se apresenta, com a mudança de opinião do predito ministro, é de que o resultado seja 6 a 5 para alterar a jurisprudência em relação ao início da execução de pena — sentido de vedá-la.

Impõe-se destacar, todavia, que, malgrado se “modifique a jurisprudência”, a alteração, provavelmente, “consolidar-se-á” nos moldes do voto do ministro Dias Toffoli — que ficara vencido no polêmico julgamento do ano passado —, segundo o qual a execução provisória somente seria permitida após a análise do caso pelo Superior Tribunal de Justiça, a corte cidadã.

Assim, na linha do raciocínio já esposado pelo ministro Toffoli, ainda no ano passado, encampado há pouco pelo ministro Gilmar Mendes, no bojo do “habeas corpus 146.815/MG”, o condenado em primeiro grau que tiver seu recurso de apelação improvido em segundo, não poderá, em tese, ser preso incontinente (ressalvada a hipótese de prisão cautelar), de vez que, na ótica dos retrocitados ministros, lhe seria assegurada mais uma via de discussão a impedir a malfadada execução provisória. A bem da verdade, na prática, tão somente será postergado o “despautério inconstitucional” anunciado, elevando-o à instancia posterior à segunda.

De admitir-se que, no caso concreto, o “novo posicionamento”, se implementado, trará melhoras. Porém, do ponto de vista dogmático, ainda continuará incompatível com o texto constitucional, o qual assegura, taxativamente, em seu artigo 5ª, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Data maxima venia, não há (tantas) razões assim para se alegrar, haja vista que a “mudança”, posto que favorável, continua a ser violadora de uma garantia constitucional “indene” de controvérsia.

Para fins de informação e complementos ao texto escrito pelos subscritores do presente à época do julgamento do habeas corpus 126.292/SP, destaca-se que houve quem argumentasse, naquela ocasião, na vã tentativa de justificar a “guinada da jurisprudência”, que o Brasil estaria na contramão dos países “desenvolvidos”. Usaram-se como parâmetro, em vez do direito brasileiro, ordenamentos jurídicos de países outros, tais como Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Espanha e Argentina.

Ocorre, contudo, que os ordenamentos jurídicos dos retrocitados países não servem (ou não poderiam servir!) de parâmetro para o direito brasileiro, porquanto, aqui, diferentemente do que ocorre nas prefaladas nações, há uma maior proteção ao acusado. É dizer, não se garante apenas o duplo grau de jurisdição, mas, sim, o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, consoante dispõe o inciso LVII, artigo 5º, da Constituição Federal.

Com efeito, algumas Constituições modernas — diferentemente do que ocorre com a Constituição Da República Federativa do Brasil, de 1988 — não estabelecem o momento final da presunção de inocência. No continente europeu, a título exemplificativo, o artigo 24.2, da Constituição Espanhola, de 1978, prevê que:

“[...] todos têm direito a um Juiz ordinário predeterminado pela lei, à defesa e à assistência de advogado, a serem informados da acusação formulada contra eles, a um processo público sem dilações indevidas e com todas as garantias, a utilizar os meios de prova pertinentes à sua defesa, a não prestar declarações contra si mesmo, a não se confessar culpado e à presunção de inocência”.

De igual modo, a Constituição Francesa, de 1958, declara adesão aos princípios da Declaração de 1789 que, no entanto, assegura que o “acusado é considerado inocente até ser declarado culpado”. Evidencie-se, entrementes, que em diplomas tais não se delimita qual o marco temporal de cessação da presunção de inocência.

Lado outro, porém, há Constituições que, à semelhança da Brasileira, garantem a presunção de inocência até o trânsito em julgado da condenação penal. É, por exemplo, o que ocorre com a Constituição italiana, de 1948, que, no artigo 27, comma 2º, assegura:

l’imputato non è considerato colpevole sino alla condanna definitiva”. O mesmo conteúdo foi adotado pela Constituição Portuguesa, de 1974, no artigo 32.2, que, entre as garantias do processo criminal, assegura: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.

Deveras, a Constituição Brasileira, de 1988, reforçando a presunção de inocência, seguiu os modelos italiano e português, dando efetividade máxima o compromisso do Estado Brasileiro com a preservação da dignidade da pessoa humana. Assim, indubitavelmente, independente do que digam os tribunais (nem sempre o Direito é o que eles dizem), para a garantia da presunção de inocência foi estabelecido, como marco temporal final, o momento derradeiro da persecução penal. O acusado tem, portanto, o direito que se presuma a sua inocência “até o trânsito em julgado” da sentença penal condenatória. Ou seja, até que se mostre incabível qualquer recurso.

Nesse contexto, é mais que evidente o equívoco por parte do ministro Luiz Barroso quando em seu voto, proferido no paradigmático “habeas corpus” 126.292/SP, asseverou que “nenhum país exige mais que do que dois graus de jurisdição para que se dê efetividade a uma decisão criminal”, argumentando, ainda, que “a conclusão de um processo criminal, muitos anos, mas muitos anos depois do fato, é incapaz de dar à sociedade a satisfação necessária”.

Em síntese, equívocos foram — e continuam a ser — cometidos. Todavia, o que se quer fazer, agora, é minimizar a falha implementada no multicitado julgamento, acolhida e aplaudida pela opinião pública, visando, com isso, o reestabelecimento, ainda que parcial, da já combalida garantia constitucional em questão.

À guisa de conclusão, assevera-se que, não obstante o anseio da corte suprema em rever o erro cometido no bojo do “habeas corpus” 126.292/SP que, mesmo não gozando juridicamente de efeito “erga omnes”, abriu trágico precedente e “autorizou” prisões automáticas e sem qualquer respaldo legal, há de se admitir que, conquanto se adote a posição de que a execução provisória da pena só poderá ser admitida após o julgamento pelo STJ, o entendimento do Supremo Tribunal Federal continuará, ontologicamente, contrário ao texto constitucional, malgrado seja, admita-se, “menos pior”.

 

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