PROTAGONISMO DO DELEGADO DE POLÍCIA NA COLABORAÇÃO PREMIADA: POSIÇÃO CONTRÁRIA

Arthur Pinto de Lemos Jr. -  

A questão é atual e surge em razão da presidência da investigação policial por parte do Delegado de Polícia, nos termos do artigo 144, incisos I e IV, da Constituição Federal, e artigo 6° e seguintes do Código de Processo Penal. De acordo com tais normas, a autoridade policial deve apurar com liberdade e, sobretudo, independência as práticas criminosas de ação penal pública. 

Quando o delito é cometido por organização criminosa, surge a possibilidade de o Investigado, acompanhado por seu Defensor, querer estabelecer, desde logo, o compromisso de colaborar com a investigação para, em contrapartida, receber benefícios legais. Daí necessário verificar se a autoridade policial tem legitimidade e atribuição para representar e estabelecer as condições desse Acordo de Colaboração Premiada. A Lei n° 12.850/2013 trata dessa questão: 

O artigo 4°, § 2o, prevê a possibilidade do representante do Ministério Público (MP) e o Delegado de Polícia, nos autos do inquérito policial, representarem pela concessão da Colaboração Premiada: “Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)". Ainda, o § 6°, artigo 4°, prevê que “o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor”. 

Tais regras devem ser interpretadas de acordo com as normas e princípios constitucionais. A negociação e o Acordo de Colaboração Premiada por parte da autoridade policial, tem  natureza processual e provoca reflexo direto na condução e no deslinde da ação penal. Essa atribuição à autoridade policial contraria a titularidade da ação penal pública conferida ao MP pela Constituição (artigo 129, inciso I), a exclusividade do exercício de suas funções e a função constitucional da polícia restrita à função de órgão de segurança pública (artigo 144, especialmente parágrafos 1º e 4º). É que o ordenamento jurídico processual penal constitucional brasileiro adotou o sistema acusatório, por meio do qual os sujeitos processuais têm funções materiais e formais diversas. Ao MP cabe a função de participar da investigação criminal, por si ou com a Polícia Judiciária, e oferecer, se o caso, a acusação; enquanto o Magistrado fica alheio à atividade investigatória e dela participa apenas para apreciar medidas investigatórias restritivas aos direitos e à liberdade do Investigado. 

Como decorrência desse sistema acusatório, cabe ao MP, e só a ele, fixar o objeto da ação penal no instante da promoção da acusação, como pressuposto à atividade jurisdicional, de sorte que o Poder Judiciário só pode conhecer os fatos e julgá-los nos estritos limites antes gizados na peça acusatória. A Polícia Judiciária, nem indiretamente, pode assumir parte desse papel, pois atua apenas na fase pré-processual. 

Não foi a toa que o §6° do artigo 4° da Lei n° 12.850/13 estabeleceu que, na elaboração do acordo de colaboração premiada não deve haver a interferência do Juiz. Trata-se de regra coerente com o princípio acusatório do processo penal brasileiro. O Juiz é parte estranha no Termo de Acordo de Colaboração Premiada, embora seja ele quem homologue o referido documento, depois de avaliar sua formalidade. 

Com efeito, a importância da adoção do sistema acusatório funciona como “uma declaração de indiscutível conteúdo prático-normativo que vale por todo um programa processual penal e que respeita, muito concretamente, aos direitos, liberdades e garantias do cidadão” (DIAS, Jorge Figueiredo, “A nova Constituição e o processo penal”, Revista da Ordem dos Advogados 36, 1976, p. 105). É, de fato, uma estrutura que sustenta, como pilar fundamental, uma Justiça democrática e, para além de possibilitar a estrutura necessária para a incidência de outros princípios básicos do Estado de Direito Democrático, permite e exige do MP, concretizar sua função de defensor da legalidade democrática (artigo 127 da CF). Foi, inclusive, com essa linha de argumentação que o Procurador-Geral da República interpôs ação direta de inconstitucionalidade, à vista dos dispositivos acima transcritos, perante o Supremo Tribunal Federal – ADIN 5508. 

À vista dessa interpretação teleológica dos dispositivos da Lei n° 12.850/13, não pode a Polícia Judiciária e/ou a Polícia Federal firmar Termo de Acordo de Colaboração premiada com o Investigado. Como preside a investigação policial, inclusive sobre criminalidade organizada e, em muitas delas, o MP só se envolve após a conclusão do inquérito policial, inegável reconhecer a possibilidade de a autoridade policial poder registrar no interrogatório policial o interesse do Investigado, e sua Defesa, em firmar o Acordo de Colaboração Premiada; e, nestes termos, representar para que o MP negocie as condições e, se o caso, elabore o Termo de Acordo para que o Judiciário, ao final do processo crime, conceda um dos benefícios previstos na Lei n° 12.850/2013. A necessidade de assegurar ao Investigado a possibilidade de eleger a Colaboração Premiada como viável estratégia de defesa precisa ser acolhida no seio da investigação policial, mas quem negocia, conclui os termos do Acordo de Colaboração Premiada e representa ao Judiciário para a devida homologação é o MP. 

Como a titulariedade da ação penal pública é do MP, e como o processo penal brasileiro está fincado no sistema acusatório, a elaboração do Termo de Acordo com o Colaborador e sua Defesa só pode ser ajustado pelo Promotor de Justiça – ou Procurador da República, no âmbito federal. Em homenagem ao devido processo legal, não se pode acordar sobre aquilo que não se tem o controle e o domínio. A autoridade policial não participa e não se envolve na ação penal. O STF já decidiu que a Polícia Judiciária deve fundamentar a convicção do Ministério Público, exatamente por ser este quem vai estabelecer se a ação penal vai ou não existir; e se existir, qual será seu objeto e limite de imputação. De fato, “o modo como se desdobra a investigação e o juízo sobre a conveniência, a oportunidade ou a necessidade de diligências tendentes à convicção acusatória são atribuições exclusivas do Procurador-Geral da República (Inq 2913-AgR, Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, Tribunal Pleno, DJe de 21-6-2012), mesmo porque o Ministério Público, na condição de titular da ação penal, é o verdadeiro destinatário das diligências executadas (Rcl 17649 MC, Min. CELSO DE MELLO, DJe de 30/5/2014) - STF. Plenário. Petição 5.260/DF. Rel.: Min. Teori Zavascki; 6/3/2015, decisão monocrática. DJe 46, 11 mar. 2015.”. 

Se o Delegado de Polícia ajustar o Acordo de Colaboração Premiada com o Investigado e seu Defensor, e propõe ao Juiz os benefícios legais, pode haver grave insegurança jurídica. O titular da ação penal pode não concordar e deixar de honrar o ajuste estabelecido em solo policial, mesmo que o Magistrado concorde com a proposta. Conclusão: a decisão sobre a concessão da imunidade penal, ou a fixação de redução da pena, ou do regime de cumprimento da sanção, ou, ainda, a concessão do perdão judicial, deve ser objeto de análise e proposta pelo titular da ação penal, o MP. E só por ele. 

 

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