PROTAGONISMO DO DELEGADO DE POLÍCIA NA COLABORAÇÃO PREMIADA: POSIÇÃO FAVORÁVEL

Geovane Moraes -  

Uma das indagações que mais recebo dos meus alunos é se  o Delegado de Polícia pode  propor  colaboração premiada nas investigações relativas às organizações criminosas? 

Antecipadamente rogo escusas, mas não farei uma análise mais pormenorizada dos dispositivos normativos inerentes ao tema, constantes na lei 12.850/13 – que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. 

Busquemos uma observação mais hermenêutica. E para tal, entendo ser imperativo três análises prévias. 

A primeira diz respeito à natureza da atividade do delegado de polícia. 

As autoridades de polícia judiciária podem e devem ser reconhecidas como membros efetivos e relevantes da persecução criminal na sua fase pré-processual, funcionando na grande maioria das vezes como primeiro filtro;  e, por vezes, único,  de análise jurídica da situação delituosa. 

Investigar faz parte da sua natureza. Produzir instrumentos probatórios, uma de suas finalidades. E são exatamente estes instrumentos probatórios, produzidos durante toda a fase inquisitiva, que servirão de esteio para o oferecimento da denúncia e de sustentáculo de toda a ação penal. 

O que se produz na fase de Inquérito Policial por inúmeras vezes ecoa até os umbrais do Pleno do Supremo Tribunal Federal.  Os Delegados de Polícia deparam-se com a pedra bruta e disforme dos pretensos ilícitos e precisam entregar a forma delimitada, precisa, técnica, dos fatos e de sua autoria. O trabalho braçal e a percepção de nuances devem constar em seu relatório.  Logo, as ferramentas que os mesmos precisam dispor devem ir do martelo, que permite quebrar a pedra e observar as camadas internas, ao cinzel, que o ajudará na delimitação dos detalhes.

A segunda análise que entendemos necessária  refere-se ao claro objetivo da lei 12.850/13. Aqui caro leitor da Carta Forense, reservemo-nos a observação do elementar. 

Organizações Criminosas representam hoje o que existe de mais bem estruturado em termos de criminalidade. Divisões e especializações de atividades, estrutura organizacional, controle interno eficiente, atuação transnacional, utilização de elaboradas ferramentas de transações financeiras, dentre outros elementos, são características inerentes a estas organizações. 

E por que isso acontece? 

Basicamente por um motivo: dinheiro. 

Tais organizações não são constituídas por meliantes comuns. Na verdade, os integrantes de organizações criminosas, precisam possuir, como pré-requisito essencial de ingresso, uma destas três características: 

- poder econômico, que permita financiar as atividades da organização até que ela possa se manter com os ganhos ilícitos de sua atividade; 

- poder político, que abra portas e facilite a atuação da organização em esferas estatais só acessíveis a detentores de cargos públicos ou funcionários de alta hierarquia do ente administrativo; 

- Profunda especialização da atividade que desempenha, como o que acontece, por exemplo, com os doleiros ou operadores financeiros que conseguem movimentar quantias nababescas à margem da percepção dos órgãos de fiscalização e controle. 

E qual seria o prêmio em ser aceito? 

Vantagem patrimonial e pessoal, auferidas em uma velocidade e dimensão que nenhuma atividade lícita seria capaz de proporcionar. 

Os integrantes das organizações criminosas não distinguem bandeiras, partidos, vocações políticas, projetos de nação, nada disso. Eles buscam ganhar dinheiro. E, se possível, auferir o máximo de poder que este dinheiro possa proporcionar. 

A terceira e última reflexão é decorrente da junção das duas primeiras. 

Aos delegados de polícia designados para investigar e reprimir a atuação de organizações criminosas é dada uma missão hercúlea. 

Na normalidade da sua atuação, por vezes, já é difícil desempenhar a função de artífice que recebe a pedra bruta e disforme e, após os trâmites da fase inquisitorial, entrega esculpido o relatório que permite vislumbrar todas as formas da materialidade, autoria e circunstâncias de uma prática criminosa. 

Ao investigar as organizações criminosas, essa dificuldade se multiplica por inúmeras vezes. Aqui, as condutas delituosas são praticadas, como já colocamos, por pessoas que operando em conjunto possuem dinheiro, poder político e um profundo conhecimento e especialização das atividades a serem realizadas. 

O dinheiro corrompe. O poder acoberta. A especialização dissimula. 

O combate precisa ser especializado e as ferramentas adequadas. Inequivocamente, uma das mais eficientes nestes casos é a Colaboração Premiada. 

E por quê? 

Existe um ponto extremamente vulnerável em qualquer organização criminosa. Justamente a motivação pessoal de seus membros. Quem age em busca de lucro – econômico e/ou pessoal – normalmente só é fiel a uma pessoa. Ela mesma.

Além disso, em regra, os integrantes de uma organização possuem plena consciência que sua atuação não será ad eternum. Eles tentarão estender o máximo possível, mas sabem que um dia a estrutura desmorona. 

Neste momento, eles continuarão usando a lógica que sempre se valeram na organização. O ganho pessoal. 

Já que a estrutura está desmoronando, como posso não ser soterrado pelos escombros?   

Uma das formas é adequando-se à colaboração premiada. 

E quando normalmente essa sensação de preservação do criminoso é mais proeminente? 

Nos instantes iniciais que ele percebe que suas atividades ruíram. E isso acontece indubitavelmente na fase de investigação policial. 

Neste momento os Delegados de Polícia precisam do cinzel da delação para conseguirem desempenhar sua difícil tarefa. O delator quer uma vantagem. As autoridades buscam desarticular toda atuação da organização criminosa, fazer cessar suas atividades, recuperar o máximo possível de recursos e afastar da vida política e empresarial quem se vale de estratagemas criminosas que ofendem a nação como um todo. 

Propor o acordo de delação premiada neste momento, por vezes, é o mais eficiente mecanismo que as autoridades de polícia judiciária terão para desempenhar sua missão constitucional. 

Mas isso não seria usurpar prerrogativas do Ministério Público? Permitir que os Delegados trabalhassem sem controle jurisdicional, criando situações jurídicas que se replicariam ao longo de todo processo? 

Com vênias antecipadas a todos que pensam de forma contrária, ouso entender que não. Permitir aos Delegados de Polícia propor acordos de colaboração premiada não significa usurpar funções do Ministério Público, mas sim valer-se de um mecanismo que permitirá ao Delegado fornecer ao Parquet, efetivo e primário titular da ação penal, uma plêiade de instrumentos probatórios e de convicção muito mais bem elaborados e delimitados para que este possa intentar a denúncia. 

A atividade policial não é antagônica à atuação do Ministério Público. Na verdade, quando bem feita é um mecanismo facilitador do exercício da legitimidade processual do Parquet no combate às organizações criminosas. 

Propor acordo de colaboração premiada não significa que o Delegado de Polícia estaria atuando sem nenhum tipo de controle jurisdicional. Aqui, basta a aplicação do que dispõe taxativamente o art. 4o. da Lei 12.850/13.  Todos os acordos propostos pelas autoridades policiais devem ter a manifestação do ministério público e, claro, o deferimento do magistrado. 

O Delegado observa na investigação a oportunidade e conveniência da colaboração para a persecução criminal como um todo. Propõe o acordo para aproveitar-se deste ponto de fragilidade da organização criminosa. O colaborador demonstra interesse. O Ministério Público é chamado a se manifestar, podendo propor ajustes ou até mesmo rejeitar o acordo. E ao final, tudo é submetido à apreciação do magistrado. 

Essa parece-me ser a aplicação mais salutar e eficiente do instituto da colaboração premiada em face da atuação policial.

 

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