Regime semiaberto e tirania judicial

 Luiz Flávio Gomes -

Réu com direito legítimo ao regime semiaberto (mais brando) não pode ficar no regime fechado (mais gravoso). Se você pertence a uma tabela “X” (menos severa) no imposto de renda, jamais pode o fisco cobrar de você impostos com base na tabela “Y” (mais severa). Se você tem uma casa num bairro pobre, jamais pode a Prefeitura cobrar IPTU como se seu imóvel fosse em uma zona rica. Se você faz uma doação de milhões e a alíquota é de 4%, jamais pode o poder público cobrar a alíquota de 10% ou 20%. Se você tem uma propriedade produtiva, jamais pode o Governo promover sua desapropriação para fins de reforma agrária. São regras elementares do Estado de Direito (que, quando quebradas, desmoronam a confiança na lei).

Quando os réus do mensalão (gente com status), condenados por criminalidade organizada cleptocrata (roubalheira do dinheiro público por quem governa o Estado, por quem pertence às classes dominantes ou reinantes), porém, com direito ao regime semiaberto, foram parar no regime fechado, por decisão de Joaquim Barbosa, o ministro do STF, Marco Aurélio, afirmou: “Isso é impensável; trata-se de decisão desfavorável para o condenado, que não pode arcar com a ineficiência do Estado, por falta de aparelhamento”. Solução sensata aventada pelo ministro: o paciente deverá cumprir pena no regime aberto até que sobrevenha estabelecimento penal adequado ou a vaga (que não existem por negligência do poder público).

Quem faz jus ao regime semiaberto e, por decisão judicial, continua no regime fechado (mais severo), é vítima de uma tirania judicial (pouco importando se é negro ou branco, rico ou pobre, das classes dominantes ou das classes dominadas, da classe reinante ou da patuleia oprimida).

O art. 185 da Lei de Execução Penal é muito claro: “Haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares”. A regra é cristalina. Só não a vê o grupo minoritário de juízes tirânicos, aculturados consoante a forma mentis inquisitiva e o direito penal dos senhores de engenho, que não a querem enxergar.

Montesquieu (secundado por Beccaria – veja nosso livro Beccaria, 250 anos) já dizia que toda pena desnecessária ou excessiva é despótica. Há ilegalidade gritante e berrante, passível de habeas corpus e inclusive indenização civil, quando o réu, com direito ao semiaberto, continua recolhido no regime fechado, por falta de vaga ou inexistência do estabelecimento penal adequado (e tudo por ineficiência do Estado).

Na democracia, nada contribui mais para a falta de confiança na legalidade – e, em consequência, para o desmoronamento do Estado de Direito - que o descumprimento da lei por ato intencional e caprichoso do juiz. Barbárie é o nome do fenômeno. Em países periféricos e atrasados (como o Brasil, que é rico e ocupa a vergonhosa posição de número 79 no IDH) é mais comum que alguns grupos minoritários de juízes (pela sua formação ideológica) não percebam que em matéria de cobrança de impostos, de respeito à propriedade com sua função social e de liberdade das pessoas, tanto o Estado como o Estado-juiz só pode agir dentro da legalidade absolutamente estrita, não podendo dela fugir por nenhum pretexto.

A História revela que com os excessos do poder estatal não se brinca. Isso é assim, nos países avançados, desde 1215, quando os nobres impuseram a Magna Charta ao Rei João Sem Terra. As leis estabelecidas, sobretudo nessas áreas, valem irrestrita e igualmente para todos; não podem jamais ter aplicação classista, racista ou preconceituosa. Direito conquistado legitimamente é direito, que o juiz, se não quer ocupar o reinado do despotismo, tem obrigação constitucional e moral de reconhecer, pouco importando a qualidade, a raça, a cor, o sexo ou o status do condenado. O mais deplorável dos vícios de um Estado democrático consiste na existência de juízes tomados pela cegueira deliberada do preconceito (racista ou classista).  

A barbaridade e excentricidade de não respeitar a lei que fundamenta o direito ao regime semiaberto está sendo convalidada por um grupo minoritário de juízes convicta ou incidentalmente torquemadas (Torquemada foi o Procurador Geral da Inquisição na Espanha, no final do século XV). Essa grave e repugnante anomalia, que significaria a imediata suspensão do juiz em países civilizados, está ocorrendo em duas situações: (a) milhares de réus estão no regime fechado mesmo depois de terem cumprido o tempo legal necessário bem como outros requisitos legais para a progressão ao regime semiaberto; (b) outras centenas de réus já são condenados inicialmente ao regime semiaberto e continuam aguardando vaga no regime fechado. O assunto merece uma Súmula Vinculante, que está sendo discutida no STF.

No dia 12/3/15 o STF discutiu a elaboração de uma nova Súmula Vinculante (n. 57), por proposta da Defensoria Pública Geral da União, apoiada pela Conectas e várias outras entidades de defesa dos direitos humanos, que teria o seguinte teor: “O princípio constitucional da individualização da pena impõe seja esta cumprida pelo condenado em regime mais benéfico, aberto ou domiciliar, inexistindo vaga em estabelecimento adequado, no local da execução”.

O ministro Ricardo Lewandowski disse entender que o desrespeito à orientação de se admitir o regime aberto diante da inexistência de vaga no regime semiaberto caracteriza inegável constrangimento ilegal.  O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, manifestou-se em sentido contrário à edição da Súmula. No entendimento do procurador, a súmula viola o princípio da legalidade e da isonomia. Isso porque, segundo ele, podem ocorrer situações de presos, em uma mesma categoria, cumprirem penas em estabelecimento prisional e outros em prisão domiciliar. Essa injustiça, no entanto, não é maior que a de deixar um preso com direito ao regime semiaberto em regime fechado. Aqui também se viola a legalidade e a isonomia, porque vários presos com o mesmo direito (semiaberto) estão em estabelecimento adequado, enquanto outros continuam em regime excessivo, abusivo e mais severo (regime fechado).

 

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