Regras informais do Sistema Penal

 José César Naves de Lima Júnior -  

Diversos institutos jurídicos no Brasil são introduzidos no sistema penal através de reformas legislativas que procuram a toda evidência assegurar os direitos fundamentais do cidadão e imprimir maior eficiência ao processo de pacificação social de conflitos, além da ressocialização. Como exemplos, aponta-se o sistema progressivo no cumprimento de penas, medidas de segurança, violência doméstica e familiar disciplinada por estatuto próprio, videoconferência, processo virtual digital e recentemente as audiências de custódia, dentre outros. Neste particular, constata-se que possuem um traço em comum, o distanciamento da realidade local. 

O Brasil é um país de dimensões continentais constituído por várias regiões, estados e municípios com realidades distintas, e não raras vezes contrastantes. Demais disso, o país enfrenta uma forte crise política e econômica, principalmente de representatividade, talvez a maior de sua história, o que possivelmente contribui para agravar o problema da segurança pública. De sorte, o conhecimento alternativo proveniente da práxis, a realidade local, e a forma de produção do saber fornecem experiências que poderão conduzir a uma nova dogmática independente daquela produzida nos centros hegemônicos, mas compatível e necessária ao controle do fenômeno criminal existente no país. Epistemologias importadas sem adaptação ou compatibilidade com a sociedade brasileira, ao invés de auxiliarem no enfrentamento da criminalidade, pioram a situação.    

Longe de suscitar o debate quanto à pertinência e acerto de determinados institutos, este articulista pretende chamar atenção para o regramento informal que inevitavelmente surgirá ao seu lado, produzindo efeitos diversos do esperado pelo legislador e corpo social. Em vigor, qualquer lei ganha vida própria, pois além de estar à mercê do processo exegético de juristas e operadores do direito, caberá ao mundo circundante moldar seu verdadeiro perfil, pois não é a realidade que se adapta ao direito, mas sim o contrário. Os regimes semiaberto e aberto na maior parte do Brasil nunca conseguiram seguir a moldura descrita na Lei de Execuções Penais, sendo substituídos por regimes adaptados, próximos da diretiva legal, como prisão domiciliar, e agora pelo monitoramento eletrônico através de tornozeleiras. Daí se vê que muito pouco auxiliam no processo de reinserção social, a ensejar estudos sobre a possibilidade de alteração de suas condições, o que de fato já acontece na prática. 

As medidas de segurança destinadas ao louco infrator repetem o drama, pois diante da falta de estrutura do Estado, na modalidade detentiva obriga os tribunais a permitirem, em alguns casos excepcionais, seu cumprimento em cadeias, presídios, enfim, em locais inadequados que desvirtuam sua finalidade terapêutica.    

As regras informais estão presentes em qualquer ordenamento jurídico, no entanto, não devem sobrepor-se a ponto de deturpar institutos e produzir efeitos nocivos ao destinatário final do regramento; a sociedade. Pode-se dizer que existem dois Direitos enquanto sistema, o primeiro no sentido ideal, no plano abstrato, da metafísica, e outro na esfera do empirismo, da realidade material que certamente prevalecerá sobre aquele dentro de certos limites devido a sua adaptação aos casos concretos. É natural que um instituto jurídico ao ser aplicado adquira contornos próprios advindos da prática forense, todavia, não deve se afastar de sua essência e subverter o funcionamento e eficiência da ordem jurídica. Assim, e exemplificando, não se discute a relevância das audiências de custódia, mas resta perscrutar se existe efetivo policial e agentes penitenciários suficientes para esse procedimento, sem falar dos gastos elevados com viaturas, combustível, escoltas, criação de varas e promotorias, isto é, de todo o aparato responsável pelo controle social, além de pautas de audiências conturbadas aguardando a devida prestação jurisdicional de mérito. 

Com a nova sistemática a segurança pública poderá ser ainda mais fragilizada, mormente nas cidades do interior em que as condições de trabalho das polícias e agentes penitenciários são precárias, principalmente porque parte do material humano deverá ser deslocado para a realização destes atos procedimentais, ressaltando que na atualidade as pequenas cidades tem sido alvo constante de ações criminosas, como assaltos a bancos, furtos a caixas eletrônicos e outros crimes devido ao sucateamento do aparato de segurança pública no Brasil, e fatores sociais.  

Embora as audiências de custódia estejam previstas como um direito fundamental positivado na Carta Política, sua regulamentação deveria ser feita cum grano salis, isto é, com cautela e sem se descuidar de outros direitos fundamentais, como a segurança pública - direito social de essência fundamentalista. E aqui não se discute a forma de regulamentação (lei federal ou provimento dos tribunais), pois esta reflexão tem como foco o regramento informal e possíveis desdobramentos. Conquanto sejam louváveis os compromissos internacionais sobre os direitos humanos que certamente deverão encontrar-se positivados nos textos constitucionais dos países signatários, por outro lado, antes de serem firmados e ingressarem no ordenamento doméstico, seria importante a participação do povo no processo reformista, que dele sofre as consequências diretas. 

Portanto, para se construir um sistema jurídico-penal funcionalista ou eficientista que possa tutelar os direitos de liberdade e dignidade da pessoa humana como fundamentos primordiais da ordem política e da paz social, é preciso, antes de tudo, repensar a forma de produção legislativa no âmbito criminal e sua introdução no ordenamento que não devem ignorar a realidade e estrutura existentes no Brasil - fontes das regras informais que podem comprometer o sucesso de uma série de institutos jurídicos relevantes adotados no país. 

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