UMA LUPA NO VOTO DO MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO NO HC 152.752

Andrei Zenkner Schmidt e Guilherme Boaro -  

  1. Um raciocínio lógico só é válido se suas premissas são logicamente sustentáveis. Muito já se disse sobre o julgamento do HC 152.752 pelo STF. Esse é um dos temas, aliás, que parece não termos mais o que discutir, mas, sim, decidir. Nosso propósito não será referir argumentos prós ou contra a execução antecipada da pena, ou mesmo tentar demonstrar as contradições (e são muitas, gize-se) das linhas retóricas que ampararam todos os votos proferidos naquele julgamento. Nossa atenção está direcionada à análise crítica e detalhada de alguns dados fáticos apontados no voto do ministro Luís Roberto Barroso para justificar aquilo que denominou “mutação constitucional”. 

O ministro, fazendo uso de uma argumentação refinada e inteligente, iniciou sua fala descrevendo sete casos paradigmáticos supostamente aptos a ilustrar as razões que teriam levado à “mutação constitucional” de 2016 (leia aqui). Esses sete casos paradigmáticos teriam o condão de contextualizar o porquê da superação do entendimento jurisprudencial vigorante a partir de 2009 (proibição de execução antecipada da pena), notadamente porque caracterizariam: “a) poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios; b) reforço à seletividade do sistema penal, tornando muito mais fácil prender menino com 100 gramas de maconha do que agente público ou privado que desvie 100 milhões; c) descrédito do sistema de Justiça penal junto à sociedade, pela demora na punição e pelas frequentes prescrições, gerando enorme sensação de impunidade”. 

A linha argumentativa adotada pelo ministro Barroso pode ser aceita como legítima se, e somente se, (i) os casos fáticos por eles citados retratam exemplos reais em que a morosidade operou-se na instância extraordinária, (ii) a instância ordinária (iniciada com o dever de persecução penal surgido na data do crime e esgotada com o encerramento da jurisdição nos TJs ou nos TRFs) não contribuiu decisivamente para essa morosidade e (iii) os casos fáticos por ele citados não possuem outros fatores determinantes para a morosidade.

Se uma ou mais dessas premissas não estiverem presentes nos sete casos paradigmáticos por ele citados, então o voto perderá, total ou parcialmente, sua legitimidade lógico-argumentativa, ou porque se baseia em substrato material fático incompatível com a argumentação, ou porque o ministro deveria buscar outros casos processuais aptos a justificar suas conclusões. Não se examinará, nas linhas que seguem, o restante da argumentação jurídica que constou no voto.

  1. Fatos e fotos 

Alguém disse certa feita: “Contra fatos não existem argumentos”. Pensamento próprio do positivismo filosófico, a observação busca justificar que o objeto condiciona o sujeito, que os fatos detêm aptidão autônoma de significado. Não são necessárias mais do que duas ou três linhas para essa suposição ser facilmente superada. Não existem fatos, mas, sim, versões. Tudo que é dito é sempre dito por um observador (Maturana).

O voto proferido pelo ministro Barroso citou sete casos processuais paradigmáticos para justificar suas conclusões. Aparentemente, os sete casos guardariam coerência intrínseca com suas conclusões, pois efetivamente tratam de situações processuais em que a realização da justiça tardou. Mas tardou por quê?

Na condição de advogados, ficamos muito surpresos com a argumentação do ministrp Barroso. Ficou a impressão de que nós, advogados (talvez não todos, mas, sim, os “maus” advogados, aqueles que utilizam recursos protelatórios), somos os responsáveis pela jurisdição morosa. Malditos advogados que impedem a realização da justiça! Esse é o sentimento popular que repousa, atualmente, sobre nossa atuação. Quem advoga na área criminal sabe muito bem do que estamos falando.

Pois bem. Examinamos em detalhe os sete casos mencionados. Abaixo, consta exposição circunstanciada de cada um deles, cujos dados foram obtidos a partir de pesquisa de movimentação processual pública relacionada a cada um dos processos. Ao final, iremos demonstrar que os dados fáticos dos casos citados pelo ministro Barroso não corroboram, em conjunto, as suas conclusões. Pelo contrário, atestam que na maior parte dos processos, a morosidade da jurisdição ocorreu por causa da atuação das instâncias ordinárias e/ou por razões não relacionadas a atos de defesa. Aos dados:

  1. “O caso do jornalista” 

3.1. Detalhamento da tramitação: trata-se do fato envolvendo Pimenta Neves e o homicídio de Sandra Gomide. O crime ocorreu em 20/8/2000. A denúncia foi oferecida em 28/8/2000. O júri realizou-se no dia 5/5/2006. A apelação, distribuída em 5/7/2006, foi julgada em 26/12/2006. O recurso especial, distribuído em 11/12/2007 (REsp 1.012.187), foi julgado em 2/9/2008. Contra o acórdão, a defesa manejou embargos declaratórios em 22/10/2008, julgados em 11/12/2008. Os autos foram, então, remetidos ao STF, para exame do recurso extraordinário, que subiu via agravo de instrumento (AI 795.677). O recurso foi distribuído em 12/4/2010 e julgado em 24/5/2011, com expedição de ordem de prisão. Essa decisão foi publicada em 10/10/2011. Não foram interpostos embargos declaratórios. 

Da análise dos 11 anos de tramitação entre o fato e a prisão, pode-se perceber que a instância ordinária foi a responsável pela maior morosidade do caso. Ao todo, foram mais de seis anos de tramitação (entre 2000 e 2006), sendo que boa parte desse período transcorreu em 1º grau de jurisdição. Os recursos especial e extraordinário foram julgados em quatro anos (entre 2007 e 2011). A defesa ingressou, ao todo, com um recurso especial, um embargo declaratório e um agravo de instrumento.

3.2. Conclusão: o caso, portanto, contradiz a conclusão do ministro. Não houve a interposição de recursos protelatórios. A maior demora ficou a cargo da jurisdição de 1º grau. A tramitação dos recursos no STJ e no STF, embora pudesse ser mais ágil, seguiu os padrões temporais normais. Digno de menção, ainda, que o STF demorou quase cinco meses para publicar o acórdão que julgou o recurso extraordinário. Eis a representação gráfica do caso:

  1. “O caso do senador” (ex-senador Luiz Estevão de Oliveira Neto)

4.1. Detalhamento da tramitação: a ação penal tramitou na 1ª Vara Federal Criminal de SP (2000.61.81.001198-1) contra quatro réus. Os fatos teriam ocorrido em 1992. A ação penal só foi proposta pelo Ministério Público Federal em fevereiro de 2000, julgada em 26/6/2002. No mérito, absolutória em relação a Luiz Estevão. O processo chegou ao TRF da 3ª Região em 10/10/2005 (0001198-37.2000.4.03.6181). Em 3/5/2006, o TRF da 3ª Região julgou as apelações, reformando a sentença absolutória contra Luiz Estevão para condená-lo a penas de 31 anos de reclusão. As defesas e o parquet manejaram embargos de declaração, julgados em 27/11/2006. Os recursos especial e extraordinário foram distribuídos em 31/1/2007. A decisão que não admitiu os recursos foi proferida em 19/6/2007. Em 29/1/2009, foram interpostos agravos de instrumento contra as decisões denegatórias, distribuídos no STJ em 15/4/2009. Em 17/12/2009, os agravos de instrumento foram providos para que os recursos especiais fossem remetidos à corte (AIs 1.141.033/SP, 1.140.482/SP e 1.140.485/SP). Em 16/3/2010, os recursos especiais foram autuados (REsp 1.183.134/SP), sendo julgados em 21/12/2012. Opostos embargos declaratórios, julgados em 7/5/2013. No STJ, o feito teve, ainda, uma tramitação com diversas medidas de impugnação interpostas pelas defesas, tais como agravo regimental, novos embargos declaratórios e outro recurso extraordinário. O processo só fora encaminhado ao STF em 10/11/2014 (ARE 851.109). Em 10/6/2014, o STF concedeu Habeas Corpus (HC 118.856) anulando o processo em relação a um dos réus (José Eduardo Ferraz). O agravo improvido em 7/6/2015. Embargos de declaração providos sem efeito modificativo em 26/8/2015. Agravo regimental improvido em 9/12/2015. Em 23/2/2016, comunicado o julgamento ao juízo de origem. Em 7/3/2016, expedido o mandado de prisão.

Da data do crime até o esgotamento da instância ordinária, transcorreram 17 anos (de 1992 a 2009). Desse interregno, é importante salientar que a ação penal foi proposta apenas em 2000, ou seja, em razão da morosidade do inquérito policial (não localizamos o tempo de duração do IPL) e/ou pelo conhecimento tardio das infrações penais, o caso permaneceu por oito anos sem prestação jurisdicional. Outro dado que chama a atenção é que a jurisdição do STJ só iniciou (na análise do REsp) em abril de 2009, ou seja, o TRF da 3ª Região demorou dois anos e cinco meses para examinar a admissibilidade dos recursos especiais e extraordinários, bem como para processar os agravos de instrumento interpostos pelas partes. Do início da jurisdição do STJ (abril de 2009) até a expedição dos mandados de prisão (março de 2016), transcorreram quase sete anos. Nesse período, a defesa dos réus manejou um número significativo de recursos criminais, alguns deles providos (inclusive com uma nulidade flagrante reconhecida pelo STF em relação a um dos réus).

4.2. Conclusão: transcorreram 24 anos entre a data do fato (1992) e a data da prisão (2016). Do total, oito anos entre a data do fato e a propositura da ação penal, nove anos entre o recebimento da denúncia e o início da jurisdição do STJ, e sete anos entre o início da jurisdição do STJ e a expedição dos mandados de prisão. Esses dados também contradizem a argumentação do ministro Luís Roberto Barroso — no sentido de que a jurisdição do STJ e do STF seria decisiva para o “descrédito do sistema de Justiça Penal” —, pois 70,8% do tempo de tramitação do caso deveu-se à condução pelas instâncias ordinárias, ao passo que 29,1% do tempo foi gerenciado pelo STJ e STF. Abaixo, o gráfico da tramitação processual do caso:

  1. “O caso do jogador de futebol”

5.1. Detalhamento da tramitação: trata-se do episódio relacionado ao jogador Edmundo. O caso ocorreu em 2/12/1995. A denúncia foi oferecida em 10/1/1996 (Processo 0011275-80.1996.8.19.0001). Sentença condenatória em 5/3/1999. Apelação interposta em 11/3/1999, julgada pelo TJ-RJ em 5/10/1999. O recurso especial interposto no TJ-RJ foi distribuído no STJ em 7/2/2001 (REsp 302.636), sendo julgado pela 6ª Turma em 24/6/2003. A publicação ocorreu somente em 19/12/2003, quase seis meses após a decisão. Embargos de declaração julgados em 1º/6/2004. O acórdão só foi publicado em 8/8/2005, isto é, um ano e dois meses após o julgamento. Embargos de divergência (EREsp 302.636) rejeitados monocraticamente em 19/6/2007. Embargos de declaração com seguimento negado em 16/8/2007. Agravo regimental improvido em 25/11/2009. O caso foi então remetido ao STF para exame do agravo de instrumento contra a decisão que não conheceu o recurso extraordinário (AI 794.971), autuado em 7/4/2010. Em 9/9/2011, o ministro Joaquim Barbosa reconheceu a extinção da punibilidade pela prescrição operada em 25/10/2007. A PGR ingressou com agravo regimental, cujo julgamento, iniciado em 4/11/2014, foi interrompido até o julgamento final do ARE 848.107, que trata de matéria semelhante.

Os dados do processo indicam que, entre a data do fato (2/12/1995) e o oferecimento da denúncia (10/1/1996), transcorreram dois meses. A jurisdição ordinária findou em 7/02/2001, ou seja, cinco anos após a propositura da ação penal. A instância extraordinária, iniciada em fevereiro de 2001 no STJ, transcorreu até o dia em que extinta a punibilidade pela prescrição, em 25/10/2007, reconhecida no STF pelo ministro Joaquim Barbosa em 9/9/2011.

5.2. Conclusão: esse foi o primeiro caso referido pelo voto do ministro Luís Roberto Barroso em que, efetivamente, a tramitação dos recursos extraordinários superou a persecução penal e a instância ordinária. Foram seis anos de jurisdição exercida pelo STJ e pelo STF antes da prescrição, em face de dois meses de investigação e de cinco anos de tramitação do caso na Justiça estadual do Rio de Janeiro. Contudo, é importante referir que duas decisões proferidas no STJ levaram, em conjunto, aproximadamente um ano e oito meses apenas para serem publicadas. Graficamente, temos:

  1. O “caso do suplente de deputado federal”

6.1. Detalhamento do caso: o ex-deputado federal Pedro Talvane Luis Gama de Albuquerque Neto foi condenado pelo homicídio da então deputada federal Ceci Cunha e de seus familiares. O crime ocorreu em 16/12/1998. O Ministério Público de Alagoas ofereceu denúncia em 8/3/1999 contra quatro réus que não detinham prerrogativa de foro, requerendo a extração de cópias para remessa ao STF, em razão da prerrogativa do ex-parlamentar federal.

No STF, a denúncia foi oferecida em 7/7/1999 (Inq. 1.461). Com a cassação do mandato do parlamentar, a acusação foi remetida à Justiça estadual de Alagoas (decisão de 31/8/1999, ministro Sepúlveda Pertence). Todas as acusações foram reunidas, na fase de pronúncia, numa única ação penal (Processo 176/99).

Uma vez pronunciados, os réus interpuseram recursos em sentido estrito. Também recorreu a assistência da acusação, alegando a incompetência da Justiça estadual para processar o feito, haja vista a condição de parlamentar federal como vítima do delito.

O TJ-AL, em 19/10/2004 (autos 9005860-20.9999.8.02.0000), reconheceu a incompetência da Justiça estadual, remetendo os autos à 1ª Vara Federal de Alagoas (Processo 200580000027768).

O caso foi distribuído em 3/5/2005, sendo que o MPF ratificou a denúncia em 23/5/2005. O juiz federal competente permaneceu com os autos conclusos até 6/12/2006, ocasião em que proferiu despacho reconhecendo a competência da Justiça Federal, saneando o feito. Interessante referir a justificativa judicial do atraso: “Confesso que, talvez por não ser alagoano de nascimento e por não residir neste Estado na época dos fatos, custei a entender as particularidades do caso, as idas-e-vindas procedimentais, as várias versões para o delito contadas pelas partes.” A mesma decisão ainda trouxe o seguinte ponto, digno de menção: “somente depois de mais de seis anos é que a douta Justiça Estadual alagoana reconheceu sua incompetência absoluta, situação que poderia (deveria) ter sido constatada logo no início da ação”.

Os réus foram novamente pronunciados em 9/10/2007. O júri foi realizado em 19/1/2012. As apelações interpostas pelos réus foram julgadas em 30/4/2013 pelo TRF da 5ª Região. Os embargos declaratórios foram julgados em 26/9/2013. Três dos réus condenados ingressaram com recursos especial e extraordinário, cujo juízo de admissibilidade, realizado em 19/2/2014, foi positivo apenas em relação a Pedro Talvane. O caso foi remetido pelo TRF da 5ª Região ao STJ em 10/5/2014. Autuado como REsp 1.449.981, o caso encontra-se, hoje, pendente de julgamento.

6.2. Conclusão: a causa principal da morosidade está na atabalhoada propositura da ação penal pelo Ministério Público de Alagoas. Foi necessário que a assistência de acusação, em seu recurso em sentido estrito, alertasse o TJ-AL para o óbvio: o homicídio de uma parlamentar federal, relacionado ao exercício da sua função (o suplente desejava ocupar a sua vaga), é de competência da Justiça Federal. Entre a data do fato (16/12/1998) e a data em que reiniciado o processo na Justiça Federal (3/5/2005) transcorreram quase sete anos, ou seja, um período desperdiçado por exclusiva culpa da acusação. Uma sucessão de outros eventos — não imputáveis à defesa ou a recursos protelatórios — contribuíram para a demora. O juiz federal levou um ano e sete meses com os autos conclusos para sanear o processo. Entre a pronúncia e o júri, transcorreram quase cinco anos. Na verdade, o início da jurisdição da instância extraordinária (a cargo do STJ) operou-se apenas em maio de 2014. Sim, é um excesso de prazo lastimável que até hoje o recurso especial não tenha sido analisado. Mas o que se pode dizer dos demais excessos de prazos acima pontuados?

Foram quase sete anos entre a data do fato (16/12/1998) e a data do oferecimento da denúncia (23/5/2005) perante o juízo competente. Entre o recebimento da denúncia e o esgotamento da instância ordinária (10/5/2014), transcorreram aproximadamente nove anos. E entre o ingresso dos autos no STJ (10/5/2014) e a presente data, quase outros quatro anos. Eis a representação gráfica do caso:

  1. O “caso da missionária Dorothy Stang” 

7.1. Detalhamento da tramitação: o caso tramitou na Ação Penal 0003162-50.2010.8.14.0401, na 2ª Vara do Tribunal do Júri de Belém/PA. O crime ocorreu em 12/2/2005. A investigação, concluída rapidamente, embasou denúncia oferecida em 7/3/2005. O júri veio a ser realizado só cinco anos depois, em 30/4/2010. Condenado, o réu apelou. O TJ-PA julgou o recurso em 6/9/2011. O recurso especial interposto não foi conhecido no TJ-PA, sendo que o agravo contra a referida decisão foi encaminhado ao STJ em 9/12/2011 (autuado como AG 1.429.695). Em 6/3/2012, o ministro Campos Marques negou provimento ao agravo. Foram interpostos, sucessivamente, embargos de declaração e agravo regimental. Em 5/3/2013, o ministro Campos Marques deu provimento ao agravo regimental, determinando a subida do recurso especial (até então, no TJ-PA) ao STJ. Somente seis meses depois é que o processo ingressou novamente no STJ, autuado como REsp 1.405.233. Em 18/5/2017, o recurso especial foi parcialmente provido, sendo redimensionada a pena. Defesa e Ministério Público Federal ingressaram com agravos regimentais, improvidos em 27/6/2017. Opostos embargos de divergência, indeferidos liminarmente, porém submetidos ao colegiado via agravo regimental. Decisão da 3ª Seção em 27/2/2018, embargada e confirmada em 11/4/2018. 

7.2. Conclusão: desde a data do fato até a presente data, transcorreram aproximadamente 13 anos. A instância ordinária esgotou-se ao cabo de quase seis anos. A jurisdição do STJ prolongou-se por quase sete anos, ou seja, temos aproximadamente metade da tramitação em cada segmento. Os recursos interpostos na instância extraordinária longe estão de ser considerados procrastinatórios. Apenas para ilustrar, veja-se que o agravo de instrumento contra o não conhecimento do recurso especial, assim como o agravo regimental contra o provimento apenas parcial do recurso especial, foram providos. Só no intervalo entre a primeira remessa dos autos ao STJ (9/12/2011) e a entrada do recurso especial (2/9/2013) transcorreram quase dois anos. É correto afirmar que a defesa lançou mão de diversos outros recursos. Mas o provimento interno de pelo menos dois deles no STJ não pode ser desprezado como fator importante de análise de eventual procrastinação indevida do feito. A propósito, todos os recursos interpostos detinham previsão legal. Eis o gráfico:

  1. O “caso do propinoduto” 

8.1. Detalhamento da tramitação: o feito tramitou na 3ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro (Processo 200351015002810). Os delitos teriam ocorrido entre 1999 e 2002. A denúncia foi oferecida em 21/3/2003, acolhida em sentença datada de 31/10/2003. Os autos foram remetidos, com os recursos interpostos, ao TRF da 2ª Região em 4/3/2004. O acórdão relativo ao julgamento das apelações foi publicado em 31/10/2007. Uma particularidade que o voto do ministro Barroso omitiu foi o fato de que a tramitação dos demais recursos cabíveis, perante o TRF da 2ª Região, perdurou até 2/12/2009, ou seja, mais de dois anos após o julgamento das apelações. Outro aspecto relevante é que ingressaram com recursos especiais tanto o Ministério Público Federal quanto as defesas. Tais recursos foram distribuídos no STJ em 14/12/2009 (REsp 1.170.545). O mérito foi julgado em 2/12/2014. Desse momento em diante, houve, de fato, uma sucessão de recursos de embargos declaratórios interpostos pelas defesas, reputados protelatórios pela relatoria em 1º/8/2017. Os autos foram enviados ao STF, onde os recursos extraordinários encontram-se pendentes de análise. 

Da data dos últimos delitos apurados (2002) até a presente data, transcorreram aproximadamente 16 anos. A instância ordinária esgotou-se em sete anos, ao passo que apenas a jurisdição do STJ perdurou oito anos. Existem pontos relevantes a serem destacados, apontando para uma morosidade injustificável: primeiro, os mais de três anos que o TRF da 2ª Região levou para julgamento das apelações; segundo, os mais de dois anos que o TRF da 2ª Região levou para remessa dos autos ao STJ após o julgamento das apelações; terceiro, os cinco anos que o STJ levou para julgar o mérito dos recursos especiais (das defesas e da acusação, frise-se); quarto, a interposição de recursos protelatórios pelas defesas, durante quase três anos.

8.2. Conclusão: efetivamente, o caso é um exemplo a ser citado de morosidade da jurisdição. Mas longe, muito longe está, ao contrário do sustentado pelo ministro Barroso, de a interposição de recursos protelatórios ter sido a causa principal disso. O TRF da 2ª Região ficou com os autos durante cinco anos; o STJ levou iguais cinco anos para julgar recursos da acusação e da defesa. Graficamente, temos:

  1. O “caso do primeiro beneficiário da mudança da jurisprudência em 2009”

9.1. Detalhamento da tramitação: Omar Coelho Vitor foi acusado da prática de crime de homicídio em 18/5/1991. A denúncia foi formulada em 23/4/1993. Foi julgado duas vezes pelo Tribunal do Júri: a primeira foi anulada pelo STJ em 21/5/1998, em recurso especial interposto pela defesa (REsp 120.140). Motivo: o juiz presidente entendeu incompatíveis os parágrafos 1º e 2º do artigo 121 do CP. O segundo júri resultou em sentença condenatória no dia 11/5/2000. O recurso de apelo foi submetido ao TJ-MG, que o denegou em 16/3/2001 (Apelação 000.197.933-5/00). Contra o acórdão, foi interposto recurso especial, distribuído no STJ em 19/2/2002 (REsp 403.551). Em 10/4/2008, quatro anos após adentrar no STJ, a ministra Maria Thereza de Assis Moura observou que o TJ-MG não havia realizado o juízo de admissibilidade do recurso especial, baixando os autos a fim de ser suprida a falha processual. O TJ-MG conheceu o recurso e remeteu os autos novamente ao STJ. Em 1º/10/2009, o recurso foi não conhecido pela relatora. Interposto agravo regimental, julgado em 3/11/2009. Interpostos embargos de declaração, acolhidos (sem efeito modificativo) em 11/12/2009. Novos embargos de declaração, rejeitados em 23/2/2010. Opostos embargos de divergência, indeferidos liminarmente em 20/4/2010. Agravo regimental julgado em 22/6/2011 e novos embargos declaratórios denegados em 24/8/2011. O recorrente postulou a extinção da punibilidade pela prescrição, sendo que o relator determinou a baixa ao TJ-MG para que as peças integrais fossem enviadas. Após idas e vindas do processo no STJ, decisão proferida em 24/2/2014 reconheceu a extinção da punibilidade pela prescrição, operada em 16/3/2013.

Eis o cenário processual: foram 22 anos de tramitação. A denúncia foi oferecida aproximadamente dois anos após o crime. Desse momento em diante, o processo apresentou dois erros grosseiros, que retardaram severamente a tramitação do caso: a anulação do júri em razão da (in)compatibilidade entre os parágrafos 1º e 2º do artigo 121 do CP (assunto há muito consolidado na jurisprudência); a não realização do juízo de admissibilidade do recurso especial pelo TJ-MG. Levamos em consideração o esgotamento da instância ordinária como sendo em outubro de 2009, pois o lapso operado entre 2002 e 2009 serviu tão-somente para a correção desse erro. Ou seja, a jurisdição ordinária prolongou-se por 16 anos aproximadamente. Já a jurisdição do STJ, iniciada regularmente em outubro de 2009, prolongou-se por aproximadamente quatro anos até a data da prescrição (16/3/2013).

9.2. Conclusão: a maior razão pela morosidade do processo deveu-se a equívocos processuais grosseiros nas instâncias ordinárias (anulação do júri e não realização do juízo de admissibilidade do recurso especial pelo TJ-MG). A defesa, é verdade, interpôs diversos recursos no STJ, mas veja-se que, do lapso prescricional de 12 anos incidente no caso, apenas quatro desses anos tramitaram na instância extraordinária. Eis a representação gráfica:

  1. Análise final

Todos os casos citados são lamentáveis, porque efetivamente representam uma jurisdição morosa. Mas uma lupa nos detalhes de todos eles (e a mesma lupa poderia ser refeita em todos os processos penais brasileiros, com conclusões que certamente seriam bem piores) está muito longe de corroborar a linha argumentativa utilizada pelo ministro Barroso. As feridas são bem mais amplas do que as apontadas por ele.

Dos sete casos citados, quatro (Pimenta Neves, Luis Estevão, Pedro Talvane e Omar Coelho Vitor) tiveram uma instância ordinária mais morosa que a instância extraordinária, ou seja, a propalada letargia da jurisdição (capaz de propiciar a extinção da punibilidade pela prescrição, a tardia execução da pena ou a contemporânea pendência de solução final do caso) não pode ser atribuída à lenta tramitação dos recursos no STJ ou no STF, ou à interposição abusiva de recursos pela defesa.

Nesses quatro casos citados, são observadas verdadeiras bizarrices processuais que contribuíram, total ou parcialmente, para a tão criticada morosidade: ação penal proposta em juízo evidentemente incompetente; juiz federal que permanece com os autos conclusos durante um ano e sete meses; tribunal que se esquece de realizar juízo de admissibilidade em recurso especial; júri anulado por teimosia de juiz presidente; acórdãos levando tempo inimaginável para publicação etc. Nada disso está relacionado com interposição abusiva de recursos, tampouco com jurisdição extraordinária morosa.

Dos sete casos citados, apenas três (Dorothy, Edmundo e Propinoduto) ilustram uma morosidade processual predominante na instância extraordinária. Em alguns deles, é verdade, foi observada a interposição de recursos protelatórios. Mas em alguns dos casos também foram notadas anomalias processuais não imputáveis a medidas defensivas. Num dos casos, dois acórdãos, em conjunto, levaram um ano e oito meses para serem publicados pelo STJ; em outro, o TRF levou cinco anos para esgotar sua jurisdição, e assim por diante. Apesar de três casos citados pelo ministro Barroso terem a sua morosidade relacionada, em alguma medida, a estratégias defensivas que até se poderiam cogitar abusivas, esses mesmos casos contaram com contribuição não menos relevante da instância ordinária.

De tudo o que foi visto acima, não se irá negar que excessos no exercício da defesa podem contribuir para um atraso na prestação jurisdicional. Mas é sempre bom lembrar que a jurisdição possui outros mecanismos — que não fomentar imediatamente a execução antecipada da pena — para tolher distorções dessa natureza. Basta lembrar situações corriqueiras em que um ministro relator, deparando-se com recursos procrastinatórios, determina que os autos sigam tramitando, com a juntada em separado dos pedidos abusivos da defesa (em linha). Ou seja: o problema não é o abuso na interposição de recursos, mas, sim, omissão judicial em impedi-lo.

Para além disso, cremos que as razões de uma jurisdição morosa e socialmente desacreditada devem ser apontadas em toda a sua dimensão, não havendo espaço para seleção de dados no interesse do intérprete. Toda essa complexidade deve ser levada a conhecimento da sociedade em geral (afinal de contas, não é o “sentimento de impunidade” que está produzindo jurisprudência?) e da comunidade jurídica antes de qualquer avaliação razoável do objeto do julgamento. O voto do ministro Barroso no HC 152.752 debitou, na conta do uso abusivo de recursos perante o STJ e o STF, um passivo que possui outros devedores solidários bem mais relevantes. É chegada a hora de colocarmos em xeque o papel que todas as agências penais (Judiciário, Ministério Público, policiais, advogados etc.) vêm desempenhando para o descrédito na jurisdição.

Que dizer do artigo 62, II, da Lei 5.010/66 (que prevê excrescentes feriados de Quarta-feira Santa e Quinta-feira Santa para a Justiça Federal)? Por que o STJ não amplia o número mínimo de ministros previsto na Constituição (artigo 104) de modo a ter uma estrutura adequada para uma jurisdição célere? Quanto tempo dura, em média, um inquérito policial? A atuação do Ministério Público vem obedecendo aos prazos legais? Os juízes (inclusive, ministros) proferem seus despachos e suas sentenças em prazos razoáveis? As audiências são designadas com rapidez e com controle cartorário efetivo? Os servidores do juízo estão efetivamente preocupados com a tramitação célere de um processo? Os recursos tramitam em tempo hábil nos tribunais? A jurisdição brasileira (ordinária e extraordinária) pode ser considerada, de uma maneira geral, respeitosa, célere e efetivamente preocupada com uma distribuição justa do poder punitivo?

Essas perguntas poderiam ser aqui multiplicadas. Quem labuta na área criminal sabe que, com muita frequência, deparamo-nos com policiais, membros do Ministério Público, juízes, advogados e servidores que desempenham suas atividades com competência, zelo, respeito e celeridade. Não será aqui que iremos cometer o erro da generalização. Mas quem conta com essa mesma experiência também sabe que parcela significativa desses profissionais atua de forma ilegal, desidiosa e preguiçosa, beirando, às vezes, à prevaricação. O curioso é que o STF, ao valer-se da letargia da jurisdição para justificar a execução antecipada da pena, não tenha efetivamente colocado o dedo na ferida de todos os fatores que têm levado a população e os operadores do Direito a não mais confiar no Poder Judiciário. Enquanto isso não ocorre, seguimos com esse jeito tupiniquim de correção da seletividade do poder punitivo: em vez de melhorar o sistema, submetemos cada vez mais pessoas (e as mais vulneráveis são sempre as que mais sofrem) às suas distorções.

 

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