A Intervenção Mínima No Âmbito Penal E O Estado Democrático De Direito

Guilherme De Souza Nucci

 

            O
princípio penal da intervenção mínima (ou da subsidiariedade), próprio e
adequado ao Estado Democrático de Direito, exige que o Direito Penal
constitua o braço estatal derradeiro para a solução dos conflitos
emergentes em sociedade. Por isso, denomina-se, ainda, como a última opção
(ultima ratio) do legislador para intervir, coercitivamente,
impondo, quando necessário, a punição merecida ao infrator. Entretanto,
observa-se, com o passar dos anos - e já atingimos duas décadas de vigência
da Constituição Cidadã de 1988 -, a crescente criminalização de
condutas, muitas delas inócuas e supérfluas no contexto geral, associada à
omissão legislativa para efetuar uma autêntica limpeza no sistema
normativo penal, eliminando todas as figuras em desuso. A dupla medida -
cessar a constante edição de leis penais incriminadoras e a supressão dos
denominados crimes esquecidos - é imperiosa para que se faça valer e
sentir a face fidedigna da democracia brasileira.

 

            A
doutrina penal, majoritariamente, proclama tal necessidade, insistindo em
demonstrar a impertinência de uma legislação criminalizadora inflacionada e
potencialmente ineficaz. Porém, não foi o suficiente, até agora, para
sensibilizar o Poder Legislativo, que, muitas vezes, irmanado ao Executivo,
entende que a solução para os antigos problemas ainda não resolvidos e para
os novos recentemente surgidos é a edição, pura e simples, de novéis leis
penais. Ora a força criadora de tipos incriminadores prevalece; ora a
elevação de penas e a extirpação de direitos e garantias fundamentais se
delineiam.

 

            Somos
levados a manifestar, mais uma vez, o nosso inconformismo diante desse
estado legiferante desenfreado. Sob outro prisma, quando leis e mais leis
são editadas, em lugar de provocar qualquer ganho à sociedade, terminam por
acarretar, várias vezes, conflitos e ilogicidades no já sofrido sistema
penal, deixando perplexos os operadores do Direito.

 

            O
Código Penal, contando já com mais de sessenta anos de existência, sofreu
uma reforma ampla na Parte Geral (Lei 7.210/84) e experimentou inúmeras
inserções na Parte Especial, sem que se tivesse o cuidado de reformulá-lo
por inteiro. O uso excessivo das figuras desdobradas tem sido retrato fiel
da Parte Especial, como, por exemplo, os artigos 168-A (apropriação
indébita previdenciária), 216-A (assédio sexual), 313-A (inserção de dados
falsos em sistema de informações), 313-B (modificação ou alteração não
autorizada de sistema de informações), 319-A (prevaricação em relação ao
uso de celular em presídio), 337-A (sonegação de contribuição
previdenciária), 337-B, 337-C e 337-D (crimes cometidos por particular contra
a administração pública estrangeira), 359-A ao 359-H (crimes contra as
finanças públicas).

 

            À
falta de revisão estrutural do Código Penal, vários novos tipos
incriminadores são lançados, ainda, em legislação especial, como as figuras
de crimes contra idosos (Estatuto do Idoso), crimes contra crianças e
adolescentes (Estatuto da Criança e do Adolescente), crimes relacionados a
drogas ilícitas (Lei Antidrogas), crimes de porte, uso e posse de arma de
fogo (Estatuto do Desarmamento), crimes contra a ordem tributária,
econômica e relações de consumo (Lei 8.137/90), dentre tantos outros.

 

            Ademais,
remanesce, praticamente intocada, a vetusta Lei de Contravenções Penais,
contendo tipos incriminadores antiquados e em desuso. Não se pode sustentar
que, atualmente, torna-se relevante utilizar o Direito Penal, como ultima
ratio,
para punir condutas como "arremessar ou derramar em via
pública, ou em lugar de uso comum, ou de uso alheio, coisa que possa
ofender, sujar ou molestar alguém" (art. 37, LCP). Derramar algo na
via pública com a potencialidade de sujar alguém é algo insípido
para o cenário criminal. Possa-se manter tal figura, querendo, como mera
infração administrativa, sujeita a simples multa e nada mais. Porém,
movimentar a máquina judiciária, ainda que se trate do Juizado Especial
Criminal, é deveras ousado para tal contravenção. Há vários outros
exemplos: "emissão de fumaça, vapor ou gás" (art. 38);
"provocação de tumulto ou conduta inconveniente" (art. 40);
"perturbação do trabalho ou do sossego alheio" (art. 42) - neste
último caso, até o Supremo Tribunal Federal já foi levado a se reunir para
deliberar acerca do alcance da referida contravenção penal (HC 85.032,
2005), o que nos parece inadequado para o apregoado direito penal mínimo.

 

            Não
bastasse, há, ainda, as contravenções que são inconstitucionais e estão no
limbo jurídico. Inexiste palco para se punir, na atualidade, a vadiagem
(art. 59, LCP) ou a mendicância (art. 60, LCP). A liberdade de expressão e
de ação, quando não ofensivas a direito alheio, devem ser resguardadas a
qualquer custo. Jamais se pode utilizar o braço forte do Estado,
instrumentalizado pelo Direito Penal, para intervir nessa liberdade de
escolha. Qual o problema se alguém quiser vadiar? Ou se optar por
viver da caridade alheia, mendigando? Nenhum reflexo grave se pode
extrair para a sociedade. Nem mesmo infração administrativa pode se
caracterizar. Muito menos uma infração penal.

 

            Em
suma, a época presente deve voltar-se à sistematização democrática do
Direito Penal, respeitado o princípio constitucional da intervenção mínima,
garantindo-se, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana, meta maior da
nossa Constituição Cidadã.

           

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