Culpabilidade Como Juízo De Valor

Damásio Evangelista De Jesus

O
Direito Penal moderno assenta-se em diversos princípios, dos quais se
destacam a dignidade da pessoa humana, a legalidade, a irretroatividade da lex
gravior
, o ne bis in idem, a exclusiva proteção de bens
jurídicos, a intervenção mínima, a proporcionalidade e a culpabilidade.

 

O
princípio da culpabilidade, emergente do nullum crimen sine culpa,
significa que a pena só pode ser imposta àquele que, agindo ou se omitindo
com dolo ou culpa, e merecendo juízo de reprovação, cometeu um fato típico
e antijurídico. Possui fundamento constitucional, à medida que o Texto
Maior estabelece: ninguém será considerado culpado senão depois do
trânsito em julgado de sentença condenatória irrecorrível (art. 5º, inc.
LVII). Decorre, ademais, do fato de o Brasil constituir-se em Estado
Democrático de Direito, fundado na dignidade da pessoa humana (art. 1º da
Constituição Federal).

 

A
culpabilidade deve ser compreendida como fenômeno individual, vale dizer, o
juízo de reprovabilidade, elaborado pelo juiz, recai sobre o sujeito
imputável que, podendo agir de maneira diversa, tinha condições de alcançar
o conhecimento da ilicitude do fato. Tal juízo, que serve de fundamento e
medida da pena, repudia a responsabilidade penal objetiva (aplicação de
pena sem dolo, culpa e culpabilidade). Além disso, o princípio da
culpabilidade refuta qualquer norma penal que procure punir alguém pelo que
é, e não pelo que fez ou deixou de fazer. Ninguém pode ser apenado por seu
modo de vida, por suas opções filosóficas, religiosas, éticas ou morais,
mas tão-somente por ter infringido uma norma penal anterior à sua conduta e
desde que, repise-se:

 

1. seja imputável

2. em face da situação de fato, haja possibilidade de
compreender a ilicitude do ato; e

3. esteja presente possibilidade de agir de outro modo.

 

É
importante frisar que, no sistema penal brasileiro, a culpabilidade não é
elemento ou coeficiente do crime.

 

Somente depois de
cometida a infração penal (fato típico e antijurídico) e verificada a
culpabilidade, poder-se-á impor pena ao sujeito. Note que o Código Penal,
diante de situações em que não existe culpabilidade, declara ser o réu
"isento de pena" (v. arts. 21, 22, 26 e 28). Não se refere
a crime. Não diz "não há crime", como acontece em face de
excludentes da antijuridicidade (legítima defesa etc.).

 

Culpabilidade
quer dizer censurabilidade, reprovabilidade. É um juízo, elaborado pelo
Juiz, sobre o homem que cometeu o crime, não sobre o fato. Se é juízo,
encontrando-se na cabeça do Juiz, não pode estar no crime. Não recai sobre
o fato, como a tipicidade e a antijuridicidade. O fato pode ser típico ou
atípico; lícito ou antijurídico, mas não se apresenta culpado ou inocente.
Nunca vi nenhum fato culpado entrando ou saindo de tribunais. Vi homens.
Logo a locução "fato culpável", para mim, é incorreta.

 

A
culpabilidade constitui, ademais, medida da pena, uma vez que o juiz, no
processo de individualização (CF, art. 5º, inc. XLVI), deverá levar em
conta o grau de reprovabilidade (ou censurabilidade) da conduta realizada
pelo agente para dosar a sanção imposta. Aliás, não é por outra razão que o
CP insere a culpabilidade como a primeira das circunstâncias judiciais a
serem analisadas na fixação da pena (art. 59, caput).

 

Reconhece-se
que a doutrina moderna vem dando contornos à culpabilidade que extravasam a
noção de reprovabilidade proposta há mais de um século no âmbito da teoria
geral do crime, posição que não pode ser considerada firmada. Se a
culpabilidade será, no futuro, compreendida como responsabilidade ao invés
de reprovabilidade, ou responsabilidade juntamente com reprovabilidade, é
questão ainda a ser resolvida. Por ora, o certo é que nossa Constituição
Federal erigiu o princípio da culpabilidade como um dos vetores
fundamentais do sistema jurídico-penal pátrio, obrigando a que todas as
nossas leis penais a vejam como juízo de valor, pressuposto e medida da
pena.

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