Habeas Corpus Nº 45.869/sp

Apelo em liberdade. Réu foragido. Não conhecimento do recurso. Constrangimento ilegal. Caracterização.

Rel. Min. Hamilton Carvalhido


RELATÓRIO - O EXMO. SR. MINISTRO HAMILTON CARVALHIDO (Relator):
Habeas corpus contra a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, denegando o writ impetrado em favor de José João dos Santos preservou a pena de 8 anos de reclusão que lhe foi imposta pela prática do delito tipificado no artigo 159, combinado com o artigo 29, ambos do Código Penal, e o decisum que não conheceu do seu recurso de apelação, por estar foragido. O direito ao processamento do recurso de apelação, sem a necessidade do recolhimento prisional prévio do paciente, funda a impetração. Alega o impetrante que “(...) está havendo violação ao Princípio da Ampla Defesa e do Contraditório, já que não se está permitindo que a matéria seja apreciada pelo segundo grau de jurisdição, o que, também, vai de encontro ao devido processo legal.“ (fl. 2). Sustenta, ainda, que “(...) a não apreciação do recurso pelo 2º grau de jurisdição viola o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, que quem tem direito à individualização das penas. “ (fl. 3). De resto, afirma que “(...) o recurso de apelo denegado, além de outras teses, pretendia que fosse concedida a possibilidade de progressão prisional para o paciente , pedido este, aliás, bem viável, mesmo porque o próprio Supremo Tribunal Federal está em via de concretizar tal possibilidade nos crimes hediondos (...)“ (fl. 2 ). Postula a concessão da ordem, para que “(...) possa ter seu recurso de apelação apreciado pelo Tribunal competente, com base no art. 648, I, do Código de Processo Penal (...)“ (fl. 3). Liminar indeferida pelo ilustre Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira (fls. 13/14). Informações prestadas (fls. 28/29). O Ministério Público Federal veio pela denegação da ordem (fls. 69/72). É o relatório.

 
VOTO - O EXMO. SR. MINISTRO HAMILTON CARVALHIDO (Relator):
Senhor Presidente, habeas corpus contra a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, denegando o writ impetrado em favor de José João dos Santos preservou a pena de 8 anos de reclusão que lhe foi imposta pela prática do delito tipificado no artigo 159, combinado com o artigo 29, ambos do Código Penal, e o decisum que não conheceu do seu recurso de apelação, por estar foragido. O direito ao processamento do recurso de apelação, sem a necessidade do recolhimento prisional prévio do paciente, funda a impetração. Alega o impetrante que “(...) está havendo violação ao Princípio da Ampla Defesa e do Contraditório, já que não se está permitindo que a matéria seja apreciada pelo segundo grau de jurisdição, o que, também, vai de encontro ao devido processo legal.“ (fl. 2). Sustenta, ainda, que “(...) a não apreciação do recurso pelo 2º grau de jurisdição viola o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, que quem tem direito à individualização das penas. “ (fl. 3). De resto, afirma que “(...) o recurso de apelo denegado, além de outras teses, pretendia que fosse concedida a possibilidade de progressão prisional para o paciente , pedido este, aliás, bem viável, mesmo porque o próprio Supremo Tribunal Federal está em via de concretizar tal possibilidade nos crimes hediondos (...)“ (fl. 2). É esta a letra da sentença no particular do indeferimento do apelo em liberdade ao paciente: “(...) Tendo em vista o disposto no artigo 393 e artigo 594, ambos do Código de Processo Penal, bem como por ser tratar de crime hediondo, além de um dos réus se encontrar preso em flagrante e outro ser revel, devem eles aguardarem recolhidos o final do feito, sem direito de se livrarem soltos. Recomende-se, portanto, LEANDRO onde se encontra e expeça-se mandado de prisão em desfavor de JOSÉ JOÃO face também sua revelia. (...)“ (fl. 44). E esta, a do acórdão impugnado: “(...) O réu ora paciente foi processado e condenado pela prática de extorsão mediante seqüestro. Impossibilitou-se, por ocasião da prolação da sentença condenatória, pudesse o réu apelar em liberdade. Observe-se que, diante da vedação imposta pela sentença, não poderia mesmo a apelação interposta ter seguimento, sem que se recolhesse o acusado à prisão. José João encontra-se foragido. Com a prolação da sentença, a prisão do acusado tornou-se um dos efeitos naturais da decisão. Cabe, então, verificar-se se é possível apelar o paciente em liberdade. José João foi condenado pelo delito de extorsão mediante seqüestro. Trata-se de crime considerado hediondo pela Lei nº 8.072/90. Este mesmo diploma legal impossibilita o deferimento da liberdade provisória para que o réu possa apelar em liberdade. O condenado praticou delito gravíssimo. Sua perigosidade é imanente ao comportamento desenvolvido. É por isso mesmo que a Lei de Crimes Hediondos, antevendo esse quadro, estabeleceu, a priori, a impossibilidade de se deferir a liberdade provisória ao réu condenado, para que pudesse apelar em liberdade. Na espécie, estão presentes os motivos para a decretação da preventiva. O acusado ora paciente encontra-se foragido. Não há afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência. A exigência da prisão provisória para apelar não ofende a aludida regra constante da Carta Magna. A decisão que impossibilitou o recurso em liberdade foi convenientemente fundamentada. (...)“ (fls. 62/63). Tem-se, assim, que não se conheceu do recurso de apelação, ora paciente, em razão de estar foragido. Ocorre que as normas dos artigos 594 e 595 do Código de Processo Penal não foram recepcionadas pela Constituição da República. A prisão do réu, com efeito, em inexistindo coisa julgada penal, somente pode ter lugar, para que se possa afirmá-la conforme à Constituição, se for de natureza cautelar e, como tal, decretada fundamentadamente nos seus pressupostos e motivos legais, elencados no artigo 312 do Código de Processo Penal. Nesse sentido, os seguintes precedentes: “HABEAS CORPUS . DIREITO PROCESSUAL PENAL. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. INDEFERIMENTO DO APELO EM LIBERDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CARACTERIZAÇÃO. 1. A excepcionalidade da prisão cautelar, dentro do sistema de direito positivo pátrio, é necessária conseqüência da presunção de não culpabilidade, insculpida como garantia individual na Constituição da República, somente se a admitindo no caso de sua necessidade, quando certas a autoria e a existência do crime. 2. Tal necessidade, por certo, sem ofensa aos princípios regentes do Estado Democrático e Social de Direito, pode ser presumida em lei ou na própria Constituição, admitindo ou não prova em contrário, segundo se cuide de presunção relativa, como no caso da inafiançabilidade legal de certos delitos, ou absoluta, como nos casos do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.072/90 - Lei dos Crimes Hediondos. 3. De outro lado, é sabido que na letra do artigo 393, inciso I, do Código de Processo Penal, um dos efeitos da sentença penal condenatória recorrível é ser o réu preso ou conservado na prisão. 4. Essa regra, no entanto, à luz da disciplina constitucional da liberdade, vem sendo mitigada pela moderna jurisprudência pátria, que, reiteradamente, à luz, por certo, do reconhecimento implícito da presunção relativa da necessidade da constrição cautelar, tem afirmado que, se o réu respondeu solto a todo o processo da ação penal, assim deve permanecer mesmo após o édito condenatório, ressalvadas as hipóteses de presença dos pressupostos e motivos da custódia cautelar (artigo 312 do Código de Processo Penal), suficientemente demonstrados pelo magistrado sentenciante. 5. As normas processuais que estabelecem a prisão do réu como condição de admissibilidade do recurso de apelação são incompatíveis com o direito à ampla defesa, porque, às expressas, o é com todos os recursos a ela inerentes, não havendo falar, em caso tal, em prisão pena ou prisão cautelar. 6. É caso, pois, assim como o é também o da regra de deserção determinada pela fuga do réu, de conflito manifesto e intolerável entre a Lei e a Constituição, que se há de resolver pela não recepção ou inconstitucionalidade da norma legal, se anterior ou posterior à Lei Fundamental. 7. A prisão do réu, na espécie, somente poderia ter lugar, para que se pudesse afirmá-la conforme à Constituição, se fosse de natureza cautelar e, como tal, decretada fundamentadamente nos seus pressupostos e motivos legais, elencados no artigo 312 do Código de Processo Penal. 8. Ordem concedida. “ (HC nº 38.158/PR, da minha Relatoria, in DJ 2/5/2006). “PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. (1) FUGA. APELAÇÃO. DESERÇÃO. CONSTRANGIMENTO. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. (2) PRÉVIA ORDEM NÃO CONHECIDA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CONHECIMENTO NESTA INSTÂNCIA. IMPOSSIBILIDADE. 1. No Estado Democrático de Direito, identificado pelo respeito ao devido processo legal, não tem lugar a aplicação a disposição do art. 595 do CPP, que obstaculiza a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição ao réu foragido. 2. Assegurado o processamento da apelação, garante-se a apreciação da matéria objeto do prévio writ. 3. Não tendo sido conhecida a prévia ordem, não é dado a este Tribunal da matéria, sob pena de indevida supressão de instância. 4. Writ não conhecido e ordem, de ofício, concedida para anular a decisão que aplicou a disposição do art. 595 do Código de Processo Penal, a fim de que se julgue a apelação do paciente (Apelação Criminal n. 1.757/01, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro).“ (HC nº 65.458/RJ, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, in DJ 24/9/2007). “PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. CONCURSO DE TRÊS MAJORANTES. APELAÇÃO INTERPOSTA PELA DEFESA. FUGA DO RECORRENTE. NÃO OCORRÊNCIA DE DESERÇÃO. NÃO-PREVALÊNCIA DO ART. 595 DO CPP APÓS A PROMULGAÇÃO DA CF/88. ORDEM CONCEDIDA. 1. A análise do art. 595 do CPP deve ser análoga à que é feita na primeira parte do art. 594 do referido diploma legal. 2. Em virtude do rol de garantias processuais destinadas aos acusados em geral, não pode prevalecer a regra prevista no art. 595 do CPP, posto incompatível com a nova ordem jurídico-constitucional inaugurada em 5/10/88. 3. Assim, embora a orientação pretoriana fosse, até recentemente, no sentido da deserção do recurso, ante a fuga do condenado, após apelar, em cumprimento à referida exigência processual penal, não há como, todavia, à luz dos novos e vários princípios garantistas contidos na Constituição Federal, manter essa exigência, sob pena de violá-los, conforme já reconheceu a Suprema Corte, bem como este Superior Tribunal, em situações equiparadas, ou seja, quanto à exigência similar contida no art. 594 do CPP. 4. Ordem concedida para que, presentes os demais requisitos legais, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo receba o apelo da defesa, independentemente da fuga do paciente.“ (HC nº 74.701/SP, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, in DJ 1º/10/2007). Tal prisão, por força de natureza, nada tem a ver com os pressupostos de admissibilidade da apelação e seu julgamento, enquanto recurso, que, no conceito de Pontes de Miranda, “Do latim re + cursus, retorno, volta, repetição “, traduz-se no “poder de vontade, juridicamente regulado, conferido à parte vencida, ou a outrem, para invocar nova decisão, em regra de órgão jurisdicional hierarquicamente superior, sobre o objeto formal ou material do processo“ (in Comentários ao Código de Processo Civil, Editora Forense, 1975) Trata-se de genuíno fruto da inspiração autoritária do Código de Processo Penal, induvidosamente não recepcionado pela Constituição Federal de 1988, contrapondo-se, como se contrapõe, com força e valor de denegação, à garantia constitucional do direito à ampla defesa, com todos os recursos a ela inerentes, cláusula cujo caráter absoluto não permite restrições preceituadas em normas meramente legais. Pelo exposto, concedo a ordem para, afastar o óbice da exigência da prisão e determinar o processamento do recurso de apelação interposto por José João dos Santos. É O VOTO.

 
EMENTA -
HABEAS CORPUS . DIREITO PENAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL. APELO EM LIBERDADE. RÉU FORAGIDO. NÃO-CONHECIMENTO DO APELO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CARACTERIZAÇÃO. 1. A jurisprudência dos Tribunais Superiores, incluidamente do Pretório Excelso, firmou-se já no sentido de que em se tratando de réu preso em flagrante, e que nessa condição permaneceu durante todo o processo, não tem incidência o artigo 594 do Código de Processo Penal, fazendo-se, pois, imperiosa a manutenção da sua custódia quando da sentença condenatória. 2. As normas processuais que estabelecem a prisão do réu como condição de admissibilidade do recurso de apelação são incompatíveis com o direito à ampla defesa, porque, às expressas, o é com todos os recursos a ela inerentes, não havendo falar, em caso tal, em prisão pena ou prisão cautelar. 3. É caso, pois, assim como o é também o da regra de deserção determinada pela fuga do réu, de conflito manifesto e intolerável entre a Lei e a Constituição, que se há de resolver pela não recepção ou inconstitucionalidade da norma legal, se anterior ou posterior à Lei Fundamental. 4. Ordem concedida.

 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conceder a ordem de habeas corpus , nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. A Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura e o Sr. Ministro Carlos Fernando Mathias (Juiz convocado do TRF 1ª Região) votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Nilson Naves e Paulo Gallotti. Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Brasília, 29 de novembro de 2007 (Data do Julgamento).


 

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