Habeas Corpus Nº 77.085/sp

Tráfico e associação para o tráfico ilícito de entorpecentes. Impetração dirigida contra decisão indeferitória de pedido liminar. Juntada aos autos do acórdão denegatório pela autoridade impetrada. Conhecimento. Possibilidade. Inobservância do rito estabelecido pela Lei 10.409/02. Ausência de defesa preliminar. Nulidade absoluta. Precedentes do STJ e do STF.

Rel. Min. Laurita Vaz


RELATÓRIO - EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ:
Trata-se de habeas corpus , com pedido liminar, impetrado em favor de RODRIGO FARIAS, contra decisão indeferitória de provimento urgente proferida pelo Desembargador-relator do writ n.º 1.053.695.3/6-00, em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Infere-se dos autos que o ora Paciente, preso em flagrante e denunciado como incurso no crime de associação para o tráfico ilícito de entorpecentes, foi condenado, em primeiro grau, à pena de 03 anos de reclusão, em regime integral fechado, pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes. O Impetrante alega, em suma, nulidade do processo-crime em razão da inobservância pelo juízo processante do rito procedimental previsto na Lei n.º 10.409/02, uma vez que a denúncia foi recebida sem a realização do interrogatório prévio. Requer, assim, liminarmente, seja permitido ao Paciente aguardar em liberdade o processo-crime instaurado em seu desfavor, e, no mérito, a anulação do processo-crime desde o recebimento da denúncia. O pedido de liminar foi indeferido nos termos da decisão de fls. 50/51. As judiciosas informações foram prestadas às fls. 56/228, com a juntada de peças processuais pertinentes à instrução do feito. O Ministério Público Federal manifestou-se às fls. 230/235, opinando pelo não conhecimento, e no mérito, pela denegação da ordem. Pedido de reconsideração da decisão que indeferiu a liminar foi juntado, pela petição n.º 87717, afirmando que se concedeu “o livramento condicional em favor do paciente, uma vez que ele já havia cumprido 2/3 de sua pena“, benefício em vias de ser revogado com o julgamento de agravo em execução interposto pelo Ministério Público, porque, em sede de apelação, o Paciente também foi condenado como incurso no delito de associação para o tráfico ilícito de entorpecentes, aumentando a pena a ser cumprida para 06 anos de reclusão. É o relatório.

 
VOTO - EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA):
Inicialmente, cumpre ressaltar que, na esteira da jurisprudência predominante dos Tribunais Superiores, não se admite habeas corpus contra decisão negativa de liminar proferida em outro writ na instância de origem, sob pena de indevida supressão de instância, salvo situações absolutamente excepcionais, onde restar claramente evidenciada a ilegalidade do ato coator (v.g. Ag no HC n.º 43.158/SP, rel. Min. PAULO MEDINA, DJ de 01/08/2005). Sem embargo desse entendimento esposado, em alguns julgados recentes, esta Turma tem-se posicionado no sentido de, com a superveniência do julgamento do mérito do writ originário, conhecer da impetração como “substitutiva de recurso ordinário“ e, então, apreciar seu mérito. Juntado aos autos, pelo Tribunal a quo, a cópia do acórdão denegatório, julgado no dia 29 de março de 2007, observo a existência de constrangimento ilegal no caso. Infere-se dos autos, mormente do acórdão que denegou o habeas corpus originário, que o juízo singular, ao processar a ação penal instaurada em desfavor do Paciente, adotou o rito procedimental traçado na Lei n.º 6.368/1976, negando, portanto, aplicabilidade aos dispositivos processuais da Lei n.º 10.409/2002. A decisão judicial em comento foi equivocada. O uso do método de interpretação literal da lei, tal como foi utilizado pelo Juiz monocrático, ao negar a vigência da Lei n.º 10.409/2002, é temerário. Compete, pois, ao magistrado o dever de encontrar, em cada caso, a norma ou a combinação de normas que se aplique ao fato concreto, solucionando o conflito da melhor forma possível. A aplicação das leis envolve, por conseqüência, uma tríplice investigação: a existência da norma; o seu significado e valor; e a sua aplicabilidade. Certo é que a parte de direito material, concernente à tipificação dos delitos de tráfico ilícito de entorpecentes, prevista na Lei n.º 10.409/2002, foi vetada. No entanto, as normas processuais especiais dispostas na referida lei, passaram a vigorar. Tem-se, portanto, que a Lei 6.368/1976 foi apenas revogada parcialmente, ou seja, derrogada. Sendo assim, a instrução criminal dos crimes previstos na Lei Anti-Tóxicos de 1976 passou a ser regulada pela novel legislação especial, restando consagrado o princípio do garantismo penal, ao instituir a resposta escrita à acusação, antes do recebimento da denúncia. Nesse diapasão: “Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. LEIS Nºs 6.368/76 E 10.409/02. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. APLICAÇÃO DO ART. 2º, § 1º, DA LEI DE INTRODUÇÃO DO CÓDIGO CIVIL. INOBSERVÂNCIA DO NOVO RITO. FALTA DE DEMONSTRAÇÃO DO EFETIVO PREJUÍZO CAUSADO À DEFESA. NULIDADE INEXISTENTE. 1. A Lei n.º 6.368/76 permanece em vigor naquilo em que não confronta com a Lei n.º 10.409/02, não podendo o magistrado deixar de aplicar o novo rito procedimental, que não foi vetado, produzindo efeitos desde a sua edição. 2. A melhor solução para esse conflito aparente de normas encontra-se no art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução do Código Civil, segundo o qual 'a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela seja incompatível ou quando regule inteiramente toda a matéria de que tratava a anterior'. 3. A alegação de nulidade pela não observância do novo rito há de ser avaliada em cada caso, sempre tendo em conta o prejuízo que possa ter advindo para o acusado, a ser objetivamente demonstrado. 4. Habeas corpus denegado.“ (HC n.º 24.779/MS, rel. Min. PAULO GALLOTTI, DJ de 20/09/2004) Ressalte-se, ademais, que a inobservância do rito procedimental disposto na Lei n.º 10.409/02 ocasiona, inclusive, a declaração da nulidade do processo-crime, por descumprimento ao princípio da ampla defesa e do contraditório. Cumpre, inicialmente, nesse particular, fazer uma breve digressão sobre o tema no âmbito da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Inicialmente, quando do julgamento do HC n.º 26.900/SP, quedei-me vencida pelos meus pares, ao declarar que a observância da norma procedimental inserta no art. 38, da Lei n.º 10.409/02, era de ordem cogente pois traduzia a essência do princípio da ampla defesa e do contraditório, agasalhados pelo sistema processual criminal vigente e pelo ordenamento constitucional. Todavia, o voto divergente proferido pelo ilustre Min. JORGE SCARTEZZINI, seguido pelos demais Ministros da Quinta Turma, declarou que a inobservância do rito procedimental estabelecido pela novel legislação se configura tão-somente em nulidade relativa. Tal entendimento, hoje, encontra-se superado pelo Supremo Tribunal Federal. É, aliás, o que se extrai do informativo de jurisprudência n.º 436, do Pretório Excelso, que, ao julgar o HC n.º 87.346/MT, declarou a nulidade da instrução criminal por inobservância do rito previsto, in verbis : “A Turma, por maioria, deferiu habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que denegara idêntica medida ao fundamento de falta de demonstração de prejuízo pela inobservância do art. 38 da Lei 10.409/2002. No caso, o paciente fora inicialmente denunciado pela suposta prática, em concurso material, de crimes contra a ordem tributária e de lavagem de dinheiro (Lei 8.137/90, art. 1º, I e Lei 9.613/98, art. 1º, § 1º, II), vindo a denúncia a ser aditada para incluir os delitos de tráfico de entorpecentes e de associação para o tráfico (Lei 6.368/76, artigos 12 e 14). Após o recebimento desse aditamento, decretara-se a prisão preventiva do paciente e de co-réu. Entendeu-se não assegurado o exercício do contraditório prévio determinado pelo aludido art. 38 da Lei 10.409/2002, em afronta ao seu direito de defesa. Em conseqüência, tendo em conta a imbricação da custódia preventiva com o mencionado aditamento, asseverou-se que aquela não poderia subsistir. O Min. Sepúlveda Pertence, por sua vez, em face da ausência de fundamentação idônea, deferiu o writ por considerar que o decreto de prisão preventiva embasa-se em presunções quanto à periculosidade do paciente e a sua influência na instrução criminal. Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski, relator, e Carlos Britto que deferiam parcialmente o habeas corpus, mantendo a prisão do paciente, por reputar que os seus fundamentos não abrangiam apenas os crimes tipificados na Lei de Tóxicos. HC 87346/MT, rel. orig. Min. Ricardo Lewandowski, rel. p/ o acórdão Min. Carmen Lúcia,15.8.2006. (HC-87346)“ Nesse sentido, tem-se que a ausência de apresentação de defesa preliminar constitui nulidade absoluta, pois desrespeita o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, encerrando inegável prejuízo ao paciente. Ressalte-se, por oportuno, que tal entendimento era, há muito, seguido também pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: “Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. ART. 38 DA LEI 10.409/02. INOBSERVÂNCIA. NULIDADE ABSOLUTA. ORDEM CONCEDIDA. A inobservância do procedimento previsto no art. 38 da Lei n.º 10.409/02 enseja a nulidade absoluta do processo. Ordem concedida.“ (HC n.º 38.522/SC, rel. Min. PAULO MEDINA, DJ de 24/10/2005) “Ementa: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. ART. 38 DA LEI 10.409/02. INOBSERVÂNCIA. NULIDADE ABSOLUTA. ORDEM CONCEDIDA. A inobservância do procedimento previsto no art. 38 da Lei n.º 10.409/02 enseja a nulidade absoluta do processo. Ordem concedida em parte para anular a ação penal.“ (HC n.º 40.562/PE, rel. Min. HAMILTON CARVALHIDO, DJ de 22/08/2005) Concluindo, impende dizer que, embora a Lei n.º 10.409/02 tenha sido expressamente revogada pela Lei n.º 11.343/06 - que ainda se encontra em vacatio legis -, é sabido que as normas processuais são regidas pelo princípio 'tempus regit actum', ou seja: aplica-se ao processo as normas procedimentais vigentes à época dos fatos. Assim, a instrução criminal ora examinada deverá ser ab initio anulada, devendo, ainda, o juízo processante adotar e observar o rito procedimental previsto na Lei n.º 10.409/02. Anulada a ação penal, deve ser relaxada a prisão em flagrante delito do Paciente, diante do evidente excesso de prazo na sua custódia cautelar, em razão da necessidade de se iniciar, novamente, a instrução criminal. Frise-se que a pena, fixada pelo Tribunal a quo em 06 (seis) anos de reclusão, não poderá ser agravada, e o Paciente, preso desde 26 de abril de 2005, já cumpriu mais de um sexto de sua reprimenda, fazendo jus, até mesmo, à progressão de regime. Ademais, levando-se em conta a pena imposta pela sentença monocrática, o Paciente já cumpriu mais de dois de sua condenação, tanto que foi beneficiado com o benefício de livramento condicional. Ante o todo exposto, CONCEDO a ordem postulada para: a) DECLARAR a nulidade ab initio do processo instaurado em desfavor do Paciente, desde o despacho de recebimento da denúncia, impondo-se ao juízo processante observar o rito da Lei n.º 10.409/2002. b) relaxar a prisão em flagrante delito do Paciente, concedendo-lhe o direito de aguardar em liberdade o julgamento da ação penal. c) outrossim, julgo prejudicado o pedido de reconsideração da decisão que indeferiu a liminar. É como voto.

 
EMENTA -
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES DE TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. IMPETRAÇÃO DIRIGIDA CONTRA DECISÃO INDEFERITÓRIA DE PEDIDO LIMINAR. JUNTADA AOS AUTOS, DO ACÓRDÃO DENEGATÓRIO PELA AUTORIDADE IMPETRADA. CONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. INOBSERVÂNCIA DO RITO ESTABELECIDO PELA LEI N.º 10.409/02. AUSÊNCIA DE DEFESA PRELIMINAR. NULIDADE ABSOLUTA. PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR E DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. Não se admite, a teor do entendimento aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça, habeas corpus contra decisão negativa de liminar proferida em outro writ na instância de origem, sob pena de indevida supressão de instância, salvo situações absolutamente excepcionais, onde restar claramente evidenciada a ilegalidade do ato coator. 2. Sem embargo desse entendimento esposado, em alguns julgados recentes, esta Turma tem-se posicionado no sentido de, com a superveniência do julgamento do mérito do writ originário, conhecer da impetração como “substitutiva de recurso ordinário“ e, então, apreciar seu mérito. 3. Juntado o acórdão que denegou a impetração originária pela Corte a quo, cumpre frisar que se aplica aos crimes de tóxicos o rito procedimental da Lei n.º 10.409/02, a qual derrogou, na parte processual, as disposições da Lei n.º 6.368/76. 4. A inobservância do rito procedimental estabelecido pela Lei n.º 10.409/02, constitui-se em nulidade absoluta, pois a ausência de apresentação de defesa preliminar desrespeita o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, encerrando inegável prejuízo ao acusado. 5. Ordem concedida para: a) declarar a nulidade ab initio do processo instaurado em desfavor do Paciente, desde o despacho de recebimento da denúncia, impondo-se ao juízo processante observar o rito da Lei n.º 10.409/2002; e, b) relaxar a prisão em flagrante do Paciente, concedendo-lhe o direito de aguardar em liberdade o julgamento da ação penal. Julgo, outrossim, prejudicado o pedido de reconsideração da decisão que indeferiu a liminar.

 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, “A Turma, por unanimidade, concedeu a ordem, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora.“ Os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Napoleão Nunes Maia Filho e Felix Fischer votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 21 de junho de 2007 (Data do Julgamento)

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