Habeas Corpus Nº 84.534-7/sp

Crime de guarda de substância entorpecente. Sentença condenatória. Pena. Individualização. Fixação no triplo do mínimo legal. Impossibilidade. Abuso do poder discricionário do magistrado configurado, mormente por ser pequena a quantidade de droga apreendida.

Rel. Min. Cezar Peluso


RELATÓRIO -
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (Relator): Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de CÍCERO APOLINÁRIO DE ALMEIDA, contra acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que lhe denegou pedido de habeas corpus, nos termos desta ementa: “HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. DOSIMETRIA DA PENA. PENA-BASE FIXADA ACIMA DO MÍNIMO. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE DA SENTENÇA MONOCRÁTICA MANTIDA PELO TRIBUNAL A QUO. ARTIGO 59 DO CP. NOMEAÇÃO DO DEFENSOR DATIVO. AUSÊNCIA DE CERCEAMENTO DE DEFESA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO DEMONSTRADO. Não há falar em nulidade da sentença condenatória por ausência de fundamentação na fixação da reprimenda se o MM. Juiz sentenciante, atento às diretrizes do art. 59 do Código penal, justificou satisfatoriamente a fixação da pena base acima do mínimo legal. Ordem denegada“ (HC nº 16.061, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, fls. 19). O ora paciente foi condenado à pena de 9 (nove) anos de reclusão, em regime integralmente fechado, e a 150 (cento e cinqüenta) dias-multa, pela prática do crime capitulado no art. 12, caput, da Lei nº 6.368/76. Alega ser nulo o processo, por ter-lhe sido nomeado defensor dativo sem a devida intimação para constituir novo advogado. Aduz, ainda, que não teriam sido corretamente analisadas as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal. E, por fim, pede decretação da nulidade da sentença, por haver determinado o cumprimento da pena integralmente em regime fechado, sem mencionar o disposto no art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90. Foram prestadas informações pelo Presidente do Superior Tribunal de Justiça (fls. 16-27), e veio aos autos cópia integral do Processo Crime nº 703/98 (fls. 91 e ss.). O parecer da douta Procuradoria é pelo indeferimento da ordem. Deixei de apreciar o pedido liminar, para trazer o processo a julgamento. É o Relatório.

 
VOTO - O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (Relator):
O impetrante alega que o processo que culminou com sua condenação é nulo por ter-lhe sido nomeado defensor dativo sem a devida intimação para constituir novo advogado. Como se colhe dos autos, o paciente, no interrogatório, indicou o Dr. Marcos Ernesto Cabanas por defensor (fls. 177). Mas, ordenada sua intimação para apresentar defesa prévia e comparecer à audiência de início de instrução, tal advogado afirmou não conhecer o paciente, que o não teria contratado, e recusou-se a receber a intimação (fls. 238 verso). No dia da audiência para oitiva de testemunhas de acusação, na presença do paciente, o magistrado constituiu a Dra. Cintia Homen de Mello Lagrotta Valente para o ato e, “em tempo“, nomeou-a “para a Defesa do acusado Cícero a partir desta audiência e inclusive para os ulteriores atos processuais“ (fls. 239), tendo ela estado presente à audiência de instrução e julgamento, elaborando alegações finais (fls. 272). Segundo informou o magistrado, “manifestando-se o paciente, no sentido de que o defensor constituído já não mais cuidava de seus interesses e asseverando não ostentar condições financeiras de contratar os serviços de outro defensor, coube então ao Juízo nomear para a defesa do mesmo a i. Procuradora do Estado (PAJ), aqui oficiante“ (fls. 46). Ademais, como bem ponderou a Subprocuradora-Geral da República, Dra. Delza Curvello Rocha, a inicial não inculca nenhum prejuízo ao paciente, réu confesso, que isentou os co-réus de qualquer responsabilidade pelo crime. O disposto no art. 563 do Código de Processo Penal não autoriza, pois, pronúncia da nulidade argüida. O segundo fundamento do pedido é a afirmação de inadequada análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, já que, réu confesso o paciente, não poderia a pena ter sido estabelecida em três vezes do mínimo legal. Ao propósito, da sentença consta: “Na aplicação da pena, observo que o acusado Cícero revela personalidade defeituosa, voltada ao desenvolvimento, em grandes proporções, do tráfico de drogas, as circunstâncias do episódio – envolvendo, a princípio, inocentes pessoas, e mais de uma dezena de quilos de cocaína – depõem em seu desfavor. Irrelevantes os demais elementos constantes do artigo 59, do Código Penal, pelo que fixo sua reprimenda-base em nove anos de reclusão, mais o pagamento de cento e cinqüenta dias-multa, em seu mínimo legal. Confesso e reincidente, mantenho-a no aludido patamar, tornando-a definitiva, à míngua de fatores modificativos“ (fls. 276). No que toca ao valor da confissão, vê-se logo que a circunstância atenuante foi, sim, considerada pelo juiz, que, em razão dela, não exacerbou a pena por conta da circunstância agravante da reincidência. Mas, no que diz respeito ao aumento da pena-base em três vezes o mínimo legal, forçoso reconhecer a procedência do pedido. É que se extrai da sentença que o aumento se deu apenas em virtude da quantidade de droga apreendida: doze quilogramas, trezentas e noventa gramas de cocaína (fls. 95). Verdade seja que o réu foi preso quando portava papelotes para venda, tendo indicado aos policiais onde estaria depositado o restante da substância entorpecente (fls. 275). Mas, afastada que foi a associação para o tráfico (ibid.), o paciente foi condenado pela prática do crime descrito no art. 12, caput, da Lei nº 6.368/76. Aplico a orientação adotada pela Tuma no julgamento do RHC nº 84.082 (Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 04.06.2004), caso em que a quantidade de substância entorpecente apreendida era muito superior à da espécie: tratava-se, ali, de trezentos quilogramas de maconha. Na oportunidade, decidiu a Turma, acompanhando o eminente Min. Relator, que, em se cuidando de crime de guarda de substância entorpecente, o qual é de mera conduta, a elevação da pena-base a 9 (nove) anos de reclusão, transporia o âmbito da chamada “discricionariedade judicial“, objeto do art. 59 do Código Penal, que o não permitiria: “EMENTA. I. Sentença condenatória: motivação bastante da participação no crime atribuída ao paciente, não se prestando o procedimento sumário e documental do habeas corpus para responder à indagação sobre o ajustamento de fundamentação ao conjunto da prova. II. Individualização da pena: limites da chamada “discricionariedade judicial“: fixação da pena no triplo do mínimo cominado ao crime que se funda exclusivamente nos resultados potenciais de um crime de mera conduta, como o de guarda de substância entorpecente, ainda que em grande quantidade: nulidade parcial da condenação“. (No mesmo sentido, RHC nº 82.369, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 08. 11.2002). Daí, ter convindo a Turma em cassar a sentença, no capítulo referente à pena, determinando que, sobre esse tópico, outra fosse proferida com atenção ao caráter formal do delito de “guarda de substância entorpecente“. Creio ser a solução curial para o caso. Isto posto, concedo, em parte, a ordem, para, cassando a sentença no capítulo da fixação da pena-base, determinar seja outra proferida a respeito, atendendo ao caráter formal do delito. E, no que tange à vedação de progressão de regime de cumprimento da pena, concedo cautelar, para afastar o óbice previsto na condenação, satisfeitos os demais requisitos legais, até o julgamento final, pelo Plenário, do HC nº 82.959 (Rel. Min. MARCO AURÉLIO).

 
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO:
Senhor Presidente, continuo convencido de que não se pode conceber condenação sem pena. Já disse, mesmo, que a jurisprudência sedimentada resultou da necessidade de se contornar a prescrição, tendo em conta o fenômeno da interrupção pelo decreto condenatório. Por isso, entendendo que o pronunciamento judicial é um todo e fica contaminado tal como formalizado, peço vênia ao relator para declarar insubsistente a decisão proferida e não apenas a parte alusiva à dosimetria da pena.

 
EMENTA -
AÇÃO PENAL. Condenação. Sentença condenatória. Pena. Individualização. Crime de guarda de substância entorpecente. Delito de mera conduta. Circunstâncias judiciais. Elevação da penabase. Fixação no triplo do mínimo legal. Pequena quantidade de droga apreendida. Abuso do poder discricionário do magistrado. Capítulo da sentença anulado. HC concedido, em parte, para esse fim. Precedente. Inteligência do art. 59 do CP. Voto vencido. No caso de crime de guarda de substância entorpecente, o qual é de mera conduta, não pode a pena-base ser fixada no triplo do mínimo pela só quantidade da droga apreendida, sobretudo quando essa é pequena.

 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em deferir, em parte, o pedido de habeas corpus para, sem prejuízo da condenação, determinar que se proceda a nova fixação da pena, nos termos do voto do Relator; vencido o Ministro MARCO AURÉLIO. Brasília, 07 de fevereiro de 2006.

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