Habeas Corpus Nº 86.268/sp

Estelionato. Sentença condenatória. Pena-base acima do mínimo. Maus antecedentes. Inquéritos e processos sem o trânsito em julgado. Impossibilidade. Princípio da não-culpabilidade. Regime prisional mais gravoso. Impropriedade. Inobservância do disposto no art. 33, § 2º, alínea C, e § 3º do CP. Negativa de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos. Ausência de fundamentação. Constrangimento ilegal evidenciado.

Rel. Min. Laurita Vaz


RELATÓRIO -
EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ: Trata-se de habeas corpus , com pedido liminar, impetrado em favor de CELIO PEDROSA DE SOUZA LÓ, condenado em primeiro grau à pena de 01 ano e 02 meses de reclusão, em regime inicial semi-aberto, pela prática do delito de estelionato, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que negou provimento ao apelo defensivo, mantendo a sentença condenatória em sua totalidade. O Impetrante alega, em suma, constrangimento ilegal na fixação da pena-base acima do mínimo legal, considerando como maus antecedentes inquéritos e processos em andamento, o que impediu, ainda, “a fixação do regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos“ (fl. 05). Requer, assim, liminarmente, “a revogação do mandado de prisão, adequando-se o regime prisional e substituindo-se a pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos“ (fl. 07). O pedido de liminar foi indeferido nos termos da decisão de fl. 135. Estando os autos devidamente instruídos, as informações foram dispensadas. O Ministério Público Federal manifestou-se às fls. 139/143, opinando pela parcial concessão da ordem “tão-somente para que seja redimensionada a pena-base para o mínimo legal“ . É o relatório.

 
VOTO -
EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA): A impetração merece acolhida. Estes são os termos da individualização da pena-base do Paciente: “Trata-se de réu que possui inúmero antecedentes criminais (fls. 136/152), inclusive com condenação em primeira instância consoante a certidão de fls. 446, ainda sem trânsito em julgado definitivo. Considerando o disposto nos artigos 59 e 60, ambos do Código Penal, fixo a pena-base em 01 (um) ano e 02 (dois) meses de reclusão e pagamento de 11 (onze) dias-multa, pouco acima do mínimo legal em razão dos diversos registros criminais, demonstrando que não se trata de um incauto cidadão nunca antes envolvido em questões desta natureza.“ [...] Muito embora não seja reincidente, sua anterior condenação e os diversos antecedentes, estão a revelar personalidade recalcitante de forma que não faz jus a nenhum benefício. Deverá inciar o cumprimento da pena privativa de liberdade no regime SEMI-ABERTO, por ser necessário à reprovação de sua conduta e prevenção do crime“ (fl. 18) Inicialmente, ressalte-se que o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado, reiteradamente, o entendimento de que na fixação da pena-base e do regime prisional, inquéritos e processos em andamento, como na espécie, não podem ser levados em consideração como maus antecedentes, em respeito ao princípio da não-culpabilidade. Nesse sentido: “PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 304 DO CÓDIGO PENAL. SENTENÇA. DOSIMETRIA DA PENA. FIXAÇÃO DA PENA-BASE. FUNDAMENTAÇÃO. MAUS ANTECEDENTES. INQUÉRITOS EM CURSO. NÃO CONFIGURAÇÃO. Em respeito ao princípio da presunção de inocência, inquéritos e processos em andamento não podem ser considerados como maus antecedentes para exacerbação da pena-base (Precedentes). Writ concedido.“ (HC 50.442/MS, 5ª Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 03/09/2007.) “RECURSO ESPECIAL CRIMINAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. MAUS ANTECEDENTES. PROCESSOS SEM TRÂNSITO EM JULGADO. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. PRINCÍPIO DA NÃO-CULPABILIDADE. Com a dosimetria da pena, o magistrado deve observar as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal e demais circunstâncias a ela relativa. Na fixação da pena base, inquéritos e processos em andamento não podem ser levados em consideração como maus-antecedentes, em respeito ao princípio da não-culpabilidade. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.“ (REsp n.º 733.318/RS, rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, DJ de 05/09/2005.) De outro lado, o julgador deveria, quando da individualização da reprimenda penal, ter observado o disposto no artigo 33, § 2º, alínea c, e § 3º do Código Penal, que dispõe que “o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto“ . Portanto, sendo o condenado primário e afastada a circunstância judicial desfavorável, a fixação do regime semi-aberto de cumprimento de pena há de ser reformada para adequar a individualização da sanção criminal, em estrita obediência ao disposto no mencionado texto legal. Confira-se o seguinte precedente: “HABEAS CORPUS. CONDENAÇÃO POR POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO (ART. 16, § ÚNICO, IV DA LEI 10.826/03) . REGIME INICIAL SEMI-ABERTO PARA O CUMPRIMENTO DA PENA. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. As doutas Cortes Superiores do País (STF e STJ) já assentaram, em inúmeros precedentes, que, fixada a pena-base no mínimo legal e reconhecidas as circunstâncias judiciais favoráveis ao réu, é incabível o regime prisional mais gravoso, (Súmulas 718 e 719 do STF). 2. Ações penais em andamento, não podem ser considerados como maus antecedentes para fixação de regime mais gravoso para cumprimento da pena, sob pena de violação ao princípio da presunção de inocência. Precedentes. 3. Ordem concedida para fixar o regime aberto para o início do cumprimento da reprimenda imposta, ressalvado o entendimento pessoal do relator.“ (HC 69.773/SP, 5ª Turma, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJ de 24/09/2007.) Por fim, ressalte-se que a substituição da pena privativa de liberdade é, em tese, adequada à espécie, porquanto o Paciente é reconhecidamente primário e o delito de estelionato não foi cometido com violência ou grave ameaça. Tem-se, portanto, que a sentença condenatória não demonstrou, a teor do art. 44, do Código Penal, com a devida fundamentação, os motivos pelos quais o Paciente não faz jus à substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, restando, pois, evidenciado o constrangimento ilegal na espécie. Cumpre asseverar que anotação de outros incidentes penais, à luz do princípio do estado presumido de inocência, nos termos do art. 44, do Código Penal, não obsta a concessão da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. No mesmo sentido: “CRIMINAL. HC. PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. EXECUÇÃO. REGIME PRISIONAL INICIALMENTE SEMI-ABERTO. PLEITO DE FIXAÇÃO DO REGIME ABERTO. MAUS ANTECEDENTES AFASTADOS PELO TRIBUNAL A QUO. PENA FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO NA IMPOSIÇÃO DO REGIME INTERMEDIÁRIO CONFIGURADA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA. POSSIBILIDADE. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. PRISÃO DOMICILIAR. INEXISTÊNCIA DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL ADEQUADO AO REGIME ABERTO. ALEGAÇÃO NÃO COMPROVADA. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. I. A lei permite ao juiz, desde que motivadamente, fixar regime mais rigoroso, conforme seja recomendável por alguma das circunstâncias judiciais previstas no Estatuto Punitivo. II. Evidenciado que, com o afastamento dos maus antecedentes desfavoravelmente sopesados ao réu pelo Juiz monocrático, a pena-base restou fixada no mínimo legal, não cabe a imposição de regime intermediário sem a devida fundamentação. Incidência da Súmula n.º 719/STF. III. Se as circunstâncias judiciais foram valoradas pelo Tribunal a quo como favoráveis ao acusado no momento da fixação da pena-base, torna-se incoerente a própria Corte Estadual indeferir a substituição da pena, com base na existência de antecedentes criminais do réu. IV. A alegação de inexistência na comarca onde o réu cumpre sua pena de estabelecimento prisional adequado ao regime aberto não restou comprovada pela defesa, impedindo a análise do pedido de concessão de prisão domiciliar ao acusado. V. Deve ser reformado o acórdão recorrido, bem como a sentença monocrática, para determinar o regime prisional aberto para o desconto da reprimenda imposta ao paciente, bem como o afastamento dos seus maus antecedentes, como óbice para a substituição da pena por restritiva de direitos, devendo o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo analisar a presença dos requisitos do art. 44 do CP. VI. Ordem parcialmente concedida, nos termos do voto do Relator.“ (HC 64.294/SP, 5ª Turma, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 19/03/2007 - grifei.) “Política criminal. Pena de prisão (limitação aos casos de reconhecida necessidade). Tráfico de entorpecentes. Substituição da pena (possibilidade). Art. 44 do Cód. Penal. Execução da pena privativa de liberdade (forma progressiva). 1. A norma penal prevê a possibilidade de se aplicarem sanções outras que não a pena privativa de liberdade para crimes de pequena e média gravidade, como meio eficaz de combater a crescente ação criminógena do cárcere. 2. A disciplina da Lei nº 8.072/90 e o disposto no Cód. Penal (art. 44) não são incompatíveis. 3. Caso em que a pena foi aplicada ao paciente no mínimo legal com o percentual mínimo de aumento de pena previsto no art. 18, I, da Lei nº 6.368/76 (um terço). 4. Se não há antecedentes capazes de aumentar a pena-base, do mesmo modo não há antecedentes capazes de inviabilizar a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Aplicação do princípio ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio. 5. Ordem concedida com efeito extensivo, ficando prejudicada a análise do pleito de progressão de regime prisional.“ (HC 45876/SP, 6ª Turma, Rel. Min. NILSON NAVES, DJ de 17/04/2006 - grifei.) Ante o exposto, CONCEDO a ordem para, mantida a condenação, reformar o acórdão e a sentença condenatória na parte relativa à dosimetria da pena, fixando a pena-base no mínimo legal e estabelecendo o regime aberto para o inicial cumprimento da pena reclusiva imposta ao Paciente, bem como para determinar que seja examinado o benefício da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, de conformidade com o disposto no art. 44, § 2º, do Código Penal. É como voto.

 
EMENTA -
HABEAS CORPUS . DIREITO PENAL. ESTELIONATO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO. MAUS ANTECEDENTES. INQUÉRITOS E PROCESSOS SEM O TRÂNSITO EM JULGADO. IMPOSSIBLIDADE. PRINCÍPIO DA NÃO-CULPABILIDADE. REGIME PRISIONAL MAIS GRAVOSO. IMPROPRIEDADE. INOBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ART. 33, § 2º, ALÍNEA C, E § 3º DO CÓDIGO PENAL. NEGATIVA DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. Na fixação da pena-base e do regime prisional, inquéritos e processos em andamento não podem ser levados em consideração como maus antecedentes, em respeito ao princípio da não-culpabilidade. Precedentes. 2. Favoráveis as circunstâncias judiciais, o julgador deve, quando da individualização da reprimenda penal, observar o disposto no artigo 33, § 2º, alínea c, e § 3º do Código Penal, que dispõe que “o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto“ . 3. A anotação de outros incidentes penais, à luz do princípio do estado presumido de inocência, nos termos do art. 44, do Código Penal, não obsta a concessão da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. Precedentes. 4. Ordem concedida para, mantida a condenação, reformar o acórdão e a sentença condenatória na parte relativa à dosimetria da pena, fixando a pena-base no mínimo legal e estabelecendo o regime aberto para o inicial cumprimento da pena reclusiva imposta ao Paciente, bem como para determinar que seja examinado o benefício da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, de conformidade com o disposto no art. 44, § 2º, do Código Penal.

 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Napoleão Nunes Maia Filho, Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG) e Felix Fischer votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 16 de outubro de 2007 (Data do Julgamento)

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