Recurso Em Habeas Corpus Nº 21.969/sp

Estelionato, falsidade e uso de documento falso. Tentativa de prejuízo à entidade autárquica federal. Competência da Justiça Federal. Absorção do falso e do uso pelo crime de estelionato. Necessidade de exame das provas. Impossibilidade nesta via. Denúncia que contém os requisitos legais. Anulação. Impossibilidade.

Rel. Min. Jane Silva


RELATÓRIO A EXMA. SRA. MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) (Relatora) :
Trata-se de recurso ordinário contra decisão denegatória de habeas corpus impetrado em favor de EZIO RAHAL MELILLO, devidamente qualificado nos autos, que, inconformado com a ação penal intentada contra sua pessoa perante o Juízo da 2ª Vara Federal de Bauru, São Paulo, pela presumida prática dos crimes de estelionato, uso de documento falso e falsidade ideológica, levados a cabo contra a Previdência Social, o impetrou perante o Tribunal Regional Federal da Terceira Região, ao argumento de incompetência absoluta da Justiça Federal, por inexistência de efetivo prejuízo ao Instituto Nacional de Seguridade Social, pretendendo a aplicação das Súmulas 17, 62 e 107 deste Tribunal. O e. Tribunal Regional, por sua 5ª Turma, denegou, por unanimidade a ordem , sendo o acórdão assim ementado: HABEAS CORPUS . ARTIGO 171, § 3º, C.COS ARTIGOS 14, II E 29, TODOS DO CÓDIGO PENAL. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. PRESCRIÇÃO RETROATIVA. ORDEM DENEGADA. I. A Justiça Federal é competente para processar e julgar o feito em questão, não obstante tratar-se de crime de estelionato qualificado tentado, a teor do disposto no artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal. II.Ainda que não tenha ocorrido a consumação do delito, resta patente que a conduta imputada ao paciente, qual seja de ajuizar ação na condição de advogado, perante o Juízo Estadual, no exercício de competência federal delegada, foi praticada com intuito de lesar o patrimônio de entidade autárquica da União. Assim, é clara a incidência do preceito constitucional acima mencionado, sobretudo, porque, para o reconhecimento da competência da Justiça Federal basta a potencial lesão aos bens , serviços e interesses da União. III. Não têm aplicação ao caso as Súmulas n. 62 e 107 do Superior Tribunal de Justiça, já que as falsificações, das quais o paciente é acusado, não ocorreram em detrimento de entidade privada, e, além disso, não se acusa o paciente de falsificação de guias de contribuições previdenciárias, mas de Carteira de Trabalho e Previdência Social. IV. Ainda que se considere a data do fato como sendo o dia em que foi ajuizada a inicial do pedido de aposentadoria pelo paciente, ou seja, 23.04.1997, conforme consta da denúncia, não se operou a prescrição retroativa, haja vista que a denúncia foi recebida em 04.08.2004. V. A pena máxima em abstrato do delito de estelionato é de 5 (cinco) anos de reclusão. No entanto, com incidência da causa de aumento prevista no parágrafo 3º do artigo 171 do Código Penal, a pena máxima é de 6 (seis) anos e oito meses. Porém aplicada a diminuição em 1/3 (um terço) da pena, dada a imputação ao paciente da forma tentada, essa resta fixada em 4 (quatro) anos, 5 (cinco) meses e 10 (dez) dias. Logo, de acordo com o artigo 109, inciso III do Código Penal, o prazo prescricional é de 12 (doze) anos. Portanto, é evidente a inocorrência de prescrição. VI. Ordem denegada. Daí o presente recurso, em que se pretende a reforma do acórdão hostilizado e a anulação do processo ab ovo, inclusive o termo de recebimento da denúncia, determinando-se que os autos sejam remetidos para a Justiça Comum Estadual. Argúi no corpo das razões recursais a incompetência da Justiça Federal, e a necessidade da aplicação das Súmulas 104, 62 e 17 deste Sodalício, ao argumento de que não chegou a ocorrer prejuízo aos cofres da União. O recurso foi admitido na origem , manifestando-se o Procurador Regional da República para que ele não seja provido. O Ministério Público Federal opina pelo conhecimento e improvimento deste recurso ordinário, transcrevendo precedentes desta Casa e do Supremo Tribunal Federal. Vistos e exposto, em mesa para julgamento.

 
VOTO - A EXMA. SRA. MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) (Relatora) :
Conheço do recurso, posto que previsto constitucionalmente, adequado, cabível, há interesse recursal, assim como foram obedecidas todas as formalidades atinentes à sua admissibilidade e processamento. Trata-se de recurso ordinário contra decisão denegatória de habeas corpus impetrado em favor de EZIO RAHAL MELILLO, devidamente qualificado nos autos, que, inconformado com a ação penal intentada contra sua pessoa perante o Juízo da 2ª Vara Federal de Bauru, São Paulo, pela presumida prática dos crimes de estelionato, uso de documento falso e falsidade ideológica, levados a cabo contra a Previdência Social, o impetrou perante o Tribunal Regional Federal da Terceira Região, ao argumento de incompetência absoluta da Justiça Federal, por inexistência de efetivo prejuízo ao Instituto Nacional de Seguridade Social, pretendendo a aplicação das Súmulas 17, 62 e 107 deste Tribunal. Examinei com cuidado as razões e contra-razões recursais, o acórdão atacado, a denúncia oferecida contra o paciente, assim como estive atenta ao parecer do Ministério Público Federal e vejo que não se pode dar guarida à pretensão esposada pelo paciente. Primeiramente, deve ser dito que a estreita via escolhida não possui dilação probatória, nem permite conclusão sobre o mérito com base em prova ainda a ser produzida, nem aprofundamento na prova já colhida. Examinemos cada uma das irresignações. No que diz respeito à competência da Justiça Federal, tenho que ela se apresenta livre de controvérsias, não se tratando de aplicação da Súmula 62 deste Sodalício. A referida Súmula dispõe: COMPETE À JUSTIÇA ESTADUAL PROCESSAR E JULGAR O CRIME DE FALSA ANOTAÇÃO NA CARTEIRA DE TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL, ATRIBUÍDO À EMPRESA PRIVADA. Na verdade, a Súmula 62 não se aplica à espécie dos autos, porquanto a documentação falsa não acarretou prejuízo à empresa privada, mas foi usada para a propositura de aposentadoria por tempo de serviço, ação subscrita pelo acusado, junto à Comarca de São Manoel, em 23 de abril de 1997, tendo havido julgamento em primeira e segunda instância, até que em sede de recurso especial este Tribunal acolheu o pedido da autarquia e o feito foi arquivado. A ação criminosa narrada na denúncia foi praticada em detrimento de bens do INSS, autarquia federal, ajustando-se à previsão feita pelo legislador constituinte no artigo 109, IV, da Constituição da República. É irrelevante que a União tenha efetivamente sofrido prejuízo, porquanto o crime tentado colocou em risco interesse de entidade autárquica federal. O acórdão hostilizado examinou bem a matéria, bem como é abundante a jurisprudência deste Sodalício: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . ART. 171, § 3º, C/C O ART. 14, II, E ART. 299, TODOS DO CP. FALSAS ANOTAÇÕES NA CARTEIRA DE TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL (CTPS). INTERESSE DE AUTARQUIA FEDERAL-INSS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ABSOLVIÇÃO DO CRIME QUE ATRAIU A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ART. 81 DO CPP. PERMANÊNCIA DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL PARA O JULGAMENTO DO OUTRO CRIME. I - Compete à Justiça Comum Federal o processo e julgamento do crime de falsidade ideológica (anotações falsas na Carteira de Trabalho e Previdência Social-CTPS), se a conduta do paciente foi praticada em detrimento de bens, serviços ou interesses da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 109, IV, da Lex Fundamentalis ). II - Havendo o e. Tribunal a quo absolvido o ora paciente da conduta que de início atraiu a competência da Justiça Federal (art. 171, § 3º c/c o art. 14, II, ambos do CP), esta permanece competente para o julgamento do outro crime (art. 299 do CP), mesmo sendo, por si só, da competência da Justiça Estadual (Súmula nº 122 do STJ e art. 81 do CPP). Writ denegado.(STJ. HC 33.050. Relator: Ministro Felix Fischer. DJ 31.05.2004, p. 339). Também quanto à alegação de que deve ser considerada absorção dos crimes de falso e uso de documento falso, não é possível fazer a sua verificação sem que se aprofunde no exame das provas, o que deve ser feito na instrução, não se podendo fazê-lo nesta estreita via, voltada tão-só para coibir eventual constrangimento contra a liberdade de locomoção das pessoas. Por outro lado, aparentemente, não se trata de aplicação da Súmula 17 desta Corte cujo enunciado diz : Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido. Só há sua aplicação caso se verifique o falso foi apenas o meio para chegar ao estelionato, sem apresentar maior potencialidade lesiva, no entanto, tal verificação demanda ampla dilação probatória, posto que deverá ser examinada a potencial lesividade do falso, por si só, o que, repita-se uma vez mais, é impossível no writ. Quanto à Súmula 107, ela não se ajusta à conduta narrada nos autos, pois não houve prejuízo a uma entidade privada, porque não ocorreu falsificação de guias de recolhimento de contribuições previdenciárias, mas sim falsificação de Carteira de Trabalho, ndicando evidente potencial de causar prejuízo à entidade autárquica federal. Nesse aspecto são abundantes os precedentes deste Sodalício: CRIMINAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. ESTELIONATO CONTRA A PREVIDÊNCIA SOCIAL. LESÃO A INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO FEDERAL SUSCITADO. I. Hipótese que cuida de pessoa que, após se apoderar de documentos pertencentes a outrem, pleiteou e obteve benefício previdenciário, entre outras condutas. II. Demonstrado prejuízo para o INSS, caracteriza-se, em tese, o delito de estelionato contra a autarquia, ensejando a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento do feito. III. Conflito conhecido para declarar a competência da Justiça Federal da 11.ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Ceará, o Suscitado. (STJ. CC 34491?PE . Relator: Ministro Gilson Dipp. 3ª Seção. (DJ 06.10.2003). PROCESSO PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. ESTELIONATO. FALSIFICAÇÃO DE GUIAS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. OCORRÊNCIA DE LESÃO A AUTARQUIA FEDERAL. ART. 109, IV, DA CF. 1. Compete à Justiça Federal julgar os crimes praticados contra o interesse ou os bens e serviços da União, conforme previsão do art. 109, IV, da CF. 2. Se o estelionato, praticado por meio de falsificação de guias de recolhimento previdenciário, não se limita somente ao falsum , mas influencia e causa prejuízo aos serviços da Autarquia Federal, haverá de ser apreciado pela Justiça da União, em face da mencionada previsão constitucional. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, ora suscitado.(STJ. CC 27.117/RJ – Relatora : Ministra Maria Thereza de Assis Moura – 3ª Seção. DJ 26.03.2007, p.193). Finalmente, a denúncia descreve bem o fato criminoso e enseja ampla defesa, sendo bastante clara na imputação feita, logo, não há que se falar em sua inépcia, com conseqüente anulação, além de que, eventuais equívocos podem ser supridos a qualquer momento antes da sentença, consoante dispõe o artigo 569 do Código de Processo Penal. Posto isto, nego provimento ao recurso ordinário, mantendo o acórdão guerreado por seus próprios e jurídicos fundamentos.

 
EMENTA -
RHC. ESTELIONATO, FALSIDADE E USO DE DOCUMENTO FALSO. TENTATIVA DE PREJUÍZO À ENTIDADE AUTÁRQUICA FEDERAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ABSORÇÃO DO FALSO E DO USO PELO CRIME DE ESTELIONATO – NECESSIDADE DE EXAME DAS PROVAS – IMPOSSIBILIDADE NESTA VIA. DENÚNCIA QUE CONTÉM OS REQUISITOS LEGAIS – ANULAÇÃO – IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. 1- Se há estelionato, praticado por meio de falsificação de Carteira de Trabalho e Previdenciária, e foram colocados em risco os serviços de Autarquia Federal, posto que voltado para obtenção de aposentadoria, através de ação subscrita pelo autor, haverá de ser apreciado pela Justiça da União, em face de previsão constitucional. 2- Impossível a verificação de ausência de lesividade potencial do falso por meio do writ, posto que demanda amplo exame das provas. 3- Não é inepta a denúncia que contém os requisitos legais e enseja ampla defesa. 4- Eventuais equívocos ou omissões da denúncia podem ser supridos até antes da sentença (inteligência do artigo 569, do CPP). 5- Recurso a que se nega provimento.

 
ACÓRDÃO -
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso. Os Srs. Ministros Felix Fischer, Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e Napoleão Nunes Maia Filho votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília, 20 de novembro de 2007.(Data do Julgamento)

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