APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0001710-84.2006.4.03.6124/SP

RELATOR : Desembargador Federal ANDRÉ NEKATSCHALOW -  

PENAL. PROCESSO PENAL. ART. 1°, II, DA LEI N. 8.137/90. ART. 299, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. PRELIMINARES. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO. TRANSCRIÇÃO INTEGRAL. REINTERROGATÓRIO. LEI N. 11.719/08. ATOS REALIZADOS SOB A VIGÊNCIA DA LEI ANTERIOR. INQUÉRITO POLICIAL. TRANCAMENTO. SIGILO BANCÁRIO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. QUEBRA. MINISTÉRIO PÚBLICO. REQUISIÇÃO DIRETAMENTE À RECEITA FEDERAL. UTILIZAÇÃO DOS DADOS RESPECTIVOS PARA LANÇAMENTO DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO. INFRINGÊNCIA AOS PRINCÍPIOS DO JUIZ NATURAL E DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OMITIR INFORMAÇÃO. CONTRIBUINTE OMISSO EM DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. DOLO ESPECÍFICO. FRAUDE. ADMISSIBILIDADE DA TIPIFICAÇÃO. CASUÍSTICA. DESCLASSIFICAÇÃO. CONSUNÇÃO. FALSIDADE IDEOLÓGICA E SONEGAÇÃO FISCAL. DOSIMETRIA. PENA-BASE. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. AGRAVANTES DOS ARTS. 61, I E 62, I, AMBAS DO CÓDIGO PENAL. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DO ART. 29, § 1º, DO CÓDIGO PENAL. CONCURSO FORMAL DE CRIMES. MULTA. PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. PROPORCIONALIDADE.  1. A representação policial para a decretação da interceptação telefônica foi fundamentada na necessidade de desvelar a dinâmica da organização criminosa, considerados os diversos membros que compuseram sua complexa estrutura, pessoas físicas e jurídicas, estas divididas em empresas regulares e empresas abertas em nome de sócios "laranjas". A quebra de sigilo das comunicações telefônicas foi precedida de ação policial controlada e da quebra de sigilo bancário e fiscal, sendo evidente a imprescindibilidade da prova ao aprofundamento das investigações (cfr. fl. 15, vol. I do apenso e mídia à fl. 410). 2. A degravação integral dos áudios gravados é desnecessária, inconveniente e, por vezes, materialmente inexequível, em razão da quantidade de conversas, autorizada, inclusive, a inutilização das gravações que não tiverem qualquer relação com as investigações, a teor do art. 9º da Lei n. 9.296/1996. 3. Segundo preceitua o art. 2º do Código de Processo Penal, a lei processual nova terá aplicação imediata, permanecendo incólumes os atos processuais praticados na vigência da lei anterior (STF, HC n. 104555/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 28.09.10; STJ, HC n. 152456/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. 04.05.10 e TRF da 3ª Região, HC n. 200903000069839, Rel. Des. Fed. Vesna Kolmar, j. 05.05.09). 4. A jurisprudência consolidou o entendimento de que o delito de sonegação fiscal seria de natureza material e que a conclusão do processo administrativo-fiscal se resolveria em condição objetiva de punibilidade. Em conseqüência, não é de se admitir a instauração de inquérito policial ou ação penal anteriormente ao término da instância administrativa. Esse entendimento, contudo, vem sofrendo expressivos temperamentos, pois o trancamento do inquérito sob fundamento dessa ordem somente pode ser concedido em hipóteses excepcionais nas quais haja prova evidente e incontroversa acerca de que o delito é, exclusiva e efetivamente, tão-somente de sonegação fiscal. Não se pode inibir a investigação de outros delitos que por vezes se apresentam relacionados ao de sonegação fiscal (estelionato, lavagem de dinheiro, sistema financeiro etc.). Dentre as hipóteses em que fica autorizada a investigação inclui-se o delito de falsum (tanto a falsificação quanto o uso de documento falso), quando não for manifestamente absorvido pelo delito de sonegação fiscal. Dado que o habeas corpus é remédio estreito, a absorção deve resultar evidente nos autos. Do contrário, cumpre dar continuidade às investigações independentemente da conclusão do procedimento administrativo-fiscal. Precedentes do STJ. 5. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial Representativo de Controvérsia n. 1.134.665/SP, firmou o entendimento de que é lícito ao Fisco receber informações sobre a movimentação bancária dos contribuintes sem a necessidade de prévia autorização judicial, desde que seja resguardado o sigilo das informações, a teor do art. 1º, § 3º, VI, c. c. o art. 5º, caput, da Lei Complementar n. 105/01, c. c. o art. 11, §§ 2º e 3º, da Lei n. 9.311/96. 6. A controvérsia cinge-se ao emprego dessa prova para fins de instrução de processo-crime, pois há entendimento tanto no sentido de que para isso seria imprescindível decisão judicial para a quebra do sigilo bancário (STJ, HC n. 243.034, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 26.08.14, AGRESP n. 201300982789, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 19.08.14, RHC n. 201303405552, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 11.02.14), quanto no sentido de que, tendo sido a prova produzida validamente no âmbito administrativo, não há como invalidá-la posteriormente. Filio-me a esse entendimento, dado não se conceber nulidade a posteriori: a autoridade fiscal tem o dever jurídico (vinculado) de, ao concluir o lançamento de crédito constituído em decorrência de crime fiscal, proceder à respectiva comunicação ao Ministério Público para a propositura de ação penal. Não se compreende como, ao assim fazer, acabe por inviabilizar a persecutio criminis (STJ, HC n. 281.588, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 17.12.13; HC n. 48.059, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 12.06.06). 7. Resta confirmada a validade da aplicação imediata da Lei Complementar n. 105/01 em relação a fatos ocorridos anteriormente a sua vigência, pois se trata de norma caráter procedimental (STJ, HC n. 118.849, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, j. 07.08.12). 8. Anoto que o Plenário do Supremo Tribunal Federal pronunciou-se sobre a constitucionalidade do referido procedimento no RE n. 601.314, com acórdão publicado em 16.09.16, bem como nas ADIs ns. 2390, 2859, 2397 e 2386, publicados os respectivos acórdãos em 21.10.16. 9. O Supremo Tribunal Federal admitiu a transferência do sigilo bancário ao Fisco, o que não atentaria contra a intimidade do contribuinte, na medida em que as informações sigilosas remanesceriam cobertas pela aludida proteção. Assim, os dados bancários permaneceriam insuscetíveis de divulgação. Ressalvou, contudo, que o Fisco pode utilizar tais dados, não apenas no âmbito administrativo (o processo administrativo fiscal tem caráter sigiloso), como também para que sejam usados pela Advocacia-Geral da União em Juízo. 10. Não se concebe que, admitida a "judicialização" pelo Supremo Tribunal Federal, seja ela válida somente para a cobrança do crédito tributário, mas não para a punição do respectivo sonegador. Cumpre destacar, como o fez o Relator Ministro Dias Toffoli, "(...) que o instrumento fiscalizatório instituído nos arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001 se mostra de extrema significância ao efetivo combate à sonegação fiscal no país" (destaques originais). É certo que os dados bancários, de qualquer modo, permaneceriam sob sigilo, igualmente imposto ao Ministério Público. 11. Se é possível a transferência do sigilo bancário da instituição financeira ao Fisco para que este intente por seu órgão competente a ação cabível, não há razão ponderável para se excluir a ação penal. 12. Por essa razão que não fica obstado ao Ministério Público Federal, que tem garantida, para o exercício de suas atribuições, a requisição de diligências investigatórias a que aludem os arts. 129, VIII, da Constituição da República e 8º da Lei Complementar n. 75, de 20.05.93, requisitar diretamente informações bancárias à instituição financeira. 13. Sendo certo que o sigilo é transferido, sem autorização judicial, da instituição financeira ao Fisco e deste à Advocacia-Geral da União, para cobrança do crédito tributário, bem como ao Ministério Público, sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos e contribuições, constate-se fato que configure, em tese, crime contra a ordem tributária (Decreto n. 2.730, de 10.08.98, art. 1º e Lei n. 9.430/96, art. 83), a iniciativa deste não é fato jurídico pelo qual se institui um requisito anteriormente inexistente. 14. Entendimento que se concilia com a jurisprudência deste Tribunal Regional (TRF 3ª Região, Rel. Des. Fed. José Lunardelli, EIfNu n. 2000.61.81.006960-0, j. 17.08.17). 15. A Lei n. 9.311/1996, que instituiu a CPMF - Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, determinou que as instituições financeiras responsáveis pela retenção dessa contribuição prestassem informações à Secretaria da Receita Federal, especificamente, sobre a identificação dos contribuintes e os valores globais das respectivas operações efetuadas, proibindo, contudo, no § 3º do art. 11, a utilização desses dados para constituição do crédito relativo a outras contribuições ou impostos. A Lei n. 10.174/2001 revogou o § 3º do art. 11 da Lei n. 9.311/1991, permitindo a utilização das informações prestadas para a instauração de procedimento administrativo-fiscal tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente. Considerando que o art. 144, § 1º, do Código Tributário Nacional prevê que as normas tributárias procedimentais têm aplicação imediata e que os dispositivos que autorizam a utilização de dados da CPMF pelo Fisco para apuração de eventuais créditos tributários referentes a outros tributos são normas procedimentais, conclui-se que incidem de imediato, ainda que relativas a fato gerador ocorrido antes de sua entrada em vigor (TRF 3ª Região, ACR n. 2002.61.06.007391-1, Rel. Des. Fed. Mauricio Kato, j. 07.12.15). 16. Não se entrevê infringência ao princípio constitucional do juiz natural, de acordo com o qual o réu tem o direito de ser julgado por um juiz previamente determinado por lei, vedados os tribunais de exceção (CF/88, art. 5º, XXXVII e LIII), tampouco ao princípio da identidade física do juiz, segundo o qual o juiz que presidir a instrução deverá proferir a sentença (CPP, art. 399, § 2º, acrescentado pela Lei n. 11.719/08). 17. Materialidade comprovada. 18. Autoria e dolo comprovados, conforme a sentença recorrida. 19. Embora a mera inadimplência, ainda que aí seja incluída aquela decorrente da obrigação acessória, não configure ipso facto o crime de sonegação, é necessário verificar, caso a caso, se o contribuinte omisso na entrega da declaração de rendimentos objetiva, por meio dessa omissão, fraudar o fisco, de sorte a jamais recolher o tributo devido: a omissão, nessa hipótese, resolve-se em mero estratagema fraudulento e é, portanto, alcançado pelo tipo do inciso I do art. 1º da Lei n. 8.137/90. 20. Indevida a desclassificação para o delito do art. 171 do Código Penal. 21. Não resta dúvida que a falsificação do contrato social da Coferfrigo ATC Ltda., e de suas posteriores alterações, serviu à prática da sonegação fiscal, por ter possibilitado a ocultação às autoridades fazendárias da movimentação financeira das empresas lícitas do grupo Mozaquatro. Porém, é inegável que seu potencial lesivo extrapola as imputações destes autos, admitindo-se seu uso para outras fraudes diversas, a exemplo das fraudes trabalhistas e contra a Previdência Social e lavagem de dinheiro, também noticiadas nos presentes autos (cfr. fls. 2.258/2.330). 22. Majoração das penas-base dos acusados condenados adequadamente justificada. 23. Mantida a agravante do art. 62, I, do Código Penal e excluída a agravante da reincidência, em relação ao acusado Alfeu Crozato Mozaquatro. 24. Não incide a causa de diminuição do art. 29, § 1º, do Código Penal, no tocante à acusada Patrícia Buzolin Mozaquatro. 25. Descabida a aplicação das regras do concurso formal de crimes, pois o caso presente não versa sobre uma só ação ou omissão delitiva, mas sim sobre condutas autônomas que caracterizaram os delitos de sonegação fiscal e de falsificação ideológica, as quais se deram em condições de tempo, lugar e modo de execução distintos, daí a aplicação da regra do art. 69 do Código Penal. 26. Excluída, de ofício, a agravante da reincidência em relação ao acusado José Roberto Barbosa. 27. De ofício, tendo em vista o disposto no art. 580 do Código de Processo Penal, revisada a pena do delito de falsidade ideológica em relação aos acusados José Roberto Barbosa, Álvaro Antônio Miranda e Valter Francisco Rodrigues Junior. 28. Dado que tanto a pena privativa de liberdade quanto a pena de multa sujeitam-se a critérios uniformes para a sua determinação, é adequada a exasperação proporcional da sanção pecuniária (TRF da 3ª Região, EI n. 0004791-83.2006.4.03.6110, Rel. Des. Fed. André Nekatschalow, j. 16.02.17; TRF da 3ª Região, ACR n. 0002567-55.2013.4.03.6102, Des. Fed. Cecilia Mello, j. 20.09.16; TRF da 3ª Região, ACR n. 0003484-24.2012.4.03.6130, Rel. Des. Fed. Mauricio Kato, j. 11.04.16). 29. Rejeitadas as preliminares. Desprovidos os recursos de apelação do Ministério Público Federal, bem como das defesas dos acusados Álvaro Antonio Miranda e Valter Francisco Rodrigues Junior. Parcialmente providos os recursos de apelação das defesas dos acusados José Roberto Barbosa, Alfeu Crozato Mozaquatro, Patrícia Buzolin Mozaquatro e César Luís Menegasso.   

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