APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0005257-61.2017.4.03.6120/SP

Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS -  

PENAL E PROCESSO PENAL. ESTELIONATO. ART. 171, PARÁGRAFO 3º, DO CP. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO DEMONSTRADOS. DOSIMETRIA. PRESENÇA DE UMA CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DESFAVORÁVEL (CONSEQUÊNCIAS DO CRIME). PRESENÇA DA ATENUANTE PREVISTA NO ART. 65, I, DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE ISENÇÃO DA PENA DE MULTA. MANUTENÇÃO DA PENA ESTABELECIDA EM SENTENÇA.1- Para a caracterização do crime de estelionato, devem estar presentes três requisitos fundamentais, quais sejam: I) o emprego de meio fraudulento, de que são exemplos o artifício (recurso engenhoso/artístico) e o ardil (astúcia, manha ou sutileza), ambos espécie do gênero fraude.; II) o induzimento ou manutenção da vítima em erro; III) a obtenção, em prejuízo alheio, de vantagem ilícita (economicamente apreciável), sem o que não se há de falar em consumação deste delito.2- Ontologicamente, não se há de falar em distinção entre fraude penal e fraude civil, já que não há diferenças estruturais entre estas. É possível que haja um comportamento ilícito e, todavia, circunscrito à esfera civil. Assim, por força dos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade, é necessário, para a caracterização do crime de estelionato, que o agente tenha o dolo como fim especial de agir, sendo imprescindível a consciência, a vontade de enganar, ludibriar, com objetivo de obter vantagem ilícita em detrimento da vítima. É a presença do dolo que distinguirá uma conduta penalmente relevante daquela situação em que, por exemplo, o agente age com boa-fé, sem a intenção de enganar, mas, por motivos diversos, acaba por cometer um ilícito civil. Atente-se que se, por um lado, não se pode adentrar a consciência do indivíduo, por outro, é possível aferir a presença do elemento anímico a partir de fatores externos, ou seja, dos detalhes e circunstâncias que envolvem os fatos. Além disso, é indispensável, para a caracterização do delito de estelionato, que se identifique a ocorrência de ação dolosa pré-ordenada (antecedente), pois, se, em dado caso, se constatar que o dolo é posterior (subsequens), ou seja, surgiu apenas depois da obtenção/entrega da vantagem, não se haverá de falar em estelionato, mas sim no crime de apropriação indébita que, aliás, sequer exige a ocorrência de fraude para sua caracterização.3-O estelionato não se confunde com o furto mediante fraude, pois, nesta última hipótese, a fraude é utilizada como meio de burlar a vigilância da vítima que, por desatenção, não percebe que a coisa lhe está sendo subtraída, enquanto que, na hipótese de estelionato, a fraude é utilizada para se obter o consentimento viciado da vítima que, iludida, entrega voluntariamente o bem ao agente.4- É importante falar sobre a frequente hipótese em que a falsidade documental é o meio empregado para se obter êxito na empreitada criminosa. Neste caso, em observância ao princípio da consunção, deve prevalecer o entendimento de que o crime-meio (falsidade documental) deverá ser absorvido pelo crime-fim (estelionato), desde que, depois da utilização do documento falso para obtenção de vantagem ilícita, não reste qualquer potencialidade ofensiva, nos termos da súmula n.º 17 do Superior Tribunal de Justiça.5- Em se constatando que a fraude não foi suficientemente hábil para provocar ou manter em erro a vítima (fraude grosseira), deverá haver, em princípio, o reconhecimento da hipótese de crime impossível, por absoluta ineficácia do meio ou absoluta impropriedade do objeto (inteligência do art. 17 do CP).6- Em sendo o estelionato um crime material e de dano, sua consumação se dará com a efetiva obtenção da vantagem, isto é, a partir do momento em que a coisa passar da esfera de disponibilidade da vítima para a do infrator (ou de terceiro). Além disso, não se deve perder de vista que a vantagem obtida pelo agente deve ser ilícita, ou seja, contrária ao ordenamento, uma vez que, se a vantagem for devida, ficará descaracterizado o delito de estelionato, podendo haver, por exemplo, a desclassificação para o delito de exercício arbitrário das próprias razões, nos termos do artigo 345 do CP.7- No caso concreto, o réu foi condenado à pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão, em regime aberto, e 20 (vinte) dias-multa, pela prática do delito de estelionato contra ente público (INSS), uma vez que ficou comprovado queentre dezembro de 2001 e janeiro de 2014, ele obteve vantagem ilícita no valor de R$ 105.932,52 (cento e cinco mil, novecentos e trinta e dois reais e cinquenta e dois centavos), em prejuízo do Instituto Nacional do Seguro Social, induzindo e mantendo em erro a autarquia previdenciária, mediante o saque mensal dos valores correspondentes ao benefício de amparo assistencial ao idoso NB n.º 88/121.717.569-2, não obstante já recebesse aposentadoria do Departamento de Estrada e Rodagens do Estado de São Paulo DER, fato que foi omitido tanto na oportunidade em que o benefício assistencial foi requerido (em 2001) quanto quando houve o recadastramento do beneficiário (em 2005).8- O delito de estelionato perpetrado contra a Previdência Social tem natureza distinta a depender do agente que pratica o ilícito. Conforme a atual jurisprudência dos tribunais superiores, se o ilícito é cometido pelo beneficiário da aposentadoria ou do benefício assistencial, será de natureza permanente, iniciando-se a contagem do prazo prescricional apenas a partir de quando cessa o recebimento indevido do benefício, enquanto que, se o delito é praticado por servidor do INSS ou por terceiro não beneficiário, por meio de fraude consistente na inserção de dados falsos, será instantâneo de efeitos permanentes, iniciando-se a contagem do prazo prescricional a partir da data do pagamento da primeira prestação do benefício (STJ, Sexta Turma, RHC 27.582/DF, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, julgado em 15.08.2013, DJe 26.08.2013).9- Verifica-se, in casu, que o réu recebeu indevidamente o benefício assistencial entre dezembro de 2001 e janeiro de 2014, não podendo ser outra a conclusão senão a de que o delito se consumou em janeiro de 2014, quando cessou o pagamento do benefício concedido fraudulentamente (inteligência do art. 111, III, do CP). Note-se que, em se tratando de fatos criminosos ocorridos após o advento da Lei n.º 12.234/2010, de 05.05.2010, a qual alterou a redação do art. 110 do Código Penal, não há possibilidade de o termo inicial da contagem do prazo prescricional ser anterior à data de recebimento da denúncia. Nos termos do art. 110, parágrafo 1º, do CP, em já tendo havido trânsito em julgado para a acusação (mesmo que ainda pendente o julgamento de recurso da defesa), o prazo prescricional a ser considerado regula-se pela pena concretamente aplicada (01 - um - ano e 08 - oito - meses de reclusão), de modo que importaria verificarmos, em princípio, se, entre os marcos interruptivos legalmente previstos, transcorreu lapso superior a 4 (quatro) anos (inteligência do art. 109, V, do CP). Considerando, contudo, que, na data da r. sentença, o réu era maior de 70 (setenta) anos (inteligência do art. 115 do CP), o prazo prescricional a ser considerado é o de 2 (dois) anos. Considerando que o recebimento da denúncia se deu em 04.08.2017 (inteligência do art. 117, I, do CP) e que a publicação da sentença condenatória ocorreu em 16.08.2018 (inteligência do art. 117 IV, do CP), é evidente que não transcorreu o prazo de 02 (dois) anos entre os marcos interruptivos legalmente previstos, não se havendo de falar, portanto, em prescrição da pretensão punitiva.10- Os elementos de prova apresentados são robustos e suficientes para a formação de juízo de certeza acerca da materialidade e autoria delitivas, bem como evidenciam a presença do dolo.11- É relevante salientar que a ignorância da lei é inescusável e não se confunde com a ausência de potencial conhecimento da ilicitude, já que a consciência da ilicitude resulta da apreensão do sentido axiológico das normas de cultura, independentemente de leitura do texto legal (STJ, RHC 4772/SP, Rel. Min. Vicente Leal, 6ª T. RSTJ, v. 100, p. 287). Inclusive, para a reprovação penal, sequer é necessária a real consciência da ilicitude, bastando a possibilidade de obtê-la (consciência potencial), isto é, a possibilidade de extraí-la das normas de cultura, dos princípios morais e éticos, enfim, dos conhecimentos adquiridos na vida em sociedade. In casu, independentemente de se tratar o réu de pessoa com idade avançada, era presumível que, dos conhecimentos adquiridos na vida em sociedade, ele tivesse extraído a consciência (consciência potencial) da ilicitude do comportamento de ocultar (dolosamente) do INSS a informação de que já era aposentado pelo DER (Departamento de Estradas e Rodagens). Note-se que a potencial consciência da ilicitude (elemento integrante da culpabilidade) não se confunde com o dolo (elemento integrante da tipicidade).12- Embora a defesa tenha alegado que "não houve, em momento algum, dolo ou mesmo culpa por parte do réu", ficou evidenciado que o acusado agiu de forma consciente e voluntária ao omitir do INSS a informação de que era aposentado pelo DER (Departamento de Estradas e Rodagens), sem o que não teria obtido a concessão fraudulenta do benefício. Como bem asseverou o r. juízo a quo, foi o próprio réu quem, pessoalmente (sem a intermediação de advogado), na ocasião do recadastramento do benefício (em 2005), declarou (falsamente) que o amparo assistencial era sua única fonte de renda, o que torna inverossímil a versão de que as orientações do advogado Marco Aurélio Forastieri o teriam levado a acreditar que o benefício era devido.13- É certo que, para que as consequências do crime autorizem o aumento da pena-base, estas devem extravasar o mero resultado decorrente da prática da infração penal. In casu, observa-se que os pagamentos indevidos perduraram de dezembro de 2001 e janeiro de 2014 (por mais de doze anos), causando ao INSS prejuízo de R$ 105.932,52 (cento e cinco mil, novecentos e trinta e dois reais e cinquenta e dois centavos), montante suficientemente vultoso para justificar uma avaliação negativa das consequências do delito. Portanto, a majoração da pena-base em 6 (seis) meses se amparou em fundamento idôneo e deve ser mantida.14- Na segunda fase da dosimetria, o r. juízo a quo reconheceu a presença da atenuante prevista no art. 65, I, do CP (agente maior de 70 anos na data da sentença) e reduziu a pena em 1/6 (um sexto), fixando-a, nesta etapa, em 1 (um) ano e 3 (três) meses de reclusão, o que deve ser mantido. Por fim, na terceira fase, diante da presença da causa de aumento prevista no parágrafo 3º do art. 171 do CP do Código Penal, elevou-se a pena em 1/3 (um terço), ficando a pena definitiva estabelecida em 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão.15- No que diz respeito à pena de multa e aos critérios para a sua fixação, é certo que o número de dias-multa deve guardar proporcionalidade com o quantum da pena privativa de liberdade estabelecida, conforme os parâmetros do sistema trifásico, enquanto o valor do dia-multa deve ser fixado de acordo com as condições econômicas do condenado. Considerando que a pena privativa de liberdade abstratamente prevista pelo art. 171 do CP é de 1 (um) a 5 (cinco) anos e tendo em vista que a pena concretamente cominada foi a de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão, conclui-se que, proporcionalmente, a pena de multa deveria ter sido fixada em 68 (sessenta e oito) dias-multa. De qualquer sorte, como, no caso em questão, a pena de multa estabelecida em sentença foi a de 20 (vinte) dias-multa, cada qual fixado em 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo (valor do salário mínimo vigente em janeiro de 2014), tal determinação, embora tenha violado a regra de proporcionalidade, não poderia, neste momento, ser alterada, sob pena de haver reformatio in pejus.16- Em suas razões de Apelação, a defesa alegou que deve haver "a dispensa de dias-multa e custas, em razão da hipossuficiência do acusado". Quanto ao pleito relacionado às custas, deixa-se de apreciá-lo, por falta de interesse, já que constou da r. sentença o seguinte: "concedo ao réu o benefício da assistência judiciária gratuita, de modo que o dispenso do pagamento das custas". Portanto, o apelo não merece ser conhecido em relação a esse ponto. Em relação ao pleito de "dispensa de dias-multa", deve-se salientar que a condição econômica de um condenado não tem o poder de dispensá-lo do pagamento da multa, pois, tratando-se a multa de sanção de caráter penal, sua isenção violaria o princípio constitucional da legalidade (Tribunal de Justiça de São Paulo, 4ª Câmara de Direito Criminal, Apelação n.º 0008903-30.2009.8.26.0189, Rel. Euvaldo Chaib, Julg. 15.05.2012). Ademais, cabe reiterar que, para a fixação do número de dias-multa, não se leva em consideração a eventual hipossuficiência do acusado, mas sim o quantum da pena privativa de liberdade estabelecida. O que deve ser fixado de acordo com as condições econômicas do condenado é o valor de cada dia-multa. Considerando que, in casu, este valor já foi estabelecido no patamar mínimo legal (1/30 - um trigésimo- do salário mínimo vigente na época do fato), não se há de falar em redução.17- A pena se torna definitiva em 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão, em regime aberto, e 20 (vinte) dias-multa, cada qual fixado em 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo (valor do salário mínimo vigente em janeiro de 2014), ficando a pena privativa de liberdade substituída por duas restritivas de direitos, quais sejam, uma de limitação de fim de semana (art. 48 do Código Penal), pelo mesmo tempo da condenação, e outra de prestação pecuniária equivalente a 1 (um) salário mínimo (vigente à época do pagamento) em favor de entidade assistencial a ser indicada pelo Juízo das Execuções Penais.18- Apelação da defesa a que, na parte conhecida, se nega provimento.

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